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2.2 - PRÁTICAS DE CUIDADO ENTRE OS MAGÜTAGÜ

2.2.1 O autocuidado em Me’cürane

Existe um autocuidado entre os Tikuna da comunidade Mecürane? Os saberes que os anciões têm devem ser repassados para frente, e para isso que irei descrever, de como se cuidam, buscam alternativas de cura com medicinas tradicionais. Afinal o que seria medicina tradicional? Para os Magütagü como a anciã traz no seu relato, a partir disso, seria a prática de cuidado que os anciões fazem, ou seja, são conhecimentos e saberes, experiências culturais para prevenir e manter a saúde. Dona Nailda da Silva, 70 anos, nação de mutum, clã de dowenūna, diz:

Morava em uma casa de palha, assoalho de paxiúba, naquela época, pelo fato da casa não ter cercado, a onça quase que o devorava, naquela época os que o protegiam eram os cachorros. Naquela época quando adoeciam, não tinham remédio que hoje tem. O remédio para dor de cabeça era o folha de turuca na língua ticuna, que tiramos as folhas e machucamos na água em uma bacia, deixamos no sereno e no dia seguintes lavamos a nossa cabeça, era dessa forma que tratávamos a dor de cabeça. Antes de sermos influenciados pela religião praticávamos o ritual da moça nova. E após o contato e colonização da religião

80 perdemos tudo que sabíamos, nos proibiam de nós praticar o nosso costume. Na época não existia medico, o nosso remédio era folha e casca seca de laranja para dor de barriga, folha de goiaba para diarreia. O pajé Alfredo (falecido) tinha seu papel importante de cuidar do paciente de reza, tira a doença, usando em muitos casos o tabaco plantado. Então era dessa forma que a gente se cuidava um do outro. (Dowwnüna, 2020 – diário de campo) No diálogo com a anciã percebemos nas suas falas que devido a influência e proibições externas a cultura tikuna, muitas de suas práticas tradicionais foram deixadas de lado ou “esquecidas”. A proibição ao longo do tempo causa o esquecimento quando não há prática diária e com a idade podemos também os esquecer. Por isso precisa pensar e refletir sobre a presença das instituições religiosas nas comunidades indígenas. Mesmo sabendo que tudo isso foi no passado, mas também devido a ela hoje, podemos ver e notar como a igreja influencia no processo de cuidado com a pandemia causada por Covid-19. Iremos trazer sobre Covid-19 e os cuidados que os Magütagü de Me’cürane tomaram para se “proteger”.

Nas palavras dos professores sobre o trabalho do curandeiro ou pajé:

O espírito de certas árvores ajuda o trabalho do pajé.

Quando uma pessoa fica doente, chama o pajé. E o pajé chama o espírito das árvores para curar. O espírito chega e entra no corpo do pajé. Aí ele canta. Depois vem outro e mais outro. Se a pessoa está muito mal, é preciso chamar vários espíritos.

A samaumeira tem espírito. A chuchuacha tem espírito. O cedro tem espírito. O açacu tem espírito. A ucuuba tem espírito. A seringueira tem espírito. A maçaranduba tem espírito. A castanha-de-paca tem espírito.

81 Há também outros espíritos que o pajé chama: do boto-tucuxi, do Yewae, da sereia, do Curupira. Os velhos ensinam que ninguém deve passar debaixo da maçaranduba. Se passar, deve ser bem devagar, porque o espírito da árvore escuta, vem atrás e faz adoecer o filho.

Se alguém cortar à toa essa árvore, seu espírito vai embora. Certo dia, um homem andava pela mata e viu um velho pajé olhando por muito tempo para uma samaumeira.

O pajé falava baixinho para a árvore: "Samaúma, eu gosto de ti. Tu és uma árvore grande, alta, bonita. Através de ti eu posso curar as pessoas. Teu espírito é guerreiro.

Quando eu preciso de comando, eu chamo teu espírito e ganho tua força. Samaúma, tu deves ficar viva para sempre". (OGPTB, 1997: p. 46)

Os curandeiros ou pajés, também devido a influência das igrejas, são transformados em diáconos ou pastores das igrejas. Quando são procurados para curar uma pessoa adoecida negam, dizendo que “agora sou diácono, não prático mais, é pecados voltar a esse costume”, os pajés eram os primeiros curandeiros que os Tikuna corriam quando acontecia de adoecerem, como notamos em uma fala das lideranças no primeiro capítulo.

Ainda no Livro das árvores Tikuna, notamos sobre a relação entre as árvores e os remédios:

Certo dia, um homem foi para a terra firme atrás de chuchuacha. Seu pai estava doente, muito fraco. Procurou, procurou até que encontrou a árvore. Tirou um pouco da casaca e levou para casa. Aí preparou o remédio. A chuchuacha serve para curar várias doenças: fraqueza, palidez e reumatismo. A casca da carapanaúba é boa para quem sofre dos rins, fígado, anemia e dor de estomago. A casca de cedro, bem cozida, serve para dar banho nas pessoas que sentem dores no corpo, para curar amebas e

82 palidez. A casca do taperebá, fervida, serve para lavar feridas e curar diarreias. A casca queimada e transformada num pó bem fino serve para colocar no umbigo das crianças recém-nascidas. A casca da acapurana cura diarreia, feridas e amebas. Também é usada pelas mulheres depois do parto e durante a menstruação. A casaca do matamatá é boa para cólicas, diarreia e amebas.

A casca do muruchi também serve para diarreia. Outra árvore importante é a andiroba. De suas frutas retiramos um óleo que serve para tratar diarreia, tosse, dores musculares, coceiras e feridas.

O óleo da copaíba também cura vários tipos de doenças:

asma, gripe, coqueluche, febre e dor de cabeça. Serve ainda para passar no corpo e tratar coceira. O leite de sucuuba serve para curar “peito aberto”. O leite deve ser tirado do tronco, do lado onde o sol se põe. Depois passa-se no local da dor ou faz-passa-se um emplastro, usando um pano bem limpo. O tratamento deve ser na lua nova. A resina do cicantã é boa para cheirar e assim alivia a dor de cabeça.

Serve também para espantar a cobragrande, Yewae. Para picada de aranha, defuma-se o local com breu e a dor passa. Defuma-se também as crianças para desentupir o nariz. O chá da raiz do açaí é usado para disenteria, dor de estomago e amebas. (OGPTB, 1997: p. 82)

Esse saber está registrado tanto no livro, quanto aqui agora, mas se formos observar sobre a valorização ou preservação desses conhecimentos entre os jovens de hoje, vamos ver que quase “ninguém” sabe a respeito das plantas medicinais que os antigos recorriam para promoção a saúde. Entre a mulheres da geração dos anos 1960 a 1970 (e anterior), é notável o cuidado desde o nascimento das crianças, digo isso, porque vivenciei junto a minha família mãe e avós. O processo de cuidado com a saúde da criança e da mãe é preparado desde

83 o seu nascimento, durante a gravidez, gestação e pós-parto. O pai da criança só poderá, por exemplo, chegar perto da sua esposa e filha (o) após um mês do nascimento da criança. Isso tem uma explicação, segundo os anciões, porque os pais, saem para pescar e caçar, e lá podem trazer espíritos para casa e por isso a distância para proteger, caso contrário, essa fase da criança será sofrida para a crianças e para a mãe se não seguir o cuidado.

Após o parto durantes três meses mais ou menos, os anciões alimentam a mãe somente com alimentos não remoso, não é qualquer comida que possa dar para a mãe. O que pode também prejudicar a saúde da criança e da mãe dela.

Exemplo: peixes comíveis que não prejudicaria durante os três primeiros meses após o parto ou até mais são: curimatã e sardinhas.

Sendo assim, podemos compreender um pouco da realidade de crenças e práticas indígenas, no caso específico sobre os Tikuna. Entendemos que sua tradição é importante, e se perpetua através da cosmologia indígena, salientando o caráter político e dinâmico no processo de transformação dessas tradições.

Nesse sentido, a dissertação de Abel Angarita, “Percepción Tikuna de Naane y Naüne: território y cuerpo”, é utilizada para complementar a etnografia, por mim realizada, quanto a visão Cosmológica Tikuna sobre ambiente e cosmo. Segundo o autor:

En el relato de origen, nakümachiga en Tikuna, existen ciertas palabras y expresiones que expresan nociones ontológicas que señalan que todo se origina em la misma energía natural y cósmica. Con esto busco acercarme al pensamiento Tikuna, y evidenciarlo recurriendo a los relatos de origen, a las actividades cotidianas y a las experiencias personales. [...] abordo tres conceptos del pensamiento Tikuna: Ǜüne, Naane y Naü̃ne. Describo la construcción conceptual del pensamiento Tikuna a partir de esos conceptos, y me acerco a su significado mediante la descripción de sus contextos semánticopragmáticos y

84 socioculturales. Estos tres conceptos, que introduciré em breve, se apoyan en los principios fundamentales que conforman el ser Tikuna: pora, “poder”, kua̰ ,

“conocimiento”, naẽ, “pensamiento” y maü̃, “vida”.

(Angarita (2013, p. 09).

É notável a preocupações dos anciões com relação à preservação de meio ambiente e cuidado com a saúde9. São preocupados também com os avanços das tecnologias por seu impacto nas comunidades indígenas Tikuna, pois pode e traz problemas sim, para nossas florestas e ela mesma exploradas desde a invasão e continua não somente nos territórios dos Tikuna.

Os mais velhos dizem que a educação é a melhor forma de conscientizar seu povo, desde que planejada e executada com métodos tradicionais próprios de transmissão de conhecimentos. Essa educação deverá garantir a melhoria da qualidade de vida de cada indivíduo e dos comunitários como um todo. O processo de aprendizagem, quando trabalhamos de forma voltada ao resgate do costume é lento, mas se torna eficaz, despertando no indivíduo e na sociedade uma nova consciência ecológica, ajudando a conservar e preservar o ambiente no qual estamos vivendo e o preservar a natureza é proteger vidas que nela existem como os nós povos indígenas Tikuna.

É interessante analisar, segundo Vargas, como no tocante as questões ambientais, os países articularam a preparação de importantes acordos, tratados a respeito do meio ambiente. Deixou visível a necessidade de adotar novas atitudes, acompanhamentos e posturas por meio de ações, que facilitassem a compreensão sobre a importância da relação do homem com a natureza.

Educação, no processo de desenvolvimento de atitudes e comportamentos, é fundamental para que os indivíduos e a sociedade adquiram o conhecimento

9 Na versão coletada por João Pacheco de Oliveira (1988), a narrativa é mais completa. Ver “O nosso governo: Os Ticuna e o regime tutelar”, foi coletada em São Jerônimo com ancião João Lauriano, inicialmente registrada em 1981 e consolidada através da pesquisa em 1983 da qual resultou a publicação TORÜ DUUGÜ.

85 necessário para a compreensão das questões ambientais (Vargas, 2012, p.24.25).

2.2.2 Covid-19 entre os Tikuna de Me’cürane

Segundo Muna Muhammad Odeh e Jamila Odeh-Moreira (2021) a pandemia de COVID-19 veio para mudar o mundo como se conhecia. (p. 85).

Realmente mudou muitas coisas nas nossas vidas o que erámamos acostumados. Não foi diferente entre os Tikuna, na comunidade Me’cürane também houveram umas mudanças nas suas rotinas para ir a roça, pescar e ir para a cidade fazer umas comprinhas. Segundo as autoras Odeh e Odeh-Moreira,

Para prevenir a doença e controlar sua transmissão, a OMS recomenda estar constantemente atualizado sobre o vírus, a doença causada por ele e como ela se espalha na população. Para garantir a sua proteção e daqueles à sua volta, indivíduos devem utilizar máscaras faciais, evitar tocar o rosto, lavar as mãos frequentemente e utilizar álcool em gel para constante desinfecção. (2021: p. 87) Após o espalhamento da notícia da chegada do coronavírus no território brasileiro, não demorou muito para a Covid-19 chegar também nos territórios dos indígenas Magüta ao longo do Solimões e na comunidade Me’cürane, no município de Santo Antônio do Içá, cidade esta localizada a 800 km da capital Manaus, no Amazonas. O vírus se espalhou muito rápido em vários municípios do Solimões e no rio Içá se faz presente. As orientações chegaram as comunidades indígenas Tikuna também, também porque assistiam nos jornais sobre o cuidado que tomaríamos diante do coronavírus. Após saberem que estávamos perdendo vidas para essa doença os Tikuna da comunidade tomaram atitudes de voltar a usar medicinas tradicionais para se protegerem ou

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