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Autoficção citação mise en abyme

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 69-98)

Autoficção: casa vazia e mise en abyme do incipit da Recherche; cama- túmulo: metáfora da citação; nutrição e anatomia; citação: igreja (centro), música e rivalidade entre dois reis.

Depois de ler Le Pacte autobiographique, Doubrovsky explica a Lejeune (em carta de 17/10/1977) que a leitura de sua grade tipológica para a autobiografia o levara a empenhar-se na tarefa de fazer do romance que estava escrevendo, Fils, um exemplo possível do que fora considerado lacunar no quadro: a coincidência entre o nome do personagem e o nome do autor, num romance - e não numa autobiobrafia [1983: 430]. Só nesse momento surge o neologismo "autoficção": como resposta ao desafio declarado (não tanto pelo crítico, mas pela própria tabela) por uma casa - ou lugar - em branco.

Necessidade de preencher um vazio no campo teórico, a autoficção é descrita em Un Amour de soi da seguinte maneira:

Les sentiments, c'est ce qu'on décrit dans les romans... Dans la vie, on a très peu de sentiments. Ils vous saisissent à l'improviste... au coin d'une phrase... Puis ils se perdent... Le reste du temps, on n'a pas le temps... Les sentiments, dans la journée sont des momies emmaillotées. La nuit, des fantômes effilochés au cours des songes. Pour savoir ce qui s'agite sous les suaires, pour soulever les linceuils, promenade en fauteuil ou divan volants vous y emmène... On n'a que des habitudes... Le matin, travail... J'écris mon roman. Pas une autobiographie, vraiment, c'est là une chose gardée, un club exclusif pour gens célèbres. Pour y avoir droit, il faut être quelqu'un... Moi, je ne suis... personne. J'existe à peine, je suis un être fictif. J'écris mon autofiction... mon regard descend vers mon nombril, je m'immobilise à même moi. Là je tâche de saisir à tâtons ma quintessence. Depuis que je transforme ma vie en phrases, je me trouve intéressant. À mesure que je deviens le pesonnage de mon roman, je me passionne pour moi. Comme pour Lucien Rubempré, Julien Sorel, si j'arrive à me rendre palpitant. Ma vie ratée sera une réussite littéraire. [AS: 90-91]

Os "sentimentos" - e toda a temática proustiana do amor e do ciúme - juntamente com a questão do "hábito" remetem diretamente à Recherche. O "tempo", a "perda", a "poltrona mágica" (que aqui aparece "voadora"), a "transformação da vida em frases" - numa oscilação entre realidade e ficção - reforçam a intertextualidade. O "divã voador", os "fantasmas" e a "mortalha" apontam, mais especificamente, para cauções da autoficção (a psicanálise, o mito de Lázaro e o caráter consonântico da escritura; Cf. 2.2.2), que levam o autor, narcisicamente, a olhar para o próprio "umbigo". A autoficção, romance e não autobiografia, é o lugar em que o autor, por metamorfose, se torna outro que, como o personagem Julien Sorel, faz do processo da escritura um elemento de auto-encantamento. Assim, realidade e ficção não existem como opostos cujas fronteiras devam ser averiguadas - numa busca da "verdade" - mas como aspectos que cooperam entre si na elaboração de novos caminhos para a literatura.

O gênero autoficcional pode ser, então, além da busca da ocupação de uma casa vazia, essencialmente, a dramatização do incipit da Recherche, que por tanto tempo fascinou o crítico Doubrovsky: tornar o si mesmo o próprio espetáculo através de diversos desdobramentos:

Longtemps je me suis couché de bonne heure. Parfois, à peine ma bougie éteinte, mes yeux se fermaient si vite que je n'avais pas le temps de me dire "Je m'endors"... je n'avais pas cessé en dormant de faire des réfléxions sur ce que je venais de lire, mais ces réflexions avaient pris un tour particulier; il me semblait que j'étais moi- même ce dont parlait l'ouvrage: une église, un quatuor, la rivalité de François Ier et de Charles-Quint. Cette croyance survivait pendant quelques secondes à mon réveil... Puis elle commençait à me devenir inintelligible, comme après la métempsychose les pensées d'une existence antérieure; le sujet du livre se détachait de moi... [Du Côté de chez Swann: 3]

Sonho como escritura como leitura: o homem que transita entre essas três instâncias desdobra-se e projeta-se, em meio a reflexos e reflexões, como igreja, música e rivalidade entre dois reis: a metempsicose é essa transferência de si para algo diferente de si, noutro tempo e noutro espaço.

A autoficção é a dramatização do incipit proustiano na medida em que, nos termos de uma auto-encenação narcísica, é o âmbito do desdobramento múltiplo de si em personagens fictícios; é o entre-dois de realidade e ficção, autobiografia e romance, local de reflexos e reflexões. É, portanto, um gênero que, em mise en abyme, atualiza a idéia da metempsicose e do tornar-se o próprio espetáculo instaurados no incipit da Recherche.

E o local, na Recherche, dessas projeções possíveis é a cama do narrador leitor, onde os sonhos com os personagens fictícios das histórias lidas ganham corpo e fazem dele seu palco cênico (em francês, il lit dans son lit força um efeito de mise en abyme que, porém, providencialmente, coincide com a função do incipit na obra), e de onde o menino observa, nas paredes do quarto, as projeções da lanterna mágica - espetáculo metafórico da produção artística na obra proustiana.

Essa, pelo menos, é a hipótese de Doubrovsky: lanterna mágica, caleidoscópio e cinescópio são emblemas do divórcio de luz e sombra, do movimento de sístole e diástole, e do jogo Fort/Da [1988: 55] que permeiam a evolução da "litania pronominal" - intermitência de construções e desconstruções de tempos e espaços em que o "eu" ressurge, sempre outro, em busca da "lembrança do nascimento da lembrança" - matriz geradora do texto (Cf.2.2.1).

Além da presença circular do "eu" no início e no fim da obra, que permite a identificação da litania pronominal, há também a recorrência do caráter intertextual. Proust encerra Le Temps retrouvé - "...il ne me semblait pas que j'aurais encore la force de maintenir longtemps attaché à moi ce passé qui descendait déjà si loin..." [ibid.: 353] - falando dos homens ou personagens que povoaram a vida do narrador e que seriam objeto de sua obra. Esses homens são também os autores que cita, em uma verdadeira

"litania citacional", ao longo da Recherche. E as citações começam já no incipit, em que se pode reconhecer uma variedade de ecos intertextuais.41

Com relação ao local onde o espetáculo das projeções - citacionais inclusive - é viabilizado, a cama do narrador, ela se apresenta de maneira dupla. Por um lado, a cama é o lugar do início da história - onde se encena o mito do nascimento do livro (Cf. 2.2.1). Por outro, ela é descrita como um túmulo: "Une fois dans ma chambre, il fallut... creuser mon propre tombeau... revêtir le suaire de ma chemise de nuit... m'ensevelir dans le lit de fer" [Du Côté de chez Swann: 28]. Marcel, imóvel no escuro, tem a seu dispor a "flamme de la veillleuse de verre de Bohème, en forme d'urne, suspendue au plafond par des chaînettes" [ibid.: 6], que lembra a cripta da igreja de Combray, onde "une lampe de cristal... s'était détachée... des chaînes d'or où elle était suspendue" [ibid.: 61]. Cama e túmulo, portanto, representam a experiência do vazio - a separação da mãe ou a morte - que só será preenchido com o nascimento do dia seguinte (quando o menino encontra a mãe no jardim; ou na ressurreição lazariana). A sonolência pós- leitura, porém, que precede o sono profundo, abre a possibilidade da metempsicose espetacular que compensa, na confusão de papéis e personagens, o vazio da solidão noturna.

Doubrovsky acredita que a metáfora proustiana funciona como túmulo para as palavras (corpos mortos ou amortecidos) que aguardam o toque sensorial para que os sentidos dormentes despertem e restaurem a memória e as lembranças (Cf.2.2.2). A metáfora em Proust, local do encadeamento de termos, é, assim, regida pelo mito de Lázaro. No rastro dessa idéia, a cama de Marcel menino pode ser entendida como o local do encadeamento de citações - mecanismo que (ao lado da litania pronominal identificada por Doubrovsky) sustenta a progressão das intermitências entre ensaio e ficção que constitui a Recherche. Essa progressão é identificável no trabalho de

41Por exemplo: a frase "Un être humain qui rêverait son existence au lieu de la vivre tiendrait sans doute ainsi sous son regard, à tout moment, la multitude infinie des détails de son histoire passé.", de H. Bergson (Matière et Mémoire, 1896), o conto "História do adormecido acordado", das Mil e Uma Noites, e o romance A Máquina do tempo, de H.G.Wells (1899) - como ressaltado em nota da edição comentada Folio de Du Côté de chez Swann [ibid.: 469].

arqueologia ou genealogia de citações, fontes e influências, mais ou menos explícitas, algumas declaradas em suas cartas, mas que permanece, essencialmente, no lusco-fusco da consciência do narrador sonolento. E a sua cama é a metáfora da produção citacional - que (ao lado da litania de "je") age como matriz geradora do texto.

Essa cama também se destaca no prólogo da Recherche, onde o narrador vai falar de suas primeiras leituras: os romances campestres de George Sand. Em um estudo sobre a intertextualidade entre Proust e Sand, Nina Glaser comenta que Proust revelara, aos treze anos, seus autores preferidos: George Sand e Augustin Thierry [1993: 45]. Este escreveu Récits des temps mérovingiens, 1867, que serve de decalque, inclusive, à descrição da cripta da igreja de Combray [Du Côté de chez Swann: 61]; ela é autora de François le Champi, que o narrador recebeu de presente da avó, e que sua mãe lia em voz alta para que ele dormisse. Esta obra, mais do que qualquer outra, está em filigrana no que Marcel chama de "le théâtre et le drame de mon coucher" [ibid.: 44]: juntamente com outros romances campestres de Sand, é descrito como o primeiro contato do narrador com a literatura [ibid.: 39-42].

François le Champi, porém, não é um modelo de escritura: "Ne croyez pas que j'aime George Sand" [apud GLASER: 44] - diz o adulto Proust em sua correspondência. Mas será um modelo romanesco, de intriga, na medida em que narra a história de um menino perdido, François, encontrado por Madeleine - que o adota; depois de separados, reencontram-se e casam-se. Esse é o fantasma (edipiano) que povoa o "teatro e o drama" do adormecer do menino Marcel e acaba impregnando toda a busca das lembranças de infância na obra. François le Champi é, assim, o modelo de fantasma que habita a Recherche.42

Serge, em Un Amour de soi, evoca Sand (e seu par implícito Gustave Flaubert) a propósito do ideal de simetria intelectual: "ensemble on rêve, comme George Sand, elle écrira Elle et lui, moi, j'écrirais Lui et elle" [AS: 245]. Sand e Flaubert são, de certa

42Os outros três romances campestres também são, para Glaser, matriciais: La Petite Fadette trata de um ciúme malsão; La Mare au Diable possui uma cena semelhante à da "graça paterna", em que o pai de Marcel lhe permite dormir com a mãe; e Les Maîtres Sonneurs é a narrativa de uma vocação artística fundada sobre uma estrutura dicotômica [op.cit.: 47].

forma, o decalque da idéia de simetria em Beauvoir e Sartre. "Juntos sonhamos, como George Sand", porém, mais do que sonho de simetria, revela o sonho (pelo viés de Sand e François le Champi) com a mulher maternal, nutridora, que o narrador-aranha busca construir "hifologicamente" (Cf. 2.2.3.1) - expressão do fantasma edipiano em Un Amour de soi.

Para Doubrovsky, a cama na Recherche é o lugar onde se sucedem amor, sonho, sono, insônia, reclusão, doença, morte, leitura e escritura [1974: 32-33]. A cama é, sobretudo, o local lazariano do duplo movimento: a morte do autor e o nascimento do livro; um entre-dois que funciona como centro da obra, ou ponto de origem e fim. E é na cama que se aloja o corpo do homem que dorme: é sua realidade física que gera a lembrança corpórea do texto:

Au commencement des commencements n'est pas le verbe, mais le corps. Ce qui "cherche", ce qui "induit", ce qui "repère", ce qui garde la "mémoire", c'est cette ténèbre sous-jacente à ma conscience, à mon inconscient, à mon langage et irréductible à eux: mon existence corporelle... "la mémoire de ses côtes" se détache, se rattache à cette femme... née pendant le sommeil "comme Ève naquit d'une côte d'Adam" et les côtes se transforment en côtés... Corps-côtes-côtés, celui de Swann et de Guermantes... [1988: 58-59]

A origem corpórea da lembrança embala a origem corpórea do texto. "Corps- côtes-côtés": evolução consonantal que delineia a anatomia binária do texto: cindida entre Adão e Eva, masculino e feminino, Swann e Guermantes; seu fim é a reunião dos caminhos da Recherche (que sulcam, na topografia da obra, essa dissociação) na busca mítica da androginia.

Em Un Amour de soi, há duas breves referências explícitas ao casal mítico em Un Amour de soi: "Mes histoires d'Eve lui agitent la pomme d'Adam" [AS: 51] e "Oeil pour oeil, Eve pour Adam" [AS: 400], que apenas ilustram a oposição entre feminino e masculino. Mas a separação dos gêneros e dos sexos (e das camas - Serge aceita dividir o quarto com Rachel, mas não a cama) é uma fixação de Serge que assume uma forma específica no uso de óculos:

Lunettes, je bute... J'ai la phobie des besicles. Ni sur moi ni sur les autres ne peux supporter [AS: 23]

sous les lunettes. De la moustache. [AS: 23]

les lunettes sont un drôle d'instrument. Elles enlèvent leur feminité aux femmes, la refilent aux hommes. Un binoclard est seulement un demi-mec [AS: 24]

mon père. Pas plus courageux que lui, pas plus viril, même ma mère me disait... Il portait des lunettes, mon père. [AS: 25]

Mon idée fixe, ma fixation, phobie des besicles. Une obession, ...j'ai des règles. D'or, absolue... la SÉPARATION DES SEXES... mon père et ma mère étaient d'accord sur ce point... Chacun à sa place, chacun son sexe. [AS: 25]

Óculos ligados à imagem paterna, instrumento de masculinização (Rachel, que usava óculos no início da relação, colocará lentes de contato para agradar Serge), superfície de vidro que garante a diferença entre masculino e feminino. Serge fará dos óculos um verdadeiro "père-verre", uma lei absoluta, um mecanismo de interdição apreendido do pai e que ele irá manter, em citação fiel da imagem paterna, sem qualquer intenção "père-verse" (ou "père-renverse").43

A cama e o quarto também são tumulares em Un Amour de soi durante a viagem do casal ao interior da França: o leito é un "cloître" [AS: 70] "obscur" [AS: 71]; e o quarto: "murailles de pierre chambre à coucher taillée en roc plafonds de cinq mètres comme un donjon frais comme une tombe caveau médiéval" [AS: 69].

A evolução temática da separação dos sexos na Recherche é resumida por Doubrovsky num jogo alfabético: citando o artigo de Serge Gaubert, "Proust et le jeu de l'Alphabet" [1974: 116], confere importância ao anagrama e à anatomia das palavras, e encadeia: Petites Madeleines - Proust Marcel - Père-Mère [ibid.: 120-121], e os dois caminhos, de Swann e de Guermantes, enfim, masculino e feminino - Adão e Eva.

A questão fundamental da dicotomia proustiana, porém, está no que Doubrovsky, partindo da premissa de que toda obra cultural se inscreve na estrutura edipiana do triângulo pai-mãe-filho [ibid.: 127], denomina "fantasma da auto- fecundação" (processo orubórico) e que rege o trabalho da escritura na Recherche, estabelecendo o itinerário da busca da androginia [ibid.: 124], da auto-fecundação [ibid.: 125] e do Eu Absoluto [ibid.: 126]. Essa progressão encadeia as metamorfoses do significado da escritura: ler no lugar da mãe (François le Champi) [ibid.: 65]; comer as palavras do Outro [ibid.]; suprimir o Outro [ibid.]; matar o Outro para renascer de sua

43Lentes e mecanismos óticos são constantes na Recherche. Sua menção em Un Amour de soi é nova referência ao "pai"ou fonte Proust. Aqui elas aparecem como metáfora do livro: "...ils ne seraient pas... mes lecteurs, mais les propres lecteurs d'eux-mêmes, mon livre n'étant qu'une sorte de ces verres

grossissants comme ceux que tendait à un acheteur l'opticien de Combray; mon livre, grâce auquel je leur fournirais le moyen de lire en eux-mêmes." [Le Temps retrouvé: 338]

morte [ibid.: 92]; construir o texto a partir de uma auto-desconstrução (como na "hifologia" barthesiana, ibid.: 105); e passar de um corpo a outro (do físico ao de impressão - a "metempsicose" de Proust, ibid.: 179). As complexas implicações psicanalíticas de tal análise escapam ao objetivo desta dissertação, mas cabe ressaltar que no cerne dessa trajetória edipiana está o binômio assassinato do pai / ingestão- incorporação da mãe, que, no âmbito da escritura, representa a morte do autor (que assina o nome do pai) e o nascimento do escritor (produtor do livro por vir, promessa que germina no filho, ibid.: 110) - o entre-dois lazariano.

A análise do "fantasma da auto-fecundação" ressalta, mais elementarmente, a função nutridora da mãe e da leitura - que, em mais um desdobramento do narrador, coloca na frente do palco das metempsicoses a figura da tia Léonie, com quem Marcel tomava chá com biscoitos - as tais madeleines, que lembram a heroína de François le Champi e que alavancam a teoria proustiana sobre a memória.

Na Recherche, o narrador explicita sua semelhança com a tia:

peu à peu, je ressemblais à tous mes parents... mais de plus en plus à ma tante Léonie (...) ce qui me faisait souvent rester couché, c'était un être... non pas un être que j'aimais, mas un autre être plus puissant sur moi qu'un être aimé, c'est

transmigrée en moi... ma tante Léonie" [La Prisonnière: 70].

Desde a morte do marido, tia Léonie "n'avait plus voulu quitter, d'abord Combray, puis à Combray sa maison, puis sa chambre, puis son lit... toujours couchée dans un état incertain de chagrin, de débilité physique, de maladie, d'idée fixe et de dévotion" [Du Côté de chez Swann: 48]. Nesse zoom, a cama de Léonie se destaca: o que para Marcel será "le théâtre et le drame de mon coucher", para ela será o teatro e o drama de suas mazelas: a oscilação entre saúde e doença (ela é uma espécie de "malade imaginaire"), sono e vigília (em sua "insônia imaginária"). Por intervalo, esse drama tem o espetáculo das visões através da janela - de onde vigia os movimentos dos habitantes de Combray, e que funciona como a lanterna mágica para o menino.

A cama de Léonie está entre "dois lados": de um lado fica a cômoda de madeira amarela, comparado a um altar [ibid.: 51]; do outro, a janela por onde, como um "príncipe persa" [ibid.], observa a vida alheia. Também é na cama que Léonie se

alimenta em seus pratos pintados com motivos das Mil e Uma Noites, cujos serralhos, prisioneiras e paisagens distantes lembram, em mise en abyme, a própria Recherche e o narrador - sultão (ou príncipe, como a tia) que ouve as histórias encantadas de Sherazade (sua mãe) sob o signo da morte (o sono e a separação até o dia seguinte).

O caráter metafórico da cama da tia fica particularmente evidente no episódio do sonho com o falecido Octave, na mesma noite em que a ajudante de Françoise dá à luz: "Dieu soit loué! nous n'avons comme tracas que la fille de cuisine qui accouche. Voilà- t-il pas que je rêvais que mon pauvre Octave était ressuscité et qu'il voulait me faire faire une promenade tous les jours!" [ibid.: 108], diz ela para si mesma, agitada pelo fenômeno do nascimento (que rompe violentamente, a seu entender, a rotina da casa) que leva ao sonho lazariano. Ao despertar, a tia fica aliviada com a certeza da morte do marido e pode voltar a dormir, ou sonhar com a própria morte.

Dividida em dois, Léonie joga paciência, fazendo as vezes de si e de sua "adversária" [ibid.: 115], numa oscilação entre rivais internos. Sua vida, ou sua "morte imaginária", também oscila entre os seus dois quartos, que antecipam, no interior da casa (como os "dois lados" da cama, no interior do quarto), os dois caminhos, de Swann e de Guermantes - cujos pontos de partida serão, respectivamente, o portão lateral e a porta da frente da casa. A casa de Léonie é, então, o centro imaginário da geometria de Combray idealizada por Marcel. Se ele visse a cidade em sua totalidade, do alto da torre da igreja (centro da cidade, comparada a um brioche; [ibid.: 64]), veria Combray (outro brioche; [ibid.: 105]), e a confluência dos caminhos; mas está dentro da casa, do quarto, ao lado da cama da tia tomando chá com madeleines: sorve e impregna-se da superfície de ranhuras, estria sua geografia imaginária, e divide-se em intermináveis desdobramentos.

Como a cama-túmulo de Marcel, local da geração da memória pela associação "corps-côtes-côtés", a cama de Léonie é a matriz simbólica da dicotomia entre dois lados-caminhos, da separação mítica entre masculino e feminino que leva à busca da androginia primordial e marca a anatomia do texto. E essa busca, roteiro de uma "auto- fecundação", é também a necessidade de uma auto-nutrição, pela escritura - cujas

matrizes estão em Combray: o brioche da igreja no centro do brioche da cidade - uma

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 69-98)

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