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6. ANÁLISE DO DIÁRIO DE LEITURAS

6.1 DIÁRIO DE LEITURA: A MARCA DE UMA LÁGRIMA

6.1.1 Autobiografia de Isabel

Outra atividade proposta a eles após a leitura total do livro e a escrita dos diários, foi a escritura de um texto biográfico, no entanto, esse texto deveria ser em primeira pessoa, com a personagem principal, Isabel, falando de si. Por isso, chamamos de autobiografia.

O gênero autobiografia é muito utilizado na escola. Mas em que essa experiência ajuda na formação de leitores? Segundo Rouxel (2013), a autobiografia mostra os gostos literários e a identidade do leitor. Descrevendo como se encontram o mundo do texto e o mundo do leitor, ela permite observar o lugar que ocupa o processo de identificação na recepção dos textos e a que fenômenos de descobrimento identitário são convidados os sujeitos leitores durante o ato de leitura. (ROUXEL,2013, p. 68)

Quando convidados a escrever a autobiografia das personagens, os alunos também constroem suas memórias de leitura, demonstram o sentido que abstraíram do texto, como as personagens se revelaram para eles. É um exercício de criação, memorização e sentidos.

Construir uma autobiografia de leitor depois de anos desfrutando de diversas leituras pode ser complexo, pois podemos não lembrar de fatos importantes de nossas leituras. Rouxel (2013) cita Pierre Dumayer que se arrepende de não ter um caderno de leituras para guardar as lembranças de suas leituras. Ela também cita Gide que faz uma autobiografia de leitor indiretamente no seu Diário, explicitando como suas leituras o formaram, que construíram sua identidade literária. A identidade literária se constrói a partir dos textos que gosto, que não gosto, que fala de mim ou para mim, que me forma, que me revela e pode ser constantemente modificada.

A autobiografia de leitor é importante para um estudante ou é uma tarefa para um leitor experiente? Para muitos alunos a leitura pode ser um sofrimento. Então como propor uma atividade de escrita baseando-se em uma leitura? Uma experiência de leitura forçada pode causar hostilidade. Rouxel (2013) nos apresenta exemplos de como um trabalho de leitura escolar por obrigação pode tornar o ato de ler um fardo, um sofrimento. A autobiografia de leitor pode auxiliar o professor na descoberta da relação de seu aluno com a leitura e a literatura, além de mostrar àquele leitor em formação uma imagem de si mesmo.

Para essa atividade interventiva a leitura não foi imposta. Antes de iniciarmos o processo de letramento houve uma reunião esclarecedora sobre o projeto, na qual eles tinham a opção de participar ou não desse letramento literário. Além disso, os alunos responderam a um questionário para que o professor conhecesse seus hábitos de leitura. Dessa forma, e também no formato das atividades, coletivas, a leitura das obras não foi um fardo para os alunos envolvidos.

Rouxel (2013) ressalta a importância do desejo afetivo do leitor com o texto e do texto com o leitor. Um leitor em formação é estimulado pelo prazer que o outro tem em compartilhar a leitura. O compartilhamento de leituras é prazeroso tanto para quem o faz como para quem escuta ou ler. Ler com prazer não remete à obrigação. ROUXEL (2013, p.14) afirma que “é verdade que todas as autobiografias de leitores mostram que a leitura é quase sempre, antes de tudo, a procura de uma emoção.” Quando o leitor encontra emoção na leitura, sensações são despertadas.

O encontro das emoções foi um dos pontos destacados no compartilhamento das leituras durante o intervalo da leitura dos capítulos. A forma como eles falavam das histórias, das personagens, as opiniões de o que deveriam ou não fazer para sair das situações que viviam, a aproximação da vida das personagens com suas vidas, tudo isso fazia que desejassem aprofundar mais na história.

Mas para um aluno da Educação Básica é normal que não demonstre ou note a transformação que aquela leitura fez em seu mundo. Quando é consciente dessa transformação, as leituras são experiências que ajudam a afirmar a personalidade do sujeito leitor.

A forma da apropriação de um texto pode igualmente obedecer a uma ação voluntária. Sublinhar frases, copiar um texto, aprender sobre ele, lê-lo em voz alta são gestos simples que marcam a apropriação do texto. Todos esses gestos, aparentemente banais, remetem, assim como às questões do desejo de ler, aos desafios identitários que estão no âmago das autobiografias do leitor. (ROUXEL, 2013, p.77)

Essas experiências são vividas por cada um de maneira diferente. Alguns leem para se encontrar nas personagens, outros para conhecer um mundo novo, ou para vivenciar sentimentos. A identificação ocorre de formas diferentes podendo ser ínfima, leve, ou plena e lúcida, depende da experiência do leitor.

Rouxel (2013) relata também que o ecletismo é comum tanto em leitores em formação que buscam descobrir seus gostos, como em leitores experientes como um sinal de maturidade. A noção de identidade literária ainda é prematura para um aluno da Educação Básica, por seus

gostos ainda não serem permanentes. Usamos a identidade do leitor pela maneira como ler, pelo ritmo da leitura.

A identidade literária do aluno do Ensino Fundamental ainda está em construção. Podemos dizer que a identidade de leitor mostra o ritmo que podemos seguir como leitores: alguns vorazes, outros buscando sentidos ou conhecendo mundos. O aluno tem um longo caminho a seguir, muitas leituras, descobertas, livros que irá amar ou odiar, para traçar caminhos para sua identidade literária, visto que essa identidade está sempre em construção. Esse processo de letramento que vivenciaram como leitores em formação é apenas o início desse caminho, um incentivo para que eles se descubram como leitores e construam sua autobiografia de leitor.

Rouxel (2013) define um jogo de cartas identitárias composto por figuras de certos comportamentos que mostram qual a relação do sujeito com o texto durante a leitura. Para o escapista, a literatura é uma evasão de si e da realidade; o espectador privilegia os fatos do texto; o boêmio é um leitor diletante, amador, que divaga sobre a história; o crítico é a figura de um leitor experiente, que observa a forma e os efeitos do texto. Independente de qual figura de leitor o aluno é, o importante, como afirma ROUXEL (2103, p.82) é que “a subjetividade é essencial para a leitura. A subjetividade dá sentido à leitura.”

Nessa intervenção, a subjetividade do aluno foi estimulada, ele foi convidado a sentir o texto, a falar sobre seus sentimentos, a escrever sobre eles. A construção da autobiografia de cada personagem principal das histórias A marca de uma lágrima e Mariana nos mostrou o sentido que os alunos construíram no processo de leitura das obras. Assim, essas autobiografias nos levam a entender o percurso que o leitor percorreu na construção do sentido do texto, pois nelas é exposto o sentido que subjetivamente abstraiu da história.

Nessa autobiografia, construída coletivamente pelo grupo de 15 alunos, é possível notar que eles compreenderam bem quem é a Isabel, o que aconteceu em sua vida, quais eram seus conflitos. Nesse trecho exposto, vemos que eles escreveram a idade da personagem, seu drama, seu inimigo, o conflito do triângulo amoroso, os seus sentimentos em relação a tudo que aconteceu. E ainda concluíram com um conselho que a personagem passa para as pessoas que lerem sua autobiografia, ou seja, é uma opinião deles com a voz de Isabel.

Quadro 4 – Autobiografia de Isabel. Isabel por ela mesma

Eu me chamo Isabel, tenho 14 anos de idade e, me sinto uma garota comum e fora do padrão, meu pior inimigo é o espelho...

Eu me apaixonei pelo meu primo, e queria o amor eterno dele, mas ele não se apaixonou por mim e sim por minha melhor amiga. Criei uma ilusão que nunca iria acontecer...

[...]

Essa é a minha história, desse meu confuso triângulo amoroso, que envolveu minha amizade, envolveu meu amor, minha vida. Eu sofri, me iludi, me embriaguei, escrevi cartas, fingi ser outra pessoa, fui uma peça valiosa para a polícia, arrisquei minha vida e a vida dos outros. Fiz Fernando sofrer e coitado dele, se feriu profundamente no amor em meu falso conto, o conto de Isabel, a desiludida que iludiu.

Hoje, eu digo: não façamos mal a nós mesmos, a pior coisa do que se suicidar, é matar seus próprios sentimentos, e a morte é ridícula. E eu fui ridícula por correr por alguém sem perceber que a pessoa certa corria por mim. Essa é a minha história.

Fonte: livro Diário de leituras: A marca de uma lágrima e Mariana.

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