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– PósGraduação em Letras Neolatinas

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(1)

D i m e n s õ e s i n t e r t e x t u a i s e m

U n A m o u r d e s o i

d e S e r g e D o u b r o v s k y :

E m B u s c a d o L e i t o r P e r v e r s o

por

Luciana Persice Nogueira

Dissertação de Mestrado em Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa apresentada à Coordenação de

Pós-Graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Professor Doutor Edson Rosa da Silva

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

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EXAME DE DISSERTAÇÃO

NOGUEIRA, Luciana Persice. Dimensões intertextuais em Un Amour de soi de Serge Doubrovsky: Em Busca do Leitor Perverso. Dissertação de Mestrado em Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro, 1997. 106 fls.

BANCA EXAMINADORA

1. ________________________________________________________________

Professor Doutor Edson Rosa da Silva (orientador)

2. ________________________________________________________________

Professora Doutora Celina Moreira de Mello

3. ________________________________________________________________

Professora Doutora Carlinda Fragale Pate Nuñez

4. ________________________________________________________________

Professora Doutora Maria Thereza Redig de Campos Barrocas (suplente)

5. ________________________________________________________________

Professor Doutor Marco Americo Lucchesi (suplente)

Defendida a Dissertação:

Conceito:

(3)

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos que ajudaram na elaboração desta dissertação, por amizade ou

profissionalismo.

Agradeço aos funcionários da Biblioteca da Maison de France do Rio de Janeiro

pela eficiência, solidariedade e gentileza sobreviventes à paradoxal inundação de suas

instalações no décimo-primeiro andar.

Agradeço também à CAPES, sem cujo apoio financeiro a pesquisa de mestrado

não teria sido possível.

A Leslie Tosta Nogueira

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SINOPSE

(5)

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

2 DIMENSÕES DO INTERTEXTO

2.1 O código - tensão entre hermenêutica e estética da recepção

2.2 O fantasma - espectro de citações

2.2.1 Incipit e mise en abyme - mito do nascimento

2.2.2 Estrutura especular - autoficção e o espelho de Lázaro

2.2.3 A escritura da insistência

2.2.3.1 espiral - a disseminação da imagem

2.2.3.2 fio/filho - a inversão da imagem

2.2.3.3 signo - a duplicação da imagem

2.2.4 Autoficção - citação mise en abyme

3 CONCLUSÃO

(6)

1 INTRODUÇÃO

Artaud, insano, carregou a angústia da influência até uma região onde a influência e seu movimento contrário, a desapropriação, não podem mais ser distinguidos. Se os poetas retardatários quiserem evitar o caminho de Artaud, precisam estar conscientes de que os poetas mortos não consentirão nunca em fazer espaço para os outros... Os precursores nos inundam.

Harold Bloom

Serge Doubrovsky (1928) é romancista, tradutor, professor, crítico e teórico da

literatura. Faz da "inundação dos precursores" matéria e pre-texto de seu trabalho. Ao

escrever Un Amour de soi, não apenas se exime da angústia da influência, como

serve-se dela, nutre-serve-se de suas virtualidades intertextuais e enreda-serve-se no circuito labiríntico do

Livro infinito da utopia borgiana.

Seu trabalho é uma "desapropriação" contínua de outros textos, ficcionais e

críticos, na medida em que os lê e cita, e, citando-os, faz migrarem seus efeitos, tanto

em seus ensaios, quanto em seus romances. Nestes, Doubrovsky verte e perverte as

fontes, (re)escreve e cifra a memória de caminhos literários já percorridos, suscitando

novos, provocando deslocamentos e interações de leituras - as suas próprias e as de seus

leitores.

Esse é o trabalho da citação, que pode ser considerado como um jogo

intertextual. Antes de mais nada, será especificado o uso dos conceitos de jogo e de

intertexto, que fundamentam a organização desta dissertação.

Em um estudo sobre a leitura como jogo, Michel Picard [1986] examina a

dinâmica da leitura, ou a situação de recepção, como um desdobramento semelhante ao

da atividade lúdica, em que o indivíduo se ausenta temporariamente do real para

integrar o ilusório (que a fórmula clássica de Coleridge traduz como "willing suspension

of disbelief"). De maneira simbólica, ele vivencia ritos de passagem originais e formas

iniciáticas através das quais, pela repetição do gesto lúdico ou leitor, já realizado por

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individual. Ocorre, assim, um processo dialógico entre esse universo mental, contentor

de informações novas, e a consciência individual já possuidora de conteúdos

apre(e)ndidos em leituras anteriores. O que se repete é, justamente, o diálogo entre o

leitor e o texto - que o leitor aceita como regra (ou percurso) a cumprir. O leitor integra,

com sua participação consciente no texto, estruturas mentais e narrativas explícitas ou

implícitas, mais ou menos conscientes - que formam o texto e informam o leitor. Picard

afirma que

a leitura faz funcionar uma estruturação, opera ensaios de coerência. Estamos no nível bastante abstrato dos esquemas, da lógica formal e da eficácia retórica - e, também, conjuntamente, indissociavelmente, das grandes estruturas fantasmáticas, das formas arquetípicas coletivas e individuais... Mas, ao mesmo tempo, representações pré-conscientes inserem-se constantemente entre código e fantasma... essa contradição entre contrição e liberdade. [ibid.: 50]1

A integração do leitor ao ilusório é condicionada por dois princípios paradoxais:

código e fantasma (Cf. item 2 desta dissertação), estrutura e imaginário, obediência a

regras e liberdade inventiva: dentro do espaço limitado do jogo-livro, expande-se o

espaço ilimitado da criação, numa arquitetura de "espaços gigognes"2 [ibid.: 110], a um

só tempo contíguos e inclusivos. A dinâmica dessa contradição leva, para Picard, a uma

síntese de dimensões proustianas: "o caminho de Swann da tenra infância, dos prazeres

solitários, da anulação onírica do tempo, encontra o caminho de Guermantes da

maturidade, da história, da sociedade e de suas leis." [ibid.: 122]3

As "formas arquetípicas" e as "grandes estruturas fantasmáticas" a que se refere

Picard funcionam como o decalque deleuziano, por detrás de toda a cartografia infinita

das diversidades culturais [DELEUZE e GUATTARI 1980: 20-21], ilimitadamente

1O sublinhado nesta e em outras citações é meu. Textos não editados em português, exclusive os de Serge Doubrovsky e de Marcel Proust, são traduzidos por mim; o original consta nas notas respectivas, como a seguir: "la lecture met en marche une structuration, opère ses essais de cohérence. On est là au niveau assez abstrait des schèmes, de la logique formelle et de l'efficacité rhétorique - et aussi, conjointement, indissociablement, à celui des grandes structures fantasmatiques, des formes archétypales collectives et privées... Mais, en même temps, des représentations pré-conscientes s'insèrent constamment entre code et fantasme... cette contradiction de la contrainte et de la liberté."

2O termo gigogne é oriundo do teatro de marionetes: de sob as saias da Mãe Gigogne, surgem inúmeras crianças.

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reprodutível por meio de variações, mutações, deformações, assimetrias, e outras

manifestações alteradas de um traçado original. Mitos, arquétipos e fantasmas4, sob esse

prisma, são elementos dialógicos que exigem a participação do leitor - que os percebe e,

ao percebê-los, insere-se na cadeia coletiva de reprodução do decalque; sua percepção,

porém, sendo única e individual, permite-lhe proceder à inevitável transformação de seu

formato. A repetição do gesto leitor-lúdico, dessa maneira, deixa de ser mero exercício

mimético, e torna-se condição para as metamorfoses desencadeadas pelas leituras

individuais. Assim, é possível aproximar a função mimética do caráter mítico da obra

literária, como faz a professora Carlinda Nuñez:

De um lado, a obra literária se assemelha ao mito na proporção direta da freqüência com que está sujeita a repetições...; de outro, [o autor] endereça à posteridade um objeto que é eivado de mistério e composto de mensagens do imaginário. O texto é mítico, ainda, se entendido como objeto votado à participação, basicamente conotativo, apelativo, coletivista, dialógico, prestes a se revelar, apocalíptico, desde que o crítico/leitor aceite o risco/riscado do texto/tecido. [1995: 59]

Decalque ou riscado do texto ou tecido: a etimologia é inelutável [DERRIDA

1972 e BARTHES 1973, por exemplo], mas a idéia de uma forma ou imagem em

filigrana (o decalque) estruturando o texto lido aponta para um mimetismo intertextual

que se inicia com a citação mítica (relato cuja repetitividade leva o seu reprodutor a

participar de um processo criador, cooperativo e, por isso mesmo, produtor de formas

novas e diversas) e se expande a toda uma gama de possibilidades de relações entre

textos.

O jogo do intertexto, ou o trabalho da citação, consiste em fazer migrarem não

apenas palavras e temas entre textos, mas códigos, fantasmas e suas confluências. E a

percepção do texto está condicionada ao grau de envolvimento, ou mesmo de

comprometimento, do leitor nesse jogo que, por ser gigogne, imbrica leituras,

conseqüentemente, também gigognes, e confere uma dimensão gigogne ao intertexto.

As relações intertextuais ocorrem entre textos de diferentes autores, entre textos de um

(9)

mesmo autor, e entre textos e leitores. Caracterizam-se tanto em função do contexto em

que o emissor está inserido, quanto do contexto que (in)forma o seu receptor. E a leitura

se efetua, tão somente, na medida em que há esse envolvimento ou esse

comprometimento - formas de participação individual na intertextualidade. É o que

afirma, num artigo intitulado "La stratégie de la forme", Laurent Jenny:

Fora da intertextualidade, a obra seria simplesmente imperceptível, assim como a palavra de uma língua desconhecida. Efetivamente, só se captam o sentido e a estrutura de uma obra literária na sua relação com os arquétipos, eles próprios abstrações de longas séries de textos dos quais são, de certa forma, a invariante... Fora de contexto, a obra é impensável. [1976: 257]5

Somente a intertextualidade viabiliza a compreensão de um texto. Aquilo que,

nesse texto, não encontra eco na cadeia de informações previamente gerada por outros

textos (inclusive os "arquetípicos", seja por sua estrutura mítica, seja por seu caráter

canônico), passa despercebido ao leitor. O autor especifica:

Face aos modelos arquetípicos, a obra literária entra sempre em uma relação de realização, transformação ou transgressão... Sua percepção supõe uma competência na decifração da linguagem literária que só poderia ser adquirida na prática de uma multiplicidade de textos: do lado do decodificador, a virgindade é, portanto, totalmente inconcebível. [ibid.]6

Realização, transformação ou transgressão: tipos distintos de metamorfose do

decalque original. Seja qual for a relação entre os textos, ela é sempre lida, ou decifrada,

por um olhar já desvirginado por outros paradigmas literários, imbuído de uma

consciência crítica enquanto é receptivo ao que lhe é comunicado. É intertextual a

própria relação entre texto e leitor, pois, virtualmente, o texto que está sendo lido no

presente evoca outros tantos, lidos no passado, tornando-os perceptivos e receptivos uns

aos outros, num encontro às escuras, em níveis pré-conscientes e remotos, entre

histórias que, de alguma forma, se atraem.

5"Hors de l'intertextualité, l'oeuvre littéraire serait tout simplement imperceptible, au même titre que la parole d'une langue encore inconnue. De fait, on ne saisit le sens et la structure d'une oeuvre littéraire que dans son rapport à des archétypes, eux-mêmes abstraits de longues séries de textes dont ils sont en quelque sorte l'invariant... Hors système, l'oeuvre est donc impensable."

(10)

Gérard Genette, ousado, avança nesse mesmo sentido:

[o texto] nos convida a uma leitura relacional cujo sabor, perverso o quanto se queira, condensa-se bem nesse adjetivo inédito inventado por Philippe Lejeune: leitura palimpsestuosa7. Ou, para passar de uma perversidade a outra, se amamos verdadeiramente um texto, devemos esperar, de vez em quando, amar (no mínimo) dois ao mesmo tempo. [1982: 452]8

Assim, palimpsestuosa será igualmente a escritura que realiza, transforma ou

transgride sem, porém, abandonar os textos precursores. Escritura, por isso mesmo,

inclusive, perversa. O termo "perverso", que em sua acepção corrente significa

"malsão", "corrupto", será usado nesta dissertação sobretudo como conceito:

desvinculado do sentido clínico ou psicanalítico, o conceito de perversão inscreve-se

do quadro tipológico de Antoine Compagnon, concebido como forma de citação que

transgride o texto original, provoca desvios em seu(s) sentido(s), desloca seus sintagmas

e desafia seu modelo [1979: 362]. A perversão não abole o paradigma: abala-o; viola as

regras do jogo-livro, manipula-as; é uma desapropriação jocosa empreendida pelo

leitor/escritor desvirginado, em seu labor dual, plural, de certo modo promíscuo, entre

os textos passados e o texto presente.

Além de jogo, intertexto e perversão, outro conceito fundamenta esta

dissertação: o de terceira forma, que é uma das manifestações narrativas do jogo

intertextual. Essa expressão de Roland Barthes [1974] identifica, na obra de Marcel

Proust, a realização de um desejo de escrever: desejo carregado de pathos, pois, busca

primeira, "Proust busca uma forma que recolha o sofrimento (...absoluto pela morte da

mãe) e o transcenda" [ibid.: 335]9. Essa forma, a terceira, hibridismo entre ensaio e

ficção, metáfora e metonímia, significado e significante, é, acima de tudo, a solução

encontrada pelo romancista para exorcizar a dor - destilada através dos processos da

7Palimpsesto é o pergaminho antigo reaproveitado pelos copistas medievais: o texto original era apagado, mas, sob o novo, permaneciam os seus rastros.

8"[le texte] nous invite à une lecture relationnelle dont la saveur, perverse autant qu'on voudra, se

condense assez bien dans cet adjectif inédit qu'inventa naguère Philippe Lejeune: lecture palimpsestueuse. Ou, pour glisser d'une perversité à une autre: si l'on aime vraiment les textes, on doit bien souhaiter, de temps en temps, en aimer (au moins) deux à la fois."

(11)

inteligência (crítica) e apaziguada pelo viés do pathos da poesia e da prosa. A síntese

proporcionada pela terceira forma corresponde, para Barthes, à alternância estrutural

entre os dois caminhos da trama, o de Swann e o de Guermantes, dicotômicos a

princípio, mas que se descobrem confluentes na ótica retrospectiva do narrador.

Os mesmos dois caminhos que se prestam à metafora da contradição lúdica

contrição-liberdade, ilustram o contágio intertextual ensaio-ficção. E a terceira forma

apresenta-se como um desdobramento do trabalho da citação: A la Recherche du Temps

Perdu está eivada de fragmentos dos ensaios de crítica literária (entre outros) expostos

(sobretudo) em Contre Sainte-Beuve: o romance tem enxertos de textos (do mesmo

autor) sobre outros textos (de outros autores). Igual contaminação ocorre na obra

ficcional de Serge Doubrovsky. Ele próprio comenta, não apenas a intertextualidade,

mas o potencial reflexivo que ela contém:

Depuis le Contre Sainte-Beuve, moment essentiel dans la création de la Recherche

proustienne... on sait qu'il n'y a plus d'oeuvre littéraire qui ne contienne une réflexion de l'écrivain sur l'écriture, et où l'écriture elle-même ne constitue sa propre contestation. [1966: 249]

Reflexão entre obras, sobre obras; reflexividade que carrega a contestação da

obra na medida em que fornece os recursos à sua discussão, ou desconstrução, através

de mecanismos teóricos disseminados pelo corpo textual. Contágio, antídoto ou vacina,

a terceira forma opera de maneira auto-referente: escritura que trata de si-mesma.

Além de mesclar gêneros, a terceira forma também atende à necessidade de

Doubrovsky de falar sobre a sua dor, tão insistentemente, ao longo de seus cinco

romances autobiográficos, onde insere elementos de sua própria experiência de terapia e

questões psicanalíticas de ordem geral. A terceira forma no texto de Doubrovsky, assim,

é uma mistura de ensaio, ficção e psicanálise, o que a torna uma espécie de "quarta

forma", que ele mesmo batizou de autoficção.

Os romances autoficcionais de Serge Doubrovsky são: Fils (1977), Un Amour de

soi (1982 e 1990), La Vie l'instant (1984), Le Livre brisé (1989 e 1991) e L'Après-vivre

(1994)10. Sucedem-se como blocos biográficos que inobservam, porém, rigor

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cronológico. Autor, narrador e protagonista se confundem, assim como ao leitor que

tentar estabelecer limites entre eles ou entre os próprios livros, que se citam uns aos

outros (ao final de Un Amour de soi, por exemplo, o narrador anuncia a possibilidade de

vir a escrever Fils, que, no entanto, é o livro precedente na obra do autor). Os livros

citam, também, textos canônicos, inserindo exercícios de crítica literária na medida em

que são citados pelos protagonistas: Racine em Fils, Proust em Un Amour de soi e

Sartre em Le Livre brisé - o que faz destes cânones, palimpsestos destes romances.

Jogo intertextual e terceira forma: premissas que organizam esta análise e

permitem caracterizar Un Amour de soi como um ensaio ficcional sobre Un Amour de

Swann (e, por extensão, sobre Du Côté de chez Swann e, mais amplamente, A la

Recherche du Temps Perdu) - este, o objetivo básico da análise. Serão identificadas

algumas dimensões intertextuais entre as obras através de comparações e outros

elementos relacionais. Essa caracterização por meio de contrapontos tem como suporte

teórico principal a própria obra ensaística de Serge Doubrovsky. Esse objetivo e essa

metodologia norteiam-se pela possibilidade de ler o romance à luz dos ensaios do autor,

de apreender, nas entrelinhas da ficção, a crítica; esta, a hipótese. A intertextualidade,

assim, será buscada entre Un Amour de soi e Un Amour de Swann, e entre os dois tipos

de produção textual de Doubrovsky (a ficção e a crítica).11

No corpus estabelecido para esta análise incluem-se o romance Un Amour de soi

e parte da obra ensaística do autor, especificamente dedicada a Proust, que se limita a

três títulos: La Place de la madeleine, écriture et fantasme chez Proust [1974], livro

dedicado ao estudo da Recherche onde o autor trata o episódio da madeleine como

"matriz narrativa" e "metáfora ideal" edipiana, e realiza sua "arqueologia fantástica";

"Faire catleya" [1979], post-scriptum a La Place, sobre o eufemismo de Swann; e

"Corps du texte / texte du corps", artigo incorporado a Autobiographiques: de Corneille

à Sartre [1988], sobre o tema da viagem, o movimento da memória e o mito do

(13)

nascimento do livro, impulsionados pelo incipit de Du Côté de chez Swann12. Outros

ensaios de Doubrovsky também serão usados como balizas na medida em que

esclarecerem sobre elementos conceituais em Un Amour de soi.

A busca do leitor perverso surge em filigrana no texto do romance, pois ele

solicita a leitura dos ensaios acima mencionados, assim como postula um trabalho de

rastreamento das citações, provérbios e lugares-comuns alterados, pervertidos ao longo

do romance. Leitor perverso, pois entra no jogo da perversão citacional e integra-se ao

prazer de transgredir o paradigma e desapropriá-lo.

(14)

2 DIMENSÕES DO INTERTEXTO

Sob a metáfora do código, mesmo quando pura metáfora, há, ao menos, uma obsessão unificadora: a dialética entre lei e criatividade, ou - para retomar os termos de Apollinaire - a luta constante entre Ordem e Aventura.13

Umberto Eco

Na apresentação de Un Amour de soi [1990, re-edição]14, Serge Doubrovsky

descreve seu personagem: professor universitário que descobre, certo dia, estar

apaixonado, como Swann, por uma mulher qui n'était pas son genre e que, apesar de

seus cursos sobre Proust e de suas corridas ao analista, assiste, espectador de si mesmo,

ao amour tenace qui s'est tissé en lui, malgré lui, autour d'une femme e ao déroulement

inéluctable desse amor. Diferentemente de Swann, empreende um processo de escritura

para colocar a vida a limpo num face-a-face ficcional consigo mesmo que denomina de

"autoficção": única maneira de expor as feridas e as verdades que, de outra forma, se

esconderiam sob les alibis du romanesque.

O autor define seu romance como produto de um tempo distinto do de Swann.

Hoje, l'affrontement d'un homme et d'une femme que la société a faits (presque) égaux,

donc rivaux, n'est plus la voluptueuse invention de l'Autre, mais le duel brutal des

semblables. Os protagonistas são menos amantes (amadores) que profissionais da

literatura. Por isso, apesar da tragédia do confronto interpessoal, o prazer da escritura

consegue se insinuar no texto através de jogos de palavras, referências e citações, os

mais variados e inesperados, tornando-o, paradoxalmente, cômico. E a construção do

texto se opera conforme a cadência do tempo presente - tempo do refinamento perdido:

L'art du non-aimer exige son langage, cru et cruel. A civilisation décomposée, discours

brisé.

13"Sous la métaphore du code, même quand elle a été pure métaphore, il y a au moins une obsession unificatrice: la dialectique entre loi et créativité, ou - pour reprendre les termes d'Apollinaire - la lutte constante entre l'Ordre et l'Aventure."

(15)

Até aqui, Doubrovsky já conseguiu confundir autor, narrador e personagem, pois

escreve uma autobiografia; e confunde Serge, o protagonista, com Proust, quando

escreve (a vida) para destilar a dor (mecanismo identificado por Barthes relativamente à

terceira forma, como já mencionado), e com Swann, ao deixar-se enredar pelo seu amor

por Rachel, "mulher que não faz o seu tipo", mas que ele envolve e em torno da qual seu

amor se "desenrola inelutavelmente". E a história ainda nem começou. Anuncia a

intertextualidade e também o poder da palavra: a sua, diversa daquela de Swann, é

"crua", "cruel", "sem álibi romanesco", "quebrada", arma do discurso da "civilização

decomposta", linguagem do desamor entre dois profissionais do verbo.

O texto fragmentado que Doubrovsky antecipa em sua apresentação é explicado

como reflexo do tempo decomposto: mimetismo estrutural, qualidade camaleônica de

um autor que busca a expressão - escrita e poética - de um tempo desavido; ou jogo de

espelhismos, que tece a trama e a textura - esfrangalhada - da escritura. Texto partido,

partitura do texto: na busca da identidade com Swann ou Proust, destaca-se a

discrepância, o desconcerto, a dissonância: linhas cortadas que pautam a história

narrada, engajada na representação da harmonia perdida.

Quanto ao tema do tempo, ele será retomado nas últimas páginas do romance, no

diálogo (imaginário) final entre Serge e Proust, onde Serge diz que "Ce n'est pas une

question de pays, mais d'époque. Toi, tu n'es sans doute pas de ton temps!" [AS: 475],

em alusão possível ao caráter inovador da obra proustiana; e, para a futura namorada:

"on est à la fin du XXe siècle faut être moderne" [AS: 477]: estabelece o contraponto

entre o tempo de Proust e o atual, e a necessidade de agir conforme o seu próprio tempo.

Já a temática do jogo surge associada a outras: "Un amour est comme une partie,

un jeu, une bataille. Je n'aime pas perdre." [AS: 411]; e "On joue la Règle du jeu à la

cinémathèque, je vais aller le revoir, c'est un de mes films préférés." [AS: 163]. O jogo

não será assunto do romance, mas ele ilustra os temas do amor e da arte - chaves na

relação amorosa de dois críticos de literatura.

Nas entrelinhas da apresentação, o autor esclarece seu código discursivo para ser

(16)

seu texto: desembaraça-se do estorvo conceitual de sua presença ao escrever uma

autobiografia - gênero em que ela é, afinal, incontornável. E, camaleônico e perverso,

transveste-se ora de autor, ora de narrador, ora de protagonista, não apenas esquivando o

impasse da presença, mas, ironicamente, multiplicando-a, proliferando-se pelo texto.

Dessa forma, a escritura para Doubrovsky espelha o tempo vivido, mas também,

como disse num ensaio,

se constitue en reflet total du sens de l'être; elle fait affleurer dans la trame de son discours, le sens symbolique qui hante perpétuellement l'existence de l'écrivain. [1966: 215]

A escritura é o espectro cuja transparência revela o "sentido simbólico" que

assombra e encanta o escritor, e deixa entrever os seus fantasmas.15

O fantasma representa o imaginário que se manifesta no texto como o seu

estofo simbólico. Esse é o sentido atribuído ao termo por Doubrovsky na maioria de

seus ensaios e em Un Amour de soi: ora sinônimo de assombração, ora designação

genérica e inespecífica de roteiros ou cenas imaginárias, ilusórias ou fantansiosas. E é

nesse sentido que o fantasma aparecerá nesta dissertação (embora ele também pertença

ao universo vocabular da psicanálise com significados mais específicos, e, em La Place

de la madeleine, o autor o defina como elemento das neuroses obsessionais; na tradução

para o português de textos de crítica literária francesa, costuma-se usar "fantasmagoria"

para "fantasme").

A escritura e a palavra revestem-se do poder de atrair, como um ímã, para a

superfície discursiva, os símbolos, mitos e imagens que animam o universo

fantasmático do escritor. A. Compagnon, em seu estudo sobre a citação, também fala do

poder da palavra: "A noção de trabalho [da citação] é rica: é a potência em ação, o poder

simbólico ou mágico da palavra, carmen ou oração..." [op. cit.: 36]16 Verbo, potência

criadora, imantada do poder da re-citação, que imita, transmuta ou perverte, em

15O sentido de "simbólico", uma vez que Doubrovsky não se alia à teoria lacaniana (onde "simbólico" refere-se à ordem da linguagem), será entendido aqui e ao longo desta dissertação como expressão de equivalência imagética (sua acepção mais comum).

(17)

relações de realização, transformação ou transgressão (como já foi dito a respeito da

interação intertextual) de um texto original, mas que também exorciza, por sua força

mágica, os fantasmas, declarando-os à luz da leitura.

Serge comenta sobre o estatuto da citação e faz a sua defesa num diálogo com

Rachel:

- Et alors? Tu te crois peut-être original? Tu crois sans doute ta tête unique?

- Mais non, tu m'as déjà dit que j'avais celle de ton père! Je ne prétends pas non plus avoir quelque chose d'original dedans. Je sais bien que je suis fabriqué de clichés, de citations, d'emprunts. Mais quand même... je ne suis pas à ce point le singe de quelqu'un! [AS: 281]

O ser, ou o texto, composto de citações, não é mera simia, imitação ou caricatura

grotesca. E a originalidade sobrevive através do próprio processo de "fabricação"

citacional, que é sempre uma forma única e individual de apropriação ou "empréstimo".

A decodificação preliminar ou precipitada de Doubrovsky, na apresentação do

romance, evidencia certa necessidade de indução ou condução da leitura - enquanto

autor. Mas, evidentemente, como crítico, ele reconhece, em eco a Barthes [op. cit.], que

"l'auteur meurt" dès l'instant que sa création se referme sur elle même et le quitte. La parution du livre, c'est la disparition de l'auteur (...) pour la bonne raison que ce n'est pas l'écrivain qui pense son langage, mais le langage qui pense en lui... Le fameux "moi profond" [proustien] de l'écrivain est donc, en fait, un moi sans fond, coextensif au langage... [1968: 145-146]

A linguagem se inscreve e permanece no texto, ao passo que o autor, delével,

cede a iniciativa à consciência leitora que, esta sim, lhe confere um sentido, ou uma

forma, na medida em que a reconhece e amealha sinais familiares de outras tramas já

visitadas. Mesmo assim, "La totalité du sens est toujours, et par principe, en suspens, de

par la nature du langage... comme de par la situation, ontologique et historique, de

l'oeuvre." [1966: 192] - obra e sentido eternamente carmeados, a cada releitura, fazendo

do receptor um co-tecelão do infinito da citação.

Serge Doubrovsky, todavia, apesar de não dispensar por completo as metáforas

cerzideiras, preocupa-se menos com as texturas da escritura do que com o confronto,

que constitui o ato de leitura, entre dois seres definidos cultural e historicamente. Ele,

que se refere ao affrontement d'un homme et d'une femme, rivais em duelo, também

(18)

Univers personnel, par-delà la thématisation d'un savoir, affrontant un autre univers personnel, dans un rapport d'élucidation mutuel qui passe par la totalité d'une culture historique... l'oeuvre critique appelle à son tour, pour être justifiée, la reconnaissance et la contestation du lecteur. A ce mouvement de renvoi et de dépassement perpétuels, à ce mouvement circulaire, pas d'arrêt... Ecrivain, critique, lecteur: ce qu'on trouve invariablement, au point de départ comme au point d'arrivée de cette aventure à la fois commune et intime, c'est une subjectivité pleine et entière en exercice. [1966: 257]

Leitura, crítica e escritura, exercícios subjetivos que conjugam o particular e o

coletivo numa aventura circular, ininterrupta, entre emissor e receptor - o segundo aceita

o convite para o debate da obra, devolve-a ao primeiro, no circuito que, no caso

específico de Doubrovsky, constitui uma estratégia suplementar de seu trabalho de

professor.

Essa simetria, porém, paradoxalmente, expressa a semelhança na diferença, na

irregularidade, sendo que o sentido que se aufere do outro, além de estar sempre "em

suspenso", oscila entre o uno e o múltiplo, entre o objetivo e o subjetivo, num confronto

- affrontement ou lutte - sempre inaudito:

la critique, comme toute forme de littérature, est le lieu d'une lutte avec l'Ange, elle retrouve, à chaque moment, à chaque page, devant elle, cette totalité indécomposable et pourtant multiple, une et contradictoire, consciente et inconsciente: l'homme. [op. cit.: 56]

A aventura, além de ser a trajetória circular entre leitura e escritura, é, também,

parte do binômio que constitui a dialética que fundamenta todo jogo ou texto: Umberto

Eco, citando Apollinaire, fala de Ordem e Aventura [1988: 274] - os pólos opostos

respectivos aos princípios antagônicos presentes em toda obra, mencionados

anteriormente: lei e criatividade, estrutura e imaginário. É na tensão entre os opostos

que se agenciam os textos, na combinação irregular resultante da dialética entre o que

será designado, de agora em diante, como código e fantasma.

O fantasma (criatividade ou imaginário), já foi dito, representa o "sentido

simbólico" que habita o escritor e, por extensão, sua obra. Já o código, a estrutura

formal ou a lei (conjunto de regras) que organiza o texto, compõe uma pluralidade, um

complexo de códigos e sub-códigos ("códigos gigognes") que caracterizam a relação de

um texto com outros. De acordo com Barthes

(19)

miragem de estruturas... são estilhaços desse algo que sempre foi já lido, visto, feito, vivido: o código é o sulco desse já. Ao remeter àquilo que foi escrito, isto é, ao Livro... faz do texto o prospecto desse Livro. Ou ainda: cada código é uma das forças que podem apoderar-se do texto (cuja rede é texto), uma das vozes que compõem a malha do texto. [1992: 54]

"Miragens" ou "metáforas", os códigos conformam "sulcos" que estriam o texto

e permitem ao leitor perceber, como que em braile, nessas asperezas, "perspectivas de

citações" que conectam um texto a outros, evocados por afinidade ou estranhamento, e

incluem-no no circuito da interminável escritura do Livro borgiano.

A seguir, serão visitados um dos códigos e alguns dos fantasmas que marcam ou

habitam Un Amour de soi.

2.1 O código - tensão entre hermenêutica e estética da recepção

a hermenêutica de Serge Doubrovsky; tensão entre hermenêutica e estética da recepção: do paradoxo à cumplicidade; o leitor perverso.

Um dos códigos usados por Doubrovsky em Un Amour de soi é tributário da

concepção hermenêutica da obra literária. Sua manifestação na estrutura do romance

será vista mais adiante, junto com os elementos do imaginário da obra, pois ela se

evidencia e toma corpo à medida que aparecem os seus fantasmas. A concepção

hermenêutica, porém, já é identificável em seus ensaios: está explícita na sua

compreensão da Nouvelle Critique e da estética da recepção, e se estende à sua

proposição de jogo aos leitores de seu romance; em Un Amour de soi, ela se evidencia

na citação da definição de Barthes para o código hermenêutico.

A hermenêutica contemporânea repousa sobre a idéia da busca de uma verdade

que precede o texto, mas desenvolveu-se como uma atitude crítica que tenta desvendar o

caráter hermético do texto, ou seja, suas regras internas e seu modo particular de

organização estrutural. Essa organização encobre um sentido a ser descoberto e

interpretado, e comporta um centro agenciador da obra, que tanto pode ser identificado

numa das partes do texto, supostamente coordenadora das demais, quanto na figura do

(20)

da obra, como "uma espécie de sistema solar que mantém em sua órbita toda sorte de

coisas: língua, motivação, intriga..." [SPITZER 1970: 62]17

Doubrovsky fala da arquitetura de sua obra como uma trama, uma "rede infinita

de significações" respectivas ao texto impresso, mediatizada por um "universo

imaginário" e em cujo centro está um homem definido historicamente:

L'oeuvre n'est rien d'autre que cet entrelacs de significations infinies que nous visons sur l'objet matériel qu'est le texte imprimé... L'univers imaginaire de l'oeuvre n'est pas une entité substantielle, ...il médiatise, par toute une série de relais complexes et hiérarchisés qui forment l'organicité propre de l'oeuvre, l'existence concrète d'un homme. Ce n'est nullement nier ou trahir la spécificité de l'imaginaire que de découvrir, dans sa trame, les fils évidents ou cachés qui le relient à un être-au-monde historique: c'est, au contraire, lui faire rendre la totalité de son sens. [1966: 101-102]

Esse homem no centro da obra é uma característica da estrutura hermenêutica. O

mesmo ocorre com a concepção que Doubrovsky exprime a propósito da Nouvelle

Critique, da qual participara: "Convergence, caractère synthétique, obsession centrale

définissant une réalité personnelle, motifs-clés, articulations: [ce sont les] maîtres mots

de la nouvelle critique..." [ibid.: 68].

O padrão se repete relativamente à assimilação da estética da recepção,

incorporada ao seu quadro teórico, mas que continua a ratificar a conformação de um

centro agenciador e difusor:

Les sens multiples, que toute lecture fait surgir et qui passent les uns dans les autres, se constituent par un tourbillon, un tourniquet: ils s'articulent entre eux, autour d'une arête centrale; ils convergent vers un foyer. En d'autres termes, les

significations diverses revoient à un sens ultime qui en fait l'unité intime, donnée dans la totalité concrète de l'objet. [ibid.: 65]

A postura hermenêutica fica evidente no decorrer do romance na única citação

explícita e detalhada de uma corrente teórica, inserida, como que didaticamente, num

diálogo entre Serge e Rachel:

- ... Je suis plongée dans Barthes, dès le début, ça ouvre de nouveaux horizons... - Quoi par exemple?

- La distinction... de cinq codes, qui vont gouverner tous les signifiés narratifs. Il y en a surtout un qui me fascine, ce qu'il appelle le code herméneutique...

- Qu'est-ce qu'il entend par là?

(21)

- Autant le citer exactement, laisse-moi chercher le livre. Tiens, là, page 26,

l'inventaire du code herméneutique consistera à distinguer les différents termes (formels), au gré desquels une énigme se centre, se pose, se formule, puis se retarde et enfin se dévoile... " [AS: 93]

Doubrovsky é hermenêutico, inclusive, ao propor um jogo de citações aos

leitores, uma vez que para essa tradição de interpretação literária "Ler é uma Arte, que

depende do talento, da experiência, da cultura do indivíduo." [HALLYN 1987: 317]18 E

para jogar o seu jogo, é preciso poder reconhecer as regras, os clichês, as referências

literárias e históricas que ele semeia ao longo da narrativa. Ele joga, não apenas com a

linguagem - fragmentada, críptica, plena de enigmas -, mas também com a

receptividade, apostando no sucesso da "arte da leitura", na busca de um decifrador à

altura de seu código.

O texto de Serge Doubrovsky, assim, se alimenta da tensão entre a contrição da

hermenêutica - uma estrutura previamente concebida, composta de centro e partes

periféricas (que pretendem induzir à busca de uma "verdade" ou, mais modernamente,

de um sentido axial com relação aos demais no texto) - e a liberdade inerente à atividade

leitora - que, se por um lado, é uma característica do jogo (indiretamente vinculada à

"arte" de decifrar o texto), por outro, constitui a negatividade na qual, sob a ótica da

estética da recepção, todo texto se funda.

A negatividade é essa qualidade virtual de um texto, já comentada, em que ele só

é percebido na medida em que o leitor o reconhece, ou seja, quando os paradigmas já

formulados pelo leitor permitem-lhe reconhecer os paradigmas manifestos no texto. É a

consciência leitora quem confere o(s) sentido(s) do texto, na realização da comunicação

de efeitos de sentido por parte do texto; o que não é comunicado, permanece ausente ou

latente, portanto inexistente, negativo. Esse princípio vazio constitui a "porosidade" e a

"seletividade dos modos de representação e de percepção", de que fala Wolfgang Iser

[1979: 297]; a negatividade é uma virtualidade a ser ultrapassada pela consciência

leitora, que conferirá uma forma ao texto enquanto interage com ele.

(22)

O texto de Doubrovsky está repleto de vazios: ele é poroso, quebradiço,

esfacelado. Evolui na irregularidade lacunar de seu caráter telegráfico, e instaura uma

lógica da descontinuidade, imprevisível, que dificulta o fluxo da leitura, tornando-a

tensa e alerta às supressões de pontuação e articuladores, tendo por balizas apenas a

formação de parágrafos e a divisão em capítulos. É como se o autor transcrevesse um

discurso oral: as alterações gráficas (uso de itálico, caixa alta, e espaçamentos

inortodoxos entre palavras, por exemplo) chamam atenção para as conexões implícitas

entre os segmentos textuais, convidando a um mergulho empático no que (não) é dito.

Um exemplo desse esfacelamento discursivo (que Serge Doubrovsky, a

propósito do estilo de La Bruyère chama de "sintaxe do descontínuo", [1980: 59]) pode

ser identificado no seguinte parágrafo:

dix ans tout juste dix ans déjà c'était en 1960 tiré brusquement en arrière je change d'époque je coule à pic vagues fantômes une dizaine perdus dans la vaste salle cherche en vain son simulacre depuis cinq ans débarqué en Amérique moi je croyais encore à tout dur comme fer à la dialectique à Sartre à ça où était-elle je tâtonne dans ma mémoire poreuse je m'évapore [AS:15-16]

"Memória porosa", como o próprio texto, que pretende expressá-la, refleti-la,

esponja que ora apaga as imagens, ora as absorve, justamente pelos poros, e inflaciona a

malha do texto e se infiltra pelo não-dito.

Em sua análise da autobiografia francesa contemporânea, Hélène Jaccomard

[1993] estuda o gênero autoficcional de Doubrovsky e, relativamente ao convite que o

autor faz a seu leitor, acredita que "é uma viagem pelos meandros do inconsciente a que

somos convidados... às suas dobras menos aprazíveis, menos acessíveis à palavra e à

razão" [ibid.: 85]19 A superfície desavida do texto assinala a existência dos próprios

interstícios, estes também informantes do leitor.

Na relação intertextual entre leitor e texto, Jaccomard enfatiza os artifícios de

uma comunicação implícita, de que se serve a autoficção:

O desafio é colocar a nu um texto escrito em tinta simpática nos espaços em branco... texto bem mais pobre, porém, bem mais tranqüilizador pois tangível...

(23)

repetições, leitmotifs, imbricações, recuos "têm um valor hipnótico", cuja função seria "adormecer a vigilância do Superego", como disse muito apropriadamente Michel Picard. [ibid.: 285]20

O discurso que faz apelo ao inconsciente, assim, hipnotiza o leitor, desarma-o da

atitude racional e exige uma postura empática, receptiva ao extremo, fazendo,

justamente, da estética da recepção um elemento-chave da estratégia comunicativa do

texto. É ainda Jaccomard quem comenta o valor da estética da recepção na autoficção:

um verdadeiro espelho do processo da recepção colocado em ação... como se esse texto fosse um exercício prático de estética da recepção: acúmulo de vazios sintáticos ou narrativos e de distorções temporais para estimular a atividade leitora, redundâncias estilísticas e repetições de acontecimentos para facilitar sua memorização, transparentes segredos psicanalíticos, grandes fios textuais para orientar o julgamento sobre o personagem principal. Tudo isso implica e bloqueia, simultaneamente, a via hermenêutica. [ibid.: 294]21

Estética da recepção e hermenêutica convivem como pólos opostos, em pleno

paradoxo: esta enfoca a relação autor-texto; aquela, o circuito texto-leitor; esta,

empenhada na valorização do sentido único e norteador; aquela, na promoção da

pluralidade das leituras; esta, um movimento de focalização e fechamento; aquela, de

diversificação e abertura; sístole e diástole. Sua relação é tensa, mas, também, dialética

e dialógica: é no vai-e-vem entre ambas que se percebe o código do texto, sua lei

interna, onde o fantasma se contextualiza. O relacionamento revela-se perversamente

cúmplice. É o que denuncia Umberto Eco ao evidenciar uma contradição da crítica

moderna: o desconstrutivismo e certas abordagens psicanalíticas vinculam-se ao

tradicionalismo hermenêutico, o qual, em aparência, contestam: "O reconhecimento

lacaniano da ordem simbólica enquanto cadeia significante, inspirando novas práticas

de desconstrução e de deriva, levou os hermeneutas seculares a reescreverem

20"Le défi, c'est de mettre à nu un texte écrit à l'encre sympathique dans les espaces blancs... texte bien plus pauvre, mais bien plus rassurant parce que saisissable... répétions, leitmotifs, imbrications, retours en arrière 'ont une valeur hypnotique' dont la fonction serait 'd'endormir la vigilance du Surmoi', dit très justement Michel Picard."

21"un véritable miroir du processus de la réception mis en actes... comme si ce texte était un exercice pratique en esthétique de la réception: accumulation de blancs syntaxiques ou narratifs et de distortions temporelles pour stimuler l'activité lectorale, redondances stylistiques et répétitions d'événements pour faciliter leur mémorisation, transparents secrets psychanalytiques, grosses ficelles textuelles pour orienter le jugement sur le personnage principal. Tout cela implique et bloque simultanément la voie

(24)

continuamente, em toda leitura, a nova Torá." [1988: 220]22 (- crítica moderna que

busca no âmbito da linguagem - maná do "simbólico" lacaniano - manancial da própria

busca por novas formas de ler o mesmo Livro.)

Além do falso paradoxo entre hermenêutica e estética da recepção, que encobre

uma cumplicidade, há uma relação, clandestina, entre jogo, desconstrução, busca de

uma verdade (um sentido) e tessituras: "o texto como símbolo [para os novos

hermeneutas] não é mais lido para descobrir uma verdade que estaria alhures. A

verdade está no próprio jogo da desconstrução, no fato de reconhecer o texto como

tecido de diferenças e vazios." [ibid.]23

Serge Doubrovsky, "hermeneuta secular", em meio a seus "entrelaçamentos de

signicações infinitas", "sentidos múltiplos" que convergem para um "sentido último que

realiza a unidade íntima" da obra, "enigmas centrados, postos, formulados, retardados e

desvelados" faz, entre outras coisas, uma autêntica cabala, aventura de um judeu errante

pelos meandros das malhas e falhas dos textos que lê, decifra, recodifica e devolve ao

emaranhado do intertexto - sua contribuição à nova, e eterna, Torá.

Doubrovsky - romancista, tradutor, professor, crítico e teórico da literatura -

oscila entre gêneros, claudica entre formas, imiscui-se na escritura do Livro infinito:

inunda-se dos precursores, esvai-se em citações. E, ao entabular seu jogo intertextual,

estabelece a possibilidade de leituras gigognes: o leitor não familiarizado com as

referências implícitas lê a história de Serge e Rachel em meio a trocadilhos e efeitos

sonoros. "Venu, vu, pas convaincu." [AS: 24], por exemplo, pode ser entendido como

busca de uma comicidade através da rima. Esta perversão da frase de César, porém, faz

a consciência leitora transitar entre o texto narrado e a lembrança de outros textos. Já

não se trata apenas daquilo que M. Picard denominara de "espaços gigognes", relativos

22"La reconnaissance lacanienne de l'ordre symbolique comme chaîne signifiante, en inspirant de nouvelles pratiques de déconstruction et de dérive, a amené les herméneutiques séculières à réécrire continuellement, dans toute lecture, la nouvelle Tora."

(25)

à integração da consciência ao ilusório (Cf. 1); somados a estes, há os tempos gigognes,

na medida em que a leitura solicita simultaneamente vários tipos de memória e de

temporalidade [PICARD 1989: 173] - irrompem, no curso da leitura da história de Serge

e Rachel, a memória de César e o tempo necessário à sua inclusão no fluxo leitor.

G. Genette, citando Ph. Lejeune, denomina essa leitura de palimpsestuosa,

relacional entre, pelo menos, dois textos (Cf. 1). Sua "promiscuidade" é, também, essa

irrupção, intromissão ou sobreposição de tempos, que levam o olhar leitor desvirginado

por paradigmas já visitados a relacionar um texto a leituras passadas, na busca de uma

identificação de decalques originais metamorfoseados (realizados, transformados ou

transgredidos - os três tipos básicos de perversão citacional do texto; Cf. 1).

Na medida em que o leitor passa a privilegiar o palimpsesto, ou o apelo do texto

à perversão (da citação), ele entra no circuito do que U. Eco chama de "dialogismo

intertextual" [1989: 120]: uma constante fiscalização de sua competência leitora, de seu

saber enciclopédico - a enciclopédia de citações, jargões e referências que lhe são

apresentadas pervertidas, adulteradas, impondo um "tempo da citação" [ibid.: 118]:

tempo duplicado, gigogne, que distrai o leitor do drama do casal de protagonistas, trai,

portanto, o destaque ao casal, e comunga com a "estratégia das variações" textuais

[ibid.: 129], com a própria competência enciclopédica - leitor voyeur de sua própria

leitura, narcísico (desdobrando, por mimetismo, o narcisismo da escritura

autoficcional).

A autoficção de Un Amour de soi, portanto, além de convidar aos meandros do

não-dito, seduz à promiscuidade intertextual, e postula o leitor de seu código lúdico24:

busca o leitor perverso que vai procurar, dentro dos "graus de dificuldade lingüística" e

da "riqueza das referências", as "chaves, alusões, [e] possiblidades mesmo que variáveis

de leituras cruzadas", oscilando no "limite sutilíssimo que separa [a] cooperação

interpretativa [ou seja, o aporte do leitor-receptor] da hermenêutica" [ECO 1986: 154].

(26)

Leitor, esse outro hermeneuta secular empenhado na decifração do livro-jogo e que

surge no texto, assim como os elementos citacionais, em filigrana, inscrito e implícito.

Texto, memória e tempo porosos por onde se infiltram o leitor e sua

enciclopédia, balizados pelas intermitências da relação entre hermenêutica e estética da

recepção: código que expressa a angústia da influência recíproca em mais uma

dimensão do intertexto. Esse código, esse déjà-lu, é um entre muitos que agenciam o

funcionamento do texto. Conecta o texto de Doubrovsky a outros, com relação aos quais

é uma "perspectiva de citações", miragem ou metáfora. É sempre um entre-dois, uma

alusão, uma invocação. Também o fantasma pode ser considerado como uma

perspectiva de citações. É o que se verá a seguir.

2.2 O fantasma - espectro de citações

a psicanálise existencial de Serge Doubrovsky; a terceira forma acrescida do elemento psicanalítico; o inconsciente - tema e pretexto em Un Amour de soi.

A crítica literária abriga várias correntes de abordagem psicanalítica. Serge

Doubrovsky faz o que chama de "psicanálise existencial" e define como tributária de um

amálgama de trabalhos de Sartre, Merleau-Ponty, Marx, Freud e Hegel, onde privilegia

o homem enquanto ser definido histórica e culturalmente [1963: 20]. Importa-lhe,

porém, a existência imaginária do homem, não sua biografia; e, sobremaneira, o

resultado de sua linguagem, que alinhava, na obra, o seu universo imaginário numa

infinitude de significações [1966: passim.]. E, mais pontualmente, nessa obra, destaca o

que a põe em movimento, gera sua escritura, anima o desejo de dar-lhe forma:

Ce qui m'intéresse, dans la perspective de cette étude (quel est le pouvoir génératif du langage? quel dynamisme lance et propulse un texte?), c'est ce que, des virtualités signifiantes de la langue, sollicite, retient, accroche l'attention, il vaudrait mieux dire, le désir de l'écrivain. [1988: 51-52]

O autor é um homem definido, também, por sua linguagem: homem disseminado

(27)

parte, seu fantasma. É a identificação desse desejo que leva Doubrovsky a inserir o

inconsciente na sua psicanálise existencial:

Ce mouvement de l'existence, j'ai longtemps eu tendance à en rendre compte à travers les catégories générales de l'être-au-monde, aux structures "existentielles" que la philosophie du même nom avait peu à peu dégagées. A quoi j'ai été amené, par mon cheminement personnel, à ajouter l'autre fonctionnement, subtil, retors, à l'oeuvre: celui de l'inconscient. [op. cit.: 6]

A terceira forma, que está na base da autoficção, também atende às necessidades

de um desejo - o de "escrever, recolher e transcender o sofrimento", nos termos de

Barthes. A simbiose de ensaio e ficção, assim, traduz um imperativo: sanar, através da

combinação entre logos e pathos, pela escritura, uma dor. Doubrovsky, ao acrescentar o

"funcionamento do inconsciente", seja a seu escopo crítico, seja a seus romances,

reforça o movimento de superação do sofrimento, pois o inconsciente é o âmbito do

imaginário, do mítico e do simbólico, e "o mito, junto com o símbolo, ajuda a suportar a

dor da existência" [ECO 1988: 226]25.

O inconsciente e a psicanálise são tema de Un Amour de soi: o pensamento de S.

Freud é citado e compartilhado pelo narrador, ao lado de outras afirmações de ordem

psicanalítica:

D'après Freud, c'est la définition de l'inconscient. Mon mal, je suis d'une inconscience extrême, un Ça ambulant. [AS: 59]

L'inconscient ne connaît pas la contradiction. Il m'envoie des désirs contradictoires. Mon principe de réalité ne fonctionne pas, il est bloqué. Du coup, à travers moi Ça débloque. [AS: 260]

Freud dit que l'affect, dans un rêve, est toujours vrai, c'est la représentation qui est fausse. [AS: 265]

Mais ça, c'est au niveau conscient. Il y a l'autre. Sur l'Autre Scène, on joue une toute autre pièce. Son amour n'est pas enfui, enfoui. Sa passion a pris le maquis, elle se cache. Elle se la cache à elle-même. Moi, je la retrouve, je la déniche... L'inconscient ne peut pas fonctionner à sens unique... Depuis les Grecs, on sait qu'un oracle peut s'interpréter par son sens contraire, il y a toujours les deux sens. [AS: 422]

Já a atitude com relação a J. Lacan é de antagonismo:

(28)

[Rachel] s'est mise aux Écrits de Lacan... Le début, ça va encore, mais avec "Fonction et champ de la parole", je suis perdue. Le séminaire sur la Lettre volée

aussi, je ne suis pas sûre de comprendre. Je la rassure. Personne ne comprend, tout le monde fait semblant, c'est fait pour. [AS: 276]

Serge refere-se pejorativamente às reuniões de estudo e trabalho de Rachel como

"les cancans de Lacan" [AS: 426] e faz do psicanalista um personagem - menor - do

livro (que convida Rachel a freqüentar sua Escola Freudiana).

A presença do inconsciente e da psicanálise como temas permitem ao autor

reforçar a hermenêutica da obra: o processo terapêutico é encarado como hermenêutico

("Passés, présents, il faut trouver le pourquoi de chaque mot... Je scrute mes énigmes.",

[AS: 23]), e ao fazer do analista um dos (poucos) interlocutores do personagem, devolve

a este, circularmente, suas próprias questões por meio do espelhamento de sua própria

linguagem - em mais uma dimensão do trabalho da citação. É o que Doubrovsky explica

num ensaio:

pendant la séance, l'analyste est payé pour écouter: esclave du langage de l'autre, qui seul parle; son "intervention" pour oraculaire et véridique qu'elle soit, n'est qu'écho. Faisant entendre au patient sa propre parole, le statut de la parole analytique est la citation... langage-miroir qui, du lieu de l'Autre, fait retour à Narcisse. [1980: 234]

A grande interlocutora de Serge, porém, é Rachel, e seu diálogo é concebido

como um exercício de hermenêutica: "Dans notre code herméneutique, c'est ainsi qu'on

s'inter-prète." [AS: 95] A relação da dupla de protagonistas está revestida da obsessão de

auto-desvendamento e revelação mútua. A interpretação recíproca funciona como uma

sucessão de charadas e condiciona a interpenetração simbiótica que caracteriza a relação

do casal. Seu diálogo, porém, é pautado pela recorrência de cada qual a seu analista, e às

questões que estes suscitam.

Em La Place de la madeleine, Doubrovsky realiza o que apelida de "arqueologia

fantástica" [1974: 148], tomando de empréstimo a Foucault [1987] a noção de

investigação de camadas (do saber), e rastreia, na espessura do espaço do texto

proustiano, os fantasmas da Recherche. Em apropriação mimética, será feita, aqui, uma

"arqueologia imaginária" de Un Amour de soi: não se trata de reproduzir sua abordagem

psicanalítica, nem de inventariar os elementos do universo imaginário do romance, mas

(29)

dedicada a Proust, e em seus comentários acerca dos fundamentos psicanalíticos do

gênero que criou - a autoficção. O destaque de certos fantasmas implica, basicamente, a

detecção de alguns mitos e símbolos através da recorrência de termos, expressões e

referências literárias, que se organizam em cadeias significantes. Estas constroem os

efeitos de sentido entre níveis distintos de consciência; elas não revelam os segredos do

inconsciente do autor (que não está em questão), mas elas informam sobre os fantasmas

da obra; elas são "geradores" de texto (como os definiu Jean Ricardou [1967: passim.]:

elementos da legibilidade da atividade generativa, resultante de suas leis de composição,

ou seja, de seu código), "vocábulos produtores" [ibid.] ou motores que expressam o

desejo do autor de dar-lhe forma.

2.2.1 Incipit e mise en abyme - mito do nascimento

incipit; mise en abyme; o incipit e o prólogo de Proust vistos por Doubrovsky: nascimento, circularidade, espiral e viagem; o incipit de Un Amour de soi: dicotomia e desdobramento.

O interesse pelo incipit de A la Recherche du Temps Perdu levou Doubrovsky a

escrever, depois de La Place de la madeleine (a "arqueologia fantástica" da Recherche),

um post-scriptum - "Corps du texte / texte du corps" [In: 1988] - sobre a idéia fundadora

da obra, que, segundo ele, está inserida na mise en abyme que constituem tanto o incipit,

quanto o prólogo de Du Côté de chez Swann.

Originalmente, o incipit era a primeira letra de um texto medieval, a iluminura

que reproduz, em miniatura e ornamento, alguma referência ao próprio texto. É,

portanto, uma mise en abyme26 que introduz a frase inicial por meio de uma redução

embelezada do texto como um todo. Ao designar, modernamente, as frases iniciais, o

incipit - a "abertura" do texto - mantém seu caráter de mise en abyme, tem valor

fundador, e é responsável pelo impacto inaugural da recepção.

(30)

A mise en abyme constitui uma espécie de resumo intratextual. Para Lucien

Dällembach, é "todo enclave que mantém uma relação de similitude com a obra que o

contém." [1977: 18]27, seja no início, no meio ou no final do texto. É uma citação de

conteúdo ou auto-citação; tem, portanto, caráter especular. É, também, um elemento

lúdico, pois reproduz, noutra escala, uma perspectiva isotópica por redução,

condensação, e/ou deslocamento, transfigurando o conteúdo, servindo de código, por

analogia ou oposição, à leitura do texto.

A hipótese desenvolvida em "Corps du texte / texte du corps" sobre o incipit de

Du Côté de chez Swann é de que seu primum mobile, aquilo que aciona o texto, é a

"litania pronominal" [ibid.: 52]: a repetição de "je", na primeira e na última frases da

Recherche ("Longtemps je me suis couché de bonne heure.", [Du Côté de chez Swann:

3]; e "...ne manquerais-je pas d'abord d'y décrire [dans mon oeuvre] les hommes...", [Le

Temps retrouvé: 353]), funciona como alegoria da busca proustiana, busca de "ce moi

en déperdition dans le temps, en dissolution dans l'être, sans cesse remémoré,

remembré, retiré de son néant par l'acte de profération28 même." [ibid.: 52-53] "Je"

inicia o movimento de uma escritura de desconstruções de temporalidades e

perspectivas, na busca da recomposição e da constante recriação do "moi". Essa dupla

postulação - a "dissolução do ser" e a "proferição do eu" - promove o jogo de claro e

escuro, luz e sombra, vigília e sono, e o paradoxo das "noites em claro" que produzem,

não apenas a lembrança de locais e de pessoas conhecidas pelo narrador, mas a

"lembrança do nascimento da lembrança" [ibid.: 47] - matriz geradora do texto.

Doubrovsky ressalta que "o dever e a tarefa do escritor", para Proust, é propiciar

o nascimento, mítico, do livro que se desgarra do autor em um processo de

partenogênese:

Le commencement de la Recherche est recherche du commencement, il ne saurait faire partie de l'histoire qu'il raconte, puisqu'il est, comme tel, anhistorique: tout récit des origines est un discours mythique. L'ouverture est le mythe de naissance

du livre. La naissance est ici une renaissance, dont la nature est clairement

27"toute enclave entretenant une relation de similitude avec l'oeuvre qui la contient."

(31)

indiquée: "métempsychose", "pensées d'une existence antérieure" (I, 3), c'est l'histoire d'une transmutation... Le mouvement de translation esquisse déjà, sur le mode imaginaire, le processus de "traduction" qui définira "le devoir et la tâche de l'écrivain" (III, 890), après l'illumination de la matinée Guermantes: "ce livre essentiel, le seul livre, un grand écrivain n'a pas, dans le sens courant, à l'inventer, puisqu'il existe déjà en chacun de nous, mais à le traduire" (ibid.). Qui dit naissance dit séparation. A ce livre qui se détache de lui, le narrateur oppose son propre détachement: "j'étais libre de m'y appliquer ou non". [ibid.: 49]

"Renascimento", "transmutação", "translação", "tradução" e "separação":

distintas metamorfoses do decalque que constitui o mito do nascimento do livro. A

abertura da Recherche, então, não é um mero intróito que adquire sentido com o

desenvolvimento do texto; ao contrário, é aquilo que dá o sentido ao que se segue, tem

poder gerador, tanto do texto, quanto da "lembrança do nascimento da lembrança", que

em mise en abyme, também gera o texto.

peut-être faut-il nous souvenir que tout mythe, selon Lévi-Strauss, a pour but de voiler une contradiction, d'énoncer une impossible unité: naît-on d'un seul ou bien de deux? le même naît-il du même, ou de l'autre? La structure oedipienne, au sens lévi-straussien, est ici évidente: comment faire rejoindre "le côté de chez Swann" et le "côté de Guermantes", surgis dans le tournoiement des chambres évoquées, décloisonner en soi le pôle masculin et le pôle féminin dont la réunion doit seule permettre, à la fin du Temps retrouvé, l'avènement du livre jusque-là introuvable? [ibid.: 51]

A androginia mítica original cede lugar à definição do sexo no nascimento do ser

que passa, ao longo da vida, ou do livro, a buscar a "outra metade" - promessa da

plenitude ideal. A convergência dos dois caminhos, de Swann e de Guermantes, é o

indício do apaziguamento da dor da separação - desencadeada com o nascimento

(separação da metade ideal ou da mãe) -, que permite o (re)início virtual da escritura da

Recherche.

Essa estrutura circular da obra, que começa após terminar, está inscrita no

prólogo: "Un homme qui dort tient en cercle autour de lui le fil des heures, l'ordre des

années et des mondes..." [Du Côté de chez Swann: 5]. O círculo primeiro do início do

romance se estende à circularidade da obra como um todo, expandindo-se no ritmo de

dissolução e reconstrução do "eu" instaurado no incipit (dinâmica de fechamento e

Referências

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