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Autonomia e Contratualidade e as oficinas terapêuticas de teatro no contexto da Saúde Mental

No documento nathalicorreacristino (páginas 36-40)

Ao se tratar da dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica Brasileira Amarante et al. (2012) afirmam que podemos considerar a existência de duas vertentes, que podem se entrelaçar. Uma delas diz respeito ao trabalho no território, que movimenta as relações entre sujeitos, familiares, contextos comunitários e articulações políticas e a segunda aponta o trabalho com a arte e cultura em intervenções em Saúde Mental, visualizado como ações produtoras de novos sentidos para a vida, outras formas de subjetivação, que fortalecem potencialidades e modificam relações sociais.

Além de buscar a remissão dos sintomas mais incapacitantes, o foco do tratamento redireciona-se a aspectos individuais e sociais que estão envolvidos na possibilidade de circulação social dos usuários, visando, assim, “agregar às propostas terapêuticas em Saúde Mental, ações que resgatem e desenvolvam as habilidades e potencialidades dos sujeitos” (Gherardi-Donato, Corradi-Webster, Bragagnollo, Ferreira & Gherardi-Donato, 2011, p. 124).

Uma das questões fundamentais, que dificultam o processo de circulação social dos usuários dos serviços de Saúde Mental, está relacionada à dificuldade destes sujeitos em participar do sistema de trocas sociais, devido, em grande parte, ao estigma e preconceito aos quais são submetidos. A este respeito Kinoshita (1996) delineia que, socialmente, existem valores contratuais que são atribuídos a cada sujeito, de acordo com vários fatores, como profissão, posição social ou política ou circuito social que frequenta, sendo esses valores essenciais no momento em que os sujeitos necessitam realizar trocas de mensagens, bens ou afetos.

O mesmo autor aponta que, quando um sujeito recebe o diagnóstico de algum transtorno mental ocorre uma diminuição drástica em seu valor social pressuposto, anulando

ou reduzindo consideravelmente a sua possibilidade contratual. Em outras palavras, a partir da nomeação do transtorno, a reação da sociedade vem permeada de estigma e preconceito, reduzindo as possibilidades de trocas sociais do sujeito tanto no que diz respeito à sua fala, considerada agora irrelevante, quanto aos seus bens, observados como suspeitos, ou em relação aos seus afetos, tachados como incoerentes e imprevisíveis.

A redução do poder contratual do sujeito faz com que ele tenha acesso limitado a relações e coisas em seu circuito social, reduzindo, por fim, sua autonomia. Importante salientar, que o conceito de autonomia nada tem a ver com autossuficiência ou independência, mas, antes como uma capacidade de criar normas e transitar entre circuitos sociais na medida da necessidade que surgir. Em outras palavras, quanto maior o número de pessoas, instituições ou coisas o sujeito puder escolher para acionar em caso de necessidade, maior seu grau de autonomia.

A contratualidade do usuário, primeiramente vai estar determinada pela relação estabelecida pelos próprios profissionais que o atendem. Se estes podem usar de seu poder para aumentar o poder do usuário ou não. Depois pela capacidade de se elaborar projetos, isto é, ações práticas que modifiquem as condições concretas de vida, de modo que a subjetividade do usuário possa enriquecer-se. (Kinoshita,1996, p.56)

Assim, é papel fundamental de dispositivos de Saúde Mental criar intervenções que permitam aos sujeitos “deixar para trás estigmas, preconceitos, medos e viverem e expressarem-se a sua maneira, estando abertos para novos conceitos e crenças, ideias e sentimentos” (Gherardi-Donato et al. 2011, p.124).

Nesse contexto, as oficinas terapêuticas utilizadas nestes dispositivos, podem ser pensadas como estratégias para a estimulação de atitudes criativas, críticas e transformadoras, buscando oferecer ao sujeito novas possibilidades de transitar na vida, ou ainda novas significações para sua existência.

Numa comparação histórica, podemos entender como função principal de uma oficina terapêutica algo muito semelhante àquilo que Silveira (2015) propunha para as suas oficinas do Setor de Terapêutica Ocupacional na década de 40. Seriam, então, estes espaços, locais que estimulassem o desenvolvimento de habilidades que apoiem o movimento psíquico interno de reestruturação, oferecendo, também, novas formas de expressão e trânsito do usuário pelo circuito social.

Recentemente, autores como Silva et al. (2011), Nocam e Romera (2012), Aguiar (1997), Ferigato, Sy e Resende Carvalho (2011), entre outros, demonstram que a oficina terapêutica de teatro é uma forma de intervenção privilegiada, entre as outras possíveis, no que diz respeito à tentativa de recuperar no sujeito a capacidade de questionar e buscar alternativas de vida, que reconstruam relações, modificando de forma mais ampla as configurações sociais.

Apontando uma perspectiva de utilização do teatro como instrumento de inserção social e reflexão profunda sobre a realidade, encontraremos no trabalho de Pereira (2003) com usuários afásicos, um exemplo de como as técnicas teatrais podem contribuir para o desenvolvimento de potencialidades alternativas àquelas perdidas ou reduzidas com o adoecimento. No decorrer de seu texto, podemos observar o quanto esta atividade acrescentou ao repertório de possibilidades de comunicação dos usuários, auxiliando e ampliando sua capacidade de circulação social a partir de novas formas de troca de mensagens e afetos.

Crer que muitas vezes o que acreditamos distúrbios e deficiências podem revelar-se matérias singulares para o exercício cênico. E seus portadores excelentes artífices de uma cena que, se por um lado, depara-se com uma devastação capaz de destruir caminhos e percursos, por outro, pode-se apontar ou estimular o encontro criativo de alternativas possíveis, opções qualitativamente diferentes e únicas, que podem resultar esteticamente satisfatórias e cheias de sentido no que chamamos “vida prática”. (Pereira, 2003, pp.107-108)

Nesta mesma direção, focalizando a importância de estratégias que possibilitem mudanças efetivas na vida cotidiana de sujeitos; quando limitados por algum adoecimento ou situação social peculiar; Gherardi-Donato et al. (2011) salientam, que no caso das novas instituições brasileiras de Saúde Mental, há uma procura por intervenções que apostem na existência de aspectos saudáveis, escondidos pelos sintomas do adoecimento. De acordo com os autores, o desenvolvimento de grupos de teatro com portadores de transtornos mentais é uma destas ações. Esta atividade cria a oportunidade de ampliar e potencializar características que auxiliam as trocas sociais e o relacionamento interpessoal, respeitando o sujeito em sua singularidade.

O acometimento por um transtorno mental pode fazer com que a realidade do sujeito seja resumida à doença. Por acreditar que existam inúmeras outras possibilidades

para aqueles que vivenciam este sofrimento emocional, é que apostamos no desenvolvimento de atividades teatrais, onde a doença mental possa ser questionada, discutida, encenada e ressignificada. (Gherardi–Donato et al. 2011, p. 122)

Tendo por base a bibliografia consultada, percebemos certo destaque na utilização de técnicas teatrais do dramaturgo Augusto Boal nos trabalhos realizados em dispositivos de Saúde Mental brasileiros. As elaborações deste dramaturgo trazem importantes reflexões sobre os possíveis efeitos e contribuições da atividade teatral para o manejo social da loucura e acerca das potencialidades da atividade em desenvolver e estimular características saudáveis existentes nos indivíduos acometidos por transtornos mentais. Utilizaremos, então, o próximo capítulo para detalhar os conceitos principais dessa dramaturgia e tentar melhor esclarecer as razões que fazem do Teatro do Oprimido uma ferramenta interessante para o aparato possível de ações em Saúde Mental.

No documento nathalicorreacristino (páginas 36-40)