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espiral a disseminação da imagem

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 50-57)

2.2.3 A escritura da insistência

2.2.3.1 espiral a disseminação da imagem

simbologia do feminino e do labirinto; o centro e a aranha; o narrador-aranha (citação de Deleuze), a filigrana de Combray, e a hifologia (citação de Barthes); o discurso "quebrado", dicotômico e curvo.

As circularidades da experiência estética (hermenêutica) e da relação crítica- escritor (idealizada por Doubrovsky) somam-se ao padrão repetitivo e redundante da escritura da insistência: a repetitividade, em si, já cria um padrão de circularidades que se imbricam. E esses três tipos de circularidade aliam-se a outro, o do decalque do formato circular da Recherche, que Doubrovsky identifica em seus ensaios e reproduz em seu romance.

36Há outros, como "malva" (que ocorre doze vezes ao longo do texto), "eco" (dezesseis vezes) e "lugar" (vinte e nove vezes), por exemplo.

A forma circular é instaurada em Un Amour de soi, de forma ainda inespecífica, no incipit: "convidados aglutinados em grupos"; mas toma corpo nos doze capítulos medianos, as doze "espirais". Assim, a forma espiral torna-se um dos elementos agenciadores do texto, ao lado da estrutura dicotômica.

A espiral já é emblema do movimento de compreensão de um texto na obra crítica do autor: "Totalisation en spirale des significations vers l'horizon ultime du sens... par le mouvement même de l'existence et de la compréhension qui l'épouse." [1970: 223]. E: "...cette impulsion profonde qui, dans le travail théorique comme dans tout autre, s'ignore elle-même et tourne, sinon en rond, du moins en spirale." [1980: 15]. Em Un Amour de soi, insinua-se através do fio de encadeamento de termos e idéias vinculado ao grupo espiral/labirinto/dédalo37:

La rue titube sous les lampées de vin crétois, mais maintenant je m'y trouve au labyrinthe... [AS: 27]

Dans la coquille du grand lit, cocon ténébreux [AS: 41] dans le dédale des plantations. [AS: 45]

miasmes amoureux dans quel gouffre aspirés dans quelle spirale absorbés dans quel creux désir... [AS: 69]

dans quels boyaux au labyrinthe égarés... dans le lit obscur [AS: 71]

Une rencontre au hasard... J'aime parfois boucler mes boucles, croisement subil, inopiné carrefour, forment un noeud. [AS: 72]

je tourne dans un périmètre étroit, en cercle, en barricade, à la recherche, planète rétrécie, en rond dans ma coquille de noix... [AS: 229]

plus d'autoroute... on s'engouffre dans des dédales noirâtres [AS: 229] perdu dans le dédale parallèle des défilés raides... [AS: 229]

je tournique, au labyrinthe de nuit. [AS: 230]

On a l'air de divaguer, on parle en cercle, Rachel me fait tourner em bourrique. [AS: 243]

Les sujets peuvent être différents, la conclusion est identique. On vit dans un univers einsteinien, un espace courbe... on revient au même point. [AS: 244]

Elle a peiné au labyrinthe de ses bisbilles d'enfance... [AS: 274] il y a eu un tour définitif de la spirale... [AS: 286]

à Salamanque dans le dédale des pierres antiques... [AS: 324]

descendu au labyrinthe baveux, je m'entortille au fil d'Ariadne. [AS: 416]

A repetição permite a formação de um encadeamento de signos que ora vão estabelecer identidades entre si, ora diferenças. O labirinto (dédalo) e a espiral referem- se, sucessivamente, a: cidade, cama, plantação, desejo, sexo, confusão pessoal, concha,

37Além dessas ocorrências de termos, Doubrovsky insiste sobre tourniquer/tournoyer (dezoito vezes) e maëlstrom/tourbillon/tourbillonner (dezenove vezes), caracterizando a generalidade do movimento espiralar ao longo do texto, enquanto cita esses termos marcadamente proustianos - como indicado na sua análise sobre a escritura da insistência na Recherche.

ruas, noite, divagação, identidade com o outro, lembranças de infância, fase de vida, construções antigas e órgão sexual feminino. Multiplicam-se, assim, os sentidos do significante, formando uma cadeia que, tortuosa, insinua-se na trama do texto, vai e volta, avança rumo ao centro e distancia-se dele, faz uma volta completa e recomeça do início - ou seja, chega a Coda (in cauda venenum). Coda/cauda é o Oruborus, serpente (espiral ou circular) que morde a própria cauda simbolizando o fim de um ciclo. De certa forma, é a representação do eterno retorno sobre si, que constitui o "amour de soi- même".

No que concerne ao imaginário da obra, a espiral é símbolo do feminino, gera vida e dá impulso ao nascimento (mítico) do livro (como foi mencionado quanto ao prólogo de Proust). E, na listagem de recorrências acima, as associações a cama, plantação, desejo, sexo, concha, noite, lembranças de infância e órgão sexual feminino estão em conformidade com essa simbologia maior.

A identificação de labirinto/dédalo a espiral deve-se à homologia de seu simbolismo: a espiral é uma simplificação do desenho mais complexo do labirinto, e ambos representam, grosso modo, um percurso elaborado na tentativa de encontrar uma saída a um impasse; é o signo de uma busca, que promove um deslocamento e um retorno diferenciado ao ponto de partida.

Reforçando a presença do labirinto, há a menção a Ariadne, mulher cujo fio mágico permite atingir o centro do labirinto (símbolo de um enredamento centrípeto e inextricável), sem se perder, e encontrar a saída. Abandonada pelo herói, porém, é citada por um narrador que se quer outro Teseu: "Ariane, ma soeur, de quel amour bléssée, Vous mourûtes aux bords où vous fûtes laissée. Pas Thésée qui a été abandonné sur l'île. Elle." [AS: 411] Essa citação de Phèdre de Racine é usada pelo narrador para fazer um apelo à supremacia pessoal na relação conjugal, que ilustra o "confronto homem-mulher" referido na apresentação do romance como um dos signos da "civilização decomposta": é ele quem abandona, e não a(s) sua(s) mulher(es). É dele o comando, o posto central.

A circularidade estrutural, que convive com a dualidade especular da autoficção, tem como pivô o ponto central identificado na seção mediana, local onde o narrador finca seu espelho, e que agora será vista com maior detalhe:

- Why do you cling to Rachel?

- I don't know really.

Mais si, je sais. Un autre. N'est pas une entité réelle. Ça se fabrique, avec ses besoins, à soi. Une femme, elle vous sort des entrailles. Ça se tisse comme une toile d'araignée, après, c'est soi qu'on prend dedans, qui s'entortille à s'étouffer dans les fils. Moi, je n'ai pas le pognon de Swann: pas pu fabriquer Rachel selon la recette d'Odette... Suis pas artiste. L'Odette de Swann, j'ai pas eu l'éducation pour... Une nana... un intérieur confortable... Connais mes limites, je suis un aime-petit, un besogneux de la passion. Les miens, pas très relevés, niveau ceinture, hauteur bas- ventre. Je fabrique Rachel à ras de pulsion, nourricière, nutritive, qu'elle me remplisse, ... à la place de ma mère, à la place où j'ai pas eu de mère, à la place où j'ai pas eu de place, qu'elle me bouche mes insterstices, j'exige un amour sans faille. - Then why do you cling to your wife?

- I don't cling to my wife!

- It's true, you cling to your house. [AS: 260-261]

No centro da Spirale VII, capítulo também central, está a aranha: o narrador vê o Outro, Rachel ou outra mulher qualquer, como algo que se "fabrica" nas "entranhas", "se tece como uma teia de aranha". Depois de haver fabricado o Outro, o fio, como uma aranha, é a vez de embrenhar-se e "sufocar nos fios". "Eu" e "o Outro", emaranhados nos fios criados por si mesmo. São os fios aos quais ele "se agarra" com todas as forças. Há, aqui, pelo menos três referências intertextuais.

Primeiro, é possível que Doubrovsky faça citação da análise de G. Deleuze sobre a obra de Proust [1987], onde o narrador proustiano é comparado a uma aranha: ele não "sabe" nada, mas registra as vibrações de sua teia (círculos e linhas multiplicadas) em seu corpo, e reage, com precisão, aos sinais transmitidos por sua teia (uma extensão de seu corpo) - trama ou texto produzido pela aranha. O narrador-aranha produz seu texto- teia e estende aos personagens os fios de seu "delírio" (memória, desejo, imaginação ou inteligência), fabricando marionetes.

Ocorre o mesmo com o narrador de Un Amour de soi, que tece sua mulher e o amor que ela sente por ele como extensões de seu próprio ser. Serge também "sabe" somente o que sua teia lhe transmite, num movimento circular, e é por isso que ele só conhecerá Rachel, realmente, em Coda, depois de ler um maço de cartas esquecido em

sua casa (ou seja, a partir de dados externos à trama conhecida-fabricada por ele) - cartas que serão um pharmakon contra sua paixão fracassada.

A teia, a aranha e o centro, por outro lado, mostram, em filigrana, reminiscências do texto proustiano. Se o palimpsesto de Un Amour de Swann é denunciado desde o título, o de Combray irrompe com o mito do nascimento do livro (no incipit e na espiral expansiva do prólogo). Essas duas partes da Recherche são usadas em Un Amour de soi, até certo ponto, para expressar a rivalidade entre Serge e Rachel: em seu primeiro encontro, Rachel afirma que Un Amour de Swann é um de seus texto prediletos, a que Serge responde: "- Nous n'avons pas le même Proust. Moi, c'est celui de Combray, de maman et de la madeleine qui m'attire..." [AS: 14]. E, efetivamente, o crítico Doubrovsky fundamenta suas análises - de ordem psicanalítica - do texto proustiano, sobretudo, em Combray (sede das lembranças de infância, cujo pivô é a figura materna). A cidade de Combray, descrita em Combray, é um pequeno aglomerado de casas ao redor de uma igreja (Saint-Hilaire), cercado, parcialmente, por ruínas de muralhas medievais. É uma formação "perfeitamente circular" [Du Côté de chez Swann: 47] cujo centro é marcado pela igreja, ou mais precisamente, pelo seu campanário. Este, avistado de longe por quem chega de trem à região, é o ícone da cidade. É de seu topo que se compreende sua geometria:

Du clocher de Saint-Hilaire c'est tout un réseau où la localité est prise. Seulement on ne distingue pas l'eau, on dirait des grandes fentes qui coupent si bien la ville en quartiers, qu'elle est comme une brioche dont les morceaux tiennent ensemble mais sont déjà découpés. [ibid.: 105]

Brioche estriado por uma rede de canais, Combray, local da infância, matriz das memórias da Recherche, centro nervoso, nevrálgico e emocional da obra, só é vista em sua totalidade do topo do campanário - onde se sobe pela escada - caracol - da torre, com o corpo encurvado; e, ao subir, recolhem-se, com a cabeça inclinada, as teias de aranha e seus conteúdos [ibid.: 104]. No centro de Combray, portanto, no interior do campanário, estão a teia e a aranha, na cabeça, em curva, de quem, em caracol ou espiral, busca uma visão maior da cidade circular.

A aranha aparece uma segunda vez em Combray quando o narrador compara Françoise à vespa, que vitima a aranha - paralizando-a sem matá-la - para alimentar sua cria com uma caça imóvel mas viva [ibid.: 122]. Assim, surge o lado implacável e sombrio de Françoise - mulher "nutridora" por excelência da Recherche.

Enredam-se à trama de Un Amour de soi o círculo, a espiral, o centro, a teia, a aranha e a mulher nutridora, em mais uma referência à obra proustiana, justamente, no ponto central do romance, em mise en abyme.

Outro crítico de Proust possivelmente citado é Barthes. Para ele, o autor é como uma aranha, pois, ao escrever, desfaz-se em sua escritura:

acentuamos agora, no tecido [do texto], a idéia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido nesse tecido - nessa textura - o sujeito desfaz-se como uma aranha que se dissolvesse a si própria nas secreções construtivas de sua teia. Se gostássemos de neologismos, poderíamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos é o tecido e a teia de aranha). [1983: 112]

A teia e a aranha fazem parte da simbologia feminina fértil, lunar e circular, e pertencem ao imaginário sobre o qual repousa a autoficção: estão no centro das espirais do romance - o que as torna cúmplices do grande movimento gerador de vida impulsionado pela imagem matricial e dominante da espiral (Cf. 2.2.1). Teia e aranha relacionam-se, porém, mais diretamente ao processo e ao poder da criação na medida em que a aranha também é considerada criadora cósmica e senhora do destino, arquétipo do criador ou demiurgo que tece a malha fina que sustenta magicamente o mundo material; comparada ao narrador da autoficção, é ela quem agencia a trama invisível do texto, cria o romance e norteia os personagens. (Providencialmente, a etimologia do nome "Serge" liga-o a "tecidos de seda": homem fadado à criação de textos, texturas, demiurgo no centro de sua trama.)

Também o labirinto-dédalo, do qual a espiral é uma simplificação estilizada, dá corpo à autoficção, pois reforça a idéia de uma circunvolução tortuosa, atormentada, e leva a errâncias emotivas nas quais o herói se atrapalha (espécie de Teseu que perde o fio da meada), mas com as quais alimenta seu romance (Monstre, Minotauro que se nutre dessas errâncias), fazendo da trajetória amorosa um labirinto aparentemente sem

saída. E, asssim como a teia da aranha, o labirinto presta-se a metáforas relativas à produção textual e à sua malha. Uma delas é de A. Compagnon e refere-se à intertextualidade - matriz do romance de Doubrovsky:

A noção de trabalho [da citação] é rica: ...é o labor intus, o labor interno, segundo a etimologia proposta por Evrard o Alemão para o labirinto. E o labirinto é, no texto, uma rede de citações ao trabalho. Questão com estatura de enigma: o que é que eu trabalho e que me trabalha, a um só tempo? O texto, a citação. [1988: 36]38

Essa etimologia fantástica ilude quanto às orígens do termo, mas ilustra o caráter labiríntico da intertextualidade - tão insistentemente aludido por Borges. Seja por meio de uma "hifologia", seja por meio do "trabalho interno", a citação, elemento constituinte de todo texto, se dissemina, se desdobra, gigogne e lúdica, em intermináveis volteios sobre si mesma - em espiral.

O retorno sobre si mesmo exigido pela autoficção também se assemelha à geometria da espiral, que evolui ao redor de um centro fixo, num movimento circular e ascendente-descendente, como as escalas musicais, moduladas em oitavas sucessivas - as mesmas notas em planos diferentes. São as mesmas questões, desde o início do romance, que são recolocadas sob perspectivas renovadas. Esse eterno retorno da espiral sobre si mesma coincide com a imagem feita pelo autor na apresentação da obra, para a circunvolução da paixão do herói: "um amor tenaz se teceu nele, apesar dele, ao redor de uma mulher", como uma cobra que enrosca e estrangula. Coincide, ainda, com o padrão concêntrico dos questionamentos dos personagens - sobre os sonhos, sobre si e sobre o outro - para discernir um sentido, a compreensão do "énigme du sphinx" [AS: 266].

A escritura da insistência é uma escritura de idas e vindas, em espiral. Serve de esteio ao "discurso quebrado", que se pretende um espelho de tempos marcados pelo esfacelamento (de culturas, valores...). O "discurso quebrado", além de evocar o capítulo "O livro quebrado" (BARTHES, S/Z, sobre a análise dos códigos e vozes que

38"La notion de travail [de la citation] est riche: ...c'est le labor intus, le labeur qui se fait dedans, selon l'étymologie que proposait Evrard l'Allemand pour le labyrinthe. Et le labyrinthe est, dans le texte, un réseau de citations au travail. Tout cela a l'allure d'une énigme: qu'est-ce que je travaille et qui me travaille à la fois? Le texte, la citation."

coexistem em Sarrazine), embora reflita a estrutura dicotômica da autoficção, consegue ser, justamente pelo seu fundamento espiralar, o fiel espelho da necessidade especular. Isso porque há uma complementaridade entre a "escritura em curva" - em espiral - e a "realidade dicotomizada", como explica Claude-Gilbert Dubois, a propósito do maneirismo:

A predominância de uma escritura em curva deve ser correlacionada a seu contrário: pode tratar-se da expressão de uma realidade dicotomizada, que pode estar respondendo a um estado esquizóide da civilização; escritura em curva, exprimindo a dobra, o tormento, o tortuoso que pode corresponder a períodos de violência, momentos históricos críticos, zonas cronológicas de incertezas e interrogações. [1979: 93-94]39

A espiral, espaço curvo em que a linguagem é, por sua própria simbologia, gerada, revela-se, portanto, uma característica maneirista do discurso que se quer atualizado com a "desconstrução" contemporânea. E no seu centro, como será visto através do próximo encadeamento significante, o homem que crê ver a si e/ou a seus fantasmas, pode estar, em realidade, diante de um trompe-l'oeil, signo do engodo - lúdico - barroco.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 50-57)

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