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5 O INTERACIONISMO SOCIODISCURSIVO COMO BASE TEÓRICO METODOLÓGICA PARA A PESQUISA DO AGIR PROFESSORAL

6.2 Autoconfrontação com os estagiários

A partir dos anos 60, houve um crescimento nas pesquisas que relacionavam a linguagem com o comportamento humano (VIEIRA, 2003). Na escola de ergonomia anglo-saxônica, estudos faziam referência à situação de confrontar um trabalhador com o seu discurso como um dos meios de mobilizar transformações na situação de trabalho. Nos anos 70, pensando a confrontação como uma forma de gerar mudanças no ambiente de trabalho e no contexto social, surgiram as instruções ao sósia. Esse processo tinha como objetivo aumentar o conhecimento do trabalhador sobre sua atividade. Desta forma, o trabalhador passaria instruções de seu trabalho a um substituto, de forma que ninguém pudesse perceber a substituição.

Nos anos 80, surgem na França alguns padrões para a autoconfrontação. As autoconfrontações são realizadas através do material que é coletado em observações da situação e em entrevistas que propõem questões sobre ações e comunicações, dando-se enfoque a sentimentos e intenções. Graças à autoconfrontação, formas de dizer muito características aparecem e provocam um discurso específico.

Nos anos 90, Faïta propõe o método da autoconfrontação cruzada que parte da autoconfrontação simples. Nesta, temos o momento em que o trabalhador procura descrever sua situação de trabalho para o especialista do trabalho (em se tratando da nossa pesquisa, o especialista é o doutorando). Sendo assim, temos somente duas pessoas envolvidas neste método. A partir daí, dá-se a autoconfrontação cruzada, quando a gravação das autoconfrontações simples é socializada entre esse trabalhador e um colega de trabalho (entre um professor e outro professor, citando um exemplo relacionado à nossa pesquisa). Esse momento é resultante do trabalho anterior, originado na autoconfrontação simples, na qual é necessário escolher as situações que constituem o objeto de análise com o objetivo de levar para a autoconfrontação cruzada.

Procuramos utilizar o método da autoconfrontação simples proposto por Faïta (2005) com a finalidade de recuperar a trajetória mental do aluno estagiário em uma atividade passada por meio de um estímulo visual para que o sujeito da pesquisa

possa deflagrar a memória sobre sua ação. Conforme Yves Clot explica em uma entrevista143:

Nesse método há uma concepção vygotskiana. O pensamento se desenvolve na discussão, na confrontação e, portanto, a controvérsia é a fonte do pensamento. Então, Vygotsky diz que o pensamento nasce duas vezes. A primeira vez quando se discute coletivamente e renasce, em seguida, na atividade individual. É o duplo nascimento do pensamento, segundo Vygotsky. A meu ver, esse é o ensinamento mais importante.

Essa abordagem concebe a realidade do trabalho muito além do que é visível: o trabalho real de um ser humano seria também seu trabalho pensado, impedido, possível etc.

A linguagem no processo de autoconfrontação, longe de ser para o estagiário apenas um meio de explicar o que ele fez, torna-se um modo de levar o pesquisador a pensar segundo a perspectiva do estagiário, mas, ao mesmo tempo, mantendo sua posição de pesquisador. Buscamos, assim, um acesso ao pensamento consciente construído durante a atividade docente.

Na autoconfrontação simples, temos a realização de uma filmagem ou gravação do trabalhador durante a realização de sua tarefa. Após essa etapa, pesquisador e trabalhador assistem juntos ao vídeo. Há um diálogo que parte do pesquisador sobre as ações e tarefas realizadas pelo trabalhador. Existe, assim, uma relação dialógica com o objeto (a atividade filmada) e com o outro (o pesquisador). Por meio desta relação dialógica, a tarefa de dizer o motivo pelo qual o estagiário realizara toda a sua atividade do modo como fizera se tornou mais clara.

Um ponto importante na autoconfrontação é que essa metodologia permite a análise de uma dimensão do trabalho, o trabalho real, que permanece invisível. A análise dos diálogos produzida por esse método nos possibilita fazer constatações dos trabalhadores a respeito de realizações que não puderam ser feitas, dos impedimentos dessas realizações e dos sentimentos gerados por conta desses impedimentos. Assim, vemos que o trabalho real não é só aquilo que se faz, mas também é aquilo que deixou de ser feito, que foi impedido de fazer. A prática docente é sempre mais que o visível das ações técnicas de um professor frente à sala de aula. Consideramos que o ponto

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Entrevista realizada pelo Grupo de Trabalho da ANPEPP denominado “Trabalho e Processos Organizativos na Contemporaneidade”, publicada no “Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 2006,

crucial da nossa pesquisa consistiu justamente no momento em que os estagiários teceram comentários sobre a sua própria prática.

Como afirmamos anteriormente, a ideia básica da autoconfrontação simples é que o professor (o estagiário, em se tratando da nossa pesquisa) se volte para sua aula, analisando-a e estabelecendo parâmetros avaliativos que possam resultar na reconstrução das ações, para com ela aprender e se aperfeiçoar. Essas avaliações podem levar os estagiários à desconstrução das suas certezas didáticas, revelando que, muitas vezes, aquilo que nos parece óbvio e evidente em nossa prática é sempre o mais difícil de enxergar.

Entendemos que toda entrevista é uma produção discursiva e, como tal, realiza-se em um jogo de imagens, conforme definido por Pêcheux (2009). Estão em jogo a imagem que o estagiário faz do pesquisador, a imagem que o estagiário tem de si mesmo e do pesquisador, a imagem que o pesquisador tem de si mesmo e do estagiário. Pelo fato de essas imagens estarem em jogo, foram comuns atitudes que buscassem neutralizar as defesas sociais que os estagiários apresentaram. Minimizamos a implicação dos estagiários evitando por exemplo questões diretas e preferindo as indiretas ou partindo de questões gerais para irmos em direção ao tema.