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CAPÍTULO 3 – Os anos 90 e a transição paradigmática

3.3 A era FHC: universalismo, regionalismo e “autonomia pela integração”

3.3.1 Autonomia pela participação / integração

Tanto Fernando Henrique Cardoso quanto outros influentes nomes da diplomacia brasileira do período, por vezes afirmaram que a política externa brasileira poderia ser resumida pelo significado contido na expressão autonomia pela integração28.

Se me coubesse sintetizar a política externa de meus dois mandatos, lançaria mão de uma expressão cunhada por um antigo assessor, o embaixador Gelson Fonseca, e diria que se

28 “O processo de adesão do país aos regimes internacionais foi mantido e mesmo intensificado [na era FHC], como pré-requisito para conquistar um papel de destaque nos processos decisórios internacionais” (Mello, 2000. p.156).

buscou nesse período a autonomia pela participação numa realidade internacional em mutação [...] Procuramos redefinir a política exterior do país segundo dois eixos, ambos norteados pela busca de autonomia via uma maior participação na dinâmica internacional.O primeiro foi a disposição em exercer um papel ativo na remodelação normativa do sistema internacional e, por conseguinte, de seus padrões de legitimidade. O segundo foi a determinação de aproveitar as oportunidades e combater as assimetrias do processo de globalização, de modo a favorecer a retomada de um crescimento sustentável [...] (CARDOSO, 2004).

No mesmo sentido, Lampreia (1999, p. 89) não desafina o discurso, expondo que “se pudesse resumir o sentido central dessa política externa, eu diria que ela é a busca da AUTONOMIA PELA INTEGRAÇÃO. Ou seja, ao invés de uma autonomia isolacionista, uma autonomia articulada com o meio internacional”29.

Vale lembrar que, de acordo com Vigevani e Oliveira (2004), é ainda na primeira passagem de Celso Lafer pelo Ministério das Relações Exteriores que ocorre uma elaboração conceitual mais refinada e consolida-se o paradigma da autonomia pela integração.

Destarte, não parece difícil imaginar que, quando volta ao cargo, em 2001, Lafer também dá continuidade a sua própria formulação. “Durante muito tempo, o Brasil viu no distanciamento do mundo a forma de defender sua autonomia. Cada vez mais, no entanto, para sermos fortes e autônomos precisamos interagir com o mundo exterior” (LAFER, 2002, p. 205).

Como bem observa Mello (2000, p. 161) a substituição do termo “participação” por “integração” revela muito acerca da importância que o regionalismo assume, em especial o Mercosul, na estratégia de “autonomia pela integração”. Segundo Lampreia (1998, p.11-12) tal termo poderia soar contraditório, na medida em que qualquer acordo internacional implica numa renúncia de parcela da soberania de um Estado. Todavia, segue o então Ministro, no caso da integração do Brasil no processo do Mercosul os benefícios políticos e econômicos são mais relevantes.

29 Nota-se que, tal idéia, sob hipótese alguma pode ser encarada como ocasional. Prova disso foi que, desde o primeiro dia à frente do MRE, Lampreia (1995, p.21) já adotava esse discurso: “Temos uma projeção internacional muito significativa, que deve traduzir-se cada vez mais em uma presença ativa e

Embora, por um lado, signifique efetivamente alguma perda de autonomia, por outro, o Mercosul aumenta nossa capacidade de atuar de modo mais afirmativo e participativo na elaboração de regimes e normas internacionais de importância essencial para o Brasil. Em última instância, combinadas as perdas e ganhos de autonomia, resta um saldo positivo. E isso, certamente, vale também para os nossos parceiros.

Nota-se assim, a clara presença da idéia de autonomia pela participação e universalismo inseridos e relacionados de modo direto ao processo de integração regional em questão. Entretanto, antes de se discutir mais detidamente os processos de integração regional em curso, parece adequado estar atento para o contexto que permeava a determinação brasileira de adotar uma postura mais participativa nos regimes e instituições internacionais.

Assim, se no limiar dos anos noventa houve uma percepção por parte dos formuladores da política externa quanto à necessidade de rever a postura brasileira frente ao mundo, provocando a alteração do paradigma da “autonomia pela distância” para a “autonomia pela participação” (FONSECA Jr., 1998), na era FHC as condições para o aprofundamento dessa estratégia parecem mais nítidas.

Isso porque, no contexto doméstico, o Brasil apresentava-se como uma nação mais disposta e capaz a aderir aos “interesses universais”, reinantes no mainstream

internacional. Entre os policy makers brasileiros, acreditava-se que, o sucesso do plano de estabilização macroeconômica (Plano Real) e a conseqüente implementação das diretrizes neoliberais, aliados à postura mais madura assumida no diálogo com seu entorno geográfico, concediam ao país a imagem de um ator promissor e confiável, pronto a dar sua contribuição à ordem que se erigia pós Guerra Fria30.

No campo político, a determinação brasileira de imprimir uma postura participativa e um diálogo propositivo frente às questões internacionais resultou em uma série de medidas práticas, entre elas, a adesão brasileira ao Tratado de Não Proliferação Nuclear produtiva em todos os lugares e acontecimentos que importam, indo além da simples presença de representante diplomático permanente ou do formalismo das relações entre Chancelarias”.

30 O bom andamento do plano de estabilização econômica parecia favorecer um discurso pelo qual o Brasil deveria assumir seu lugar na cena internacional, atuando de modo propositivo nos temas, debates e

(TNP), em junho de 1997. Tal acontecimento político certamente pode ser analisado como uma manifestação de uma busca da autonomia através de uma postura que abandonava as concepções de “congelamento de poder mundial”, de sistemas “engessadores do status quo” formulados nas décadas de 60/70 com Araújo Castro e San Tiago Dantas. Aderir ao TNP significava apresentar-se à comunidade internacional como um país digno de credibilidade, legitimidade e capacidade para atuar, de forma cada vez mais assertiva, na arquitetura dos regimes e normas globais.

Nas palavras do próprio Lampreia (1998, p.12-13), tal concepção parece cristalina: “A decisão de aderir ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear é outro exemplo de autonomia pela integração”. De acordo com o ministro, a adesão brasileira ao tratado teria incrementado de modo significativo a “credibilidade externa do país”. E quanto maior a credibilidade, maior a possibilidade de o Brasil ampliar sua participação no sistema internacional.

Rapidamente ficou comprovado o benefício de aderir ao TNP. Quando, por coincidência, a Índia e o Paquistão conduziram testes nucleares no primeiro semestre desse ano [1998], ganhamos mais respeito da comunidade internacional, traduzido no convite do G-8 para que participássemos do esforço para ajudar a encaminhar uma solução para as tensões no sul da Ásia (LAMPREIA, 1998, p.13).

A adesão brasileira ao Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR) em agosto de 1995, também pode ser interpretada a partir da determinação do governo brasileiro de buscar sua autonomia por meio de uma participação ativa nos regimes internacionais. Havia a clara preocupação em demonstrar à sociedade internacional que o Brasil era uma nação altamente confiável na área de segurança e que, por conseguinte, guardava plenas condições de assumir posições mais ativas dentro das estruturas internacionais (MELLO, 2000, p.156).

[...] estamos buscando também fortalecer nossa participação nos mais importantes foros decisórios mundiais: o Conselho de Segurança das Nações Unidas, a Organização Mundial do Comércio, a OCDE, o MTCR. Queremos uma voz que corresponda melhor ao amanho e peso inerentes do Brasil e uma participação mais ampla em questões que afetem diretamente nossas relações com nossos parceiros mais importantes [...] (LAMPREIA, 1999, p. 117)

questões. “Nas relações exteriores, o otimismo acentuou a retórica acerca do papel que caberia ao Brasil no mundo” (MELLO, 2000, p. 155).

O conceito da autonomia também precisa ser analisado a partir das relações com os Estados Unidos. Conforme apontou-se anteriormente, havia em FHC a nítida preocupação em melhorar o diálogo com os norte-americanos, mostrando em diversos momentos a importância dessa relação. Nesse sentido, a política de estabilização macroeconômica, a amizade de FHC e Clinton, a adesão do Brasil ao MTCR e ao TNP são importantes fatores a serem considerados para a compreensão da melhora desse relacionamento31. Todavia, mesmo decidido a superar entraves existentes entre Brasília e Washington, o governo brasileiro procurou pautar sua conduta pela autonomia e o não

alinhamento.

A busca da melhora das relações bilaterais [Brasil / EUA] foi acompanhada da ênfase na autonomia da atuação internacional do país e da afirmação de sua condição de global player e de

global trader [...] a opção pela ‘autonomia pela integração’

proporcionaria uma maior aproximação sem alinhamentos

automáticos nem opções excludentes. Manter-se-ia a

possibilidade de dissensão quando os interesses brasileiros fossem ameaçados pela ação dos Estados Unidos (grifo nosso) (VIGEVANI e OLIVEIRA, 2004).

Nota-se assim um diálogo muito próximo entre a idéia de autonomia e não-

alinhamento. Após um breve retorno de uma postura alinhada aos EUA nos primeiros meses do governo Collor, rapidamente tal idéia volta a ser marginalizada no leito diplomático brasileiro, abrindo espaço para uma postura mais autônoma, que procura equilibrar as relações com Washington, tentando apresentar o país como um global player, legitimado, capacitado e pronto a atuar de modo assertivo no sistema internacional, com interesses e vontades próprias, excluindo dessa forma, qualquer idéia de alinhamento aos norte-americanos.

Hoje não ocorreria a ninguém achar que o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil como axioma. Certamente o Brasil não tem nem vergonha de ter uma relação dinâmica, rica e excelente com os EUA, nem tem qualquer dificuldade de ter divergências, quando o interesse nacional assim recomendar. Nossas relações, hoje, são muito equilibradas e maduras. Sem angústia, complexo de inferioridade e postura amedrontada de nossa parte (LAMPREIA, 1997).

31 Pecequilo e Gomes (2004, p. 98-9) afirmam que, desde Collor, passando por Itamar e até FHC, a política externa brasileira esteve empenhada em “normalizar as relações com os Estados Unidos, eliminando problemas remanescentes do regime militar”. Como exemplo desse esforço brasileiro, as autoras citam a assinatura do TNP, o comprometimento nacional em fazer uso pacífico da energia nuclear, a criação da lei de propriedade intelectual.

De acordo com Mello (2000, p.159), “a autonomia com relação aos Estados Unidos é entendida como condição para a ampliação do papel de ‘global player’ que o Brasil almeja no novo cenário internacional, que tem como plataforma de expansão o espaço sul-americano”. O posicionamento do Brasil frente à questão cubana ilustra a busca de uma autonomia e não-alinhamento, por parte do governo brasileiro, com relação à política externa norte americana, na medida que, ao mesmo tempo em que se posicionava contrário ao embargo comercial à Ilha de Fidel Castro, insistia na necessidade do governo cubano destinar mais atenção aos direitos humanos e a democracia (SILVA, 2002, p. 321).

O Brasil tem dado demonstrações inequívocas de sua dedicação ao objetivo da plena reintegração de Cuba à comunidade das nações americanas. [...] Condenamos a aplicação unilateral, com fins políticos, de sanções de natureza econômica e comercial. Coerentemente, o Brasil tem votado nas Nações Unidas a favor das resoluções que pedem a suspensão do embargo imposto a Cuba (LAMPREIA, 1999, p. 238).

A mesma lógica pode ser aplicada à postura do governo brasileiro frente ao “Plano Colômbia”. Conforme expõe Silva (2002, p. 306), tal projeto guardava considerável importância geopolítica para os Estados Unidos, e assim, era evidente que Washington desejava o apoio e o envolvimento brasileiro no mesmo. Todavia, a investida norte- americana teria sido recebida “com frieza pelo Brasil por ameaçar os interesses específicos do País”.