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Inicio o enfrentamento da temática da autoridade com duas cenas antagônicas, avesso e direito de um mesmo eixo problematizador do lugar que os professores se atribuem quando em confronto com seus parceiros.

A primeira:

Então, o sujeito dirige-se ao palco, cumprimenta a platéia e informa sua missão ali. Há objetivos a serem cumpridos à risca e não há tempo a perder. Em seguida, uma meia-luz toma conta do recinto, dando destaque para uma tela de fundo, onde se projetam enunciados breves entrecortados por cores e formas chamativas. As imagens começam a se reproduzir em velocidade constante, cadenciando o ritmo de absorção da platéia. E assim se repete o ritual hoje quase onipresente; bem poderia ser uma exposição de vendas, um treinamento profissional, uma palestra de auto-ajuda ou uma aula qualquer. Diferença não há.

O sujeito nada faz além de repetir literalmente o que já está disposto na tela de projeção, essa espécie de lousa impecável preparada de véspera. A platéia se restringe a fazer o mesmo, em compasso com a leitura em voz alta do orador. Acaso ele suspeita que os ouvintes são incapazes de ler por si sós? Talvez sua presunção não chegue a tanto. Talvez apenas tenha escolhido tal estratégia porque pretende provar sua afiliação às novidades pedagógicas, conferindo assim uma suposta aura de validação ao que se propõe a ensinar. Seja como for, ele não suspeita que sua escolha é conseqüência (e causa, em igual medida) de uma drástica redução das formas narrativas ali possíveis.

Sua escolha é, por assim dizer, a senha de passagem para um mundo marcado pelo esvaziamento e pela mistificação da palavra, agora pretensamente objetiva e eficaz, em oposição à incerteza e à errância dos que outrora falavam pela própria boca.

As inovações tecnológicas despontam, então, como aliadas incondicionais em sua cruzada em favor da racionalização e da produtividade pedagógicas, rumo a um futuro promissor, o qual despontaria tão logo dele nos aproximássemos com destreza e destemor. Trata-se de se despojar de tudo aquilo que soe antiquado, inoperante, ultrapassado, enfim.

Embalado pelo utilitarismo obtuso dos tempos atuais, ele se esforça em controlar com mão-de-ferro não apenas o que se presta a ensinar, mas também os modos de decifração de quem se dispõe a escutá-lo. Para isso, constrange a palavra a ponto de

confiná-la numa espécie de grau zero intelectivo. Pretende informar, antes de dissertar. Quer pregar, mais do que confiar segredos.

Daí a ascensão de uma pedagogia powerpoint como prova material da lenta agonia pública do ofício de ensinar; antes uma prática artesanal e pacienciosa, em que mais importava a arte de lembrar em detalhes do que a de sintetizar com precisão. Um ofício quase cerimonial que nos atava, por meio do testemunho docente, aos hábitos dos antepassados que mereciam ser guardados na memória, fosse pelo exemplo, fosse pelo rechaço.

Condenados a vagar pelo mundo sem o norte dessa tela narrativa imemorial em que palavra e experiência se confundiam, só nos restaria permanecer paralisados fitando as imagens insossas dessas outras telas de projeção à meia-luz.

A segunda:

O velho professor de literatura ordena que seus alunos, futuros professores, guardem suas anotações. Pede então um cigarro e o acende. Senta-se sobre uma das carteiras, quer se fazer ouvir pela última vez:

Se algum de vocês acredita em verdades reveladas, em dogmas religiosos ou em doutrinas políticas, seria indicado dedicar-se a pregar num templo ou numa tribuna. Se, por desgraça, seguirem a profissão, tratem de deixar as superstições no corredor antes de entrar em aula. Não obriguem seus alunos a estudar de memória. Isso não serve. O que se impõe pela força é recusado e em pouco tempo se esquece. Coloquem- se como meta ensiná-los a pensar, que duvidem, que se façam perguntas.

Assim o protagonista de Lugares Comuns, filme argentino-espanhol de 2002 dirigido por Adolfo Aristarain, oferta sua derradeira lição. Obrigado a se aposentar, dá uma longa tragada no cigarro e encerra seu percurso profissional com um apelo:

Há uma missão, ou um mandato, que quero que cumpram. Uma missão que ninguém lhes encomendou, mas que espero que vocês, como professores, se imponham a si próprios. Despertem em seus alunos a dor da lucidez. Sem limites. Sem piedade.

O ultimato do velho professor é um soco no estômago até dos professores que se crêem suando a camisa pela educação. Quem, em sala de aula, ainda ousa despertar a

dor da lucidez de pensar? Quem, frente a frente com as novas gerações, ainda se devota

a duvidar das coisas do mundo? Raros e, pior ainda, em extinção.

Os poucos professores que ainda subsistem vêem-se cada vez mais acuados contra a parede. A parede de concreto do afeto pedagógico. Para conservar seus postos de trabalho, têm de sobreviver a um sem-número de palavras de ordem fraudulentas que

grassam no cotidiano escolar. Palavras de ordem que pregam como devemos tratar as novas gerações ao pão-de-ló da proximidade, da motivação, da auto-ajuda. Palavras de ordem de mau-gosto, acéfalas, perniciosas.

Contra o cínico afeto pedagógico, resta-nos uma antítese cabal: a amizade intelectual. Trata-se da atitude daqueles que não desejam nem fomentam nenhuma admiração pessoal, nenhum compartilhamento de intimidades, nenhuma sedução para agradar a freguesia. Por isso, jamais serão candidatos ao posto de patronos ou

patronesses nas formaturas. São rigorosos, mal-humorados até, exatamente porque não

negociam com seu posto profissional. Pagam um alto preço por suas escolhas. Apenas alguns alunos os compreenderão mais tarde, quando já não estiverem mais por perto.

Com eles aprendemos que só pode haver educação onde houver gerações em confronto. De um lado, o mais velho lutando para impor um olhar voltado ao passado, um olhar vagaroso e atento aos detalhes do mundo. De outro, o mais novo lutando com todas as forças para não deixar macular seu olhar inaugural sobre a vida, um olhar quase sempre plasmado no presente e suas urgências.

Dessa mútua incompreensão nasce lentamente o germe da amizade intelectual: uma atitude que em nada se assemelha ao comungar, respeitar ou dialogar, mas antes ao constranger, rivalizar, guerrear; sempre em favor de determinadas idéias que mereceriam perdurar no mundo quando dele já tivermos desertado. Uma atitude de interpelação constante, sem limites, sem piedade. A atitude de um professor.

Pois bem, as duas situações apresentadas remetem a um paradoxo fundante do lugar docente na atualidade, cuja problematização se firmou como algo imprescindível no decorrer de minha trajetória investigativa. Aqui, um recuo teórico sobre a temática da autoridade docente se faz obrigatório.

Já na década de 1930, o filósofo Bertrand Russell, no ensaio intitulado Educação

e disciplina, trazia a público seu posicionamento em relação ao, talvez, mais

emblemático debate educacional do século XX: a autoridade do educador versus a liberdade das crianças.

Alguns dizem que as crianças devem ser completamente livres, ainda que sejam más; outros dizem que elas devem ser totalmente submissas à autoridade, por mais que sejam boas; e há, finalmente, os que dizem que elas devem ser livres e que, independente da liberdade, elas serão boas. Esta última facção é mais numerosa do que tem direito de ser [...]. A crença de que a liberdade garante a perfeição moral é uma relíquia das idéias de Rousseau, que não sobreviveria a um estudo com animais e bebês (2002, p.163).

O posicionamento de Russell não deixa dúvidas. Opõe-se ele àquela que se autoproclamaria educação não intervencionista, a qual o filósofo julga ser demasiado individualizante e imprudente em relação ao patrimônio do conhecimento humano.

Dentre seus argumentos, dois merecem destaque: a perigosa oposição a toda autoridade intelectual, gerando a adesão imediata a idéias pouco convencionais – “Quem acredita que a Terra é plana é um rebelde e um tolo também” (ibid., p.164) –, bem como a tirania brutal das crianças quando privadas da intervenção adulta – “Quando deixamos duas crianças de dois ou três anos de idade brincando sozinhas, elas descobrem, depois de algumas refregas, a que sairá sempre vencedora e a que se tornará escrava” (ibid., p.166).

Arrematando sua argumentação, Russell diagnostica aquela que poderia ser concebida como uma das principais mazelas pedagógicas do século: em nome de um ideário tido genericamente como renovador ou mesmo libertador, os educadores têm devotado demasiada atenção à não interferência no mundo infantil e, paradoxalmente, pouca importância ao desfrute da companhia das crianças.

Uma mostra das práticas a que Russell se opõe são aquelas perseguidas pelas denominadas escolas progressistas ou libertárias, cuja expressão máxima é Summerhill. A edificação de indivíduos genericamente livres, autônomos e

emancipados representaria o objetivo magno de tais escolas. Para tanto, elas portariam, grosso modo, as seguintes características operacionais: os alunos, por não serem

previamente agrupados, organizam seu tempo livremente e associam-se de acordo com seus interesses; não se preconiza a formação pedagógica dos educadores; a gestão da escola é realizada por meio de assembléias deliberativas; há uma instância semelhante a um tribunal que recebe, investiga e sentencia queixas disciplinares (SINGER, 1997).

Seguindo a trilha de Russell, seria possível contra-argumentar que, a título de uma suposta emancipação do alunado, corre-se o risco de banalização do âmbito relacional das salas de aula, posto que expressaria poderes assimétricos. O jogo de forças inerente ao campo pedagógico seria supostamente equalizado pela igualdade formal das posições de professor e de aluno, redundando na simetrização (ou até mesmo supressão) dos diferentes lugares institucionais escolares e, conseqüentemente, no embaralhamento das fronteiras cambiantes em torno das quais se movimentam os fazeres escolares.

É certo que, numa sociedade que se pretenda democrática, não se pode conceber a noção de autoridade pedagógica como algo prévio e imutável, mas como um atributo

provisório, oscilante, sempre em construção. Trata-se de caminhos que são construídos e reconstruídos paulatinamente na medida em que professores e alunos se dispõem a fazê-lo por meio de um ato comum, sem que isso implique erosão dos jogos de forças aí imanentes. Senão, o efeito insidioso é a falência das narrativas escolares, estas necessariamente assimétricas. Desse modo, o conhecimento ofertado findaria por ser eclipsado, deixando de ser encarado como o regulador preponderante das relações escolares.

Russell é contemporâneo de outra célebre filósofa: Hannah Arendt. Embora ela não tenha se dedicado a discutir as questões relativas à educação, um de seus ensaios da década de 1950 – A crise na educação – aborda exemplarmente algumas delas.

Nesse conciso trabalho, Arendt problematiza o tema mais caro e, ao mesmo tempo, mais espinhoso àqueles que tomam a educação como ofício: a intransferível responsabilidade dos adultos em relação ao mundo e, em particular, às crianças. “Face à criança, é como se ele [o educador] fosse um representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: isso é o nosso mundo” (1992, p.239).

Para a autora, a existência de crianças impõe a toda sociedade humana dois tipos de obrigação: a continuidade da vida, a cargo do âmbito familiar, uma vez que as crianças são seres humanos em formação; e a preservação do mundo, a cargo do âmbito público, posto que elas são representantes de uma nova geração.

Para tanto, explicita o que concebe como papel fundamental da escola, qual seja: a engenhosa intermediação civil do mundo privado para o mundo público. Desse ponto de vista,

a função da escola é ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver. Dado que o mundo é velho, sempre mais que elas mesmas, a aprendizagem volta-se inevitavelmente para o passado, não importa o quanto a vida seja transcorrida no presente (ibid., p.246).

Arendt propõe que as escolas sejam instituições tributárias, por excelência, da missão de proteger o passado representado pelo patrimônio cultural. Trata-se da intrincada tarefa de, primeiro, conservar o que constitui o legado humano para que, mais tarde, se possa transformá-lo. Isso porque não há futuro sustentável para as crianças (e, por extensão, para o mundo) sem a imersão em certa tradição. E é exatamente nesse intervalo – entre o passado e o futuro – que encontramos o fulgor constituinte da vida. Fora dele, encarceramo-nos em tempos sombrios.

Aqui, a idéia de tradição – noção arendtiana definida sumariamente por Jurandir Freire Costa (2002, p.3) como “a imagem do mundo segundo a força e o talento dos ancestrais” – não se confunde com a de tradicionalismo, assim como a de conservacionismo sequer se assemelha à de conservadorismo. O que está em questão é o imprescindível apego ao âmbito do passado. Assevera Arendt: “[...] é de seu ofício [do educador] servir como mediador entre o velho e o novo, de tal modo que sua própria profissão lhe exige um respeito extraordinário pelo passado (1992, p.243-244).

Defensora da responsabilidade radical dos mais velhos em relação ao mundo ido e, por extensão, ao porvir, a filósofa contesta as teorias educativas nascentes naquele momento histórico. E três de suas características são problematizadas:

• o banimento infantil do mundo adulto: a instauração de um mundo autônomo e um governo tirânico do grupo de crianças, bem como a perigosa emancipação da autoridade dos mais velhos;

• a substituição do aprendizado/trabalho pelo fazer/brincar: a concentração dos esforços no exercício contínuo de atividades que veiculem habilidades extracurriculares em detrimento dos requisitos de um currículo formal;

• o negligenciamento da formação docente: a suposta prerrogativa pedagogizante, de ênfase pragmatista, segundo a qual as questões do ensino em geral devem se sobrepor aos conteúdos em particular.

Nota-se aqui uma clara oposição ao espírito escolanovista, segundo o qual devem-se priorizar programas de ensino calcados nas experiências infantis. O professor passa a ser tomado tão-somente como um organizador do contexto pedagógico, no qual o aluno, condutor do processo de aprendizagem, irá se desenvolver segundo seus interesses, sensibilidade e espontaneidade. O aqui-agora passa a ser o núcleo da ação, mediada quase exclusivamente pela iniciativa pessoal, livre e autônoma do aluno, e baseada na conformação psicológica de sua condição de aprendiz, tendo como referencial suas etapas de desenvolvimento.

Arrematando sua crítica, Arendt dá a conhecer seu posicionamento em relação às competências educativas. A noção de autoridade por ela defendida ultrapassa a qualificação pedagógica stricto sensu, desdobrando-se numa dimensão precisamente ético-política: a da responsabilização dos mais velhos pela herança cultural. Dirá ela: “A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo” (ibid., p.239).

Tratar-se-ia, assim, de fomentar entre os alunos uma sólida efervescência intelectual, a qual se transmutaria, mais tarde, na espinha dorsal de certo espírito público. O que importa, pois, é o dever laborioso de ensinar a pensar o presente pelas mãos do passado – único meio de preservação do mundo que nos antecedeu e que nos sucederá.

Outro teórico atento ao debate sobre autoridade versus liberdade na educação é o brasileiro José Mário Pires Azanha.

Notável pensador da educação brasileira, Azanha, já na década de 1970, dedicou-se a analisar os dilemas da democratização escolar, alertando sobre a migração indiscriminada da idéia de democracia (oriunda do domínio das instituições políticas) aos modos de organização pedagógico-burocrática, o que findaria por gerar distorções quanto aos propósitos nucleares da educação formal.

Para tanto, propõe um discernimento radical entre duas apropriações possíveis da noção de democracia nas escolas: como extensão de oportunidades a todos (por meio do acesso à produção cultural e aos códigos dominantes do mundo adulto), ou como expressão da liberdade do educando (por meio do exercício da autonomia infantil/juvenil, resistente, por sua vez, à coerção do mundo adulto).

Segundo ele, supor a democracia escolar como vivência do arbítrio individual de seus protagonistas redundaria num faz-de-conta pedagógico, na expressão do autor,.

Não se poderia, portanto, encarar termos como liberdade e igualdade como atributos individuais, mas como fatos do mundo político, já que a democracia se forja num espaço público de participação social, nunca no plano do livre arbítrio individual. Por isso, Azanha denuncia o simulacro pedagógico aí embutido, já que “o jogo de forças e de interesses que move a vida política é irreproduzível no âmbito da escola” (1987, p.40).

Mais ainda: quando as crianças são “deixadas a si mesmas, não se elimina a autoridade, apenas se substitui a sua fonte e sua força” (ibid., p.57), o que as levaria a se sujeitarem à tirania da maioria; o oposto do modo de vida democrático. Paradoxalmente, essa espécie de jogo de faz-de-conta poderia acarretar um efeito de esvaziamento do primado político quando subjugado pelo exercício das vontades individuais.

Azanha é taxativo: não se pode conceber uma sociedade democrática como mera reunião de homens livres formados por escolas democráticas; menos ainda que ela seja reflexo imediato dos indivíduos que a compõem. “Democracia se refere a uma situação

política, social e econômica que não se concretiza pela simples associação de indivíduos democráticos” (ibid., p.38).

Daí que a noção de democracia escolar, assim como entendida na maioria das vezes, figuraria como uma reprodução quase caricatural dos mecanismos preexistentes no âmbito político, em especial daquelas práticas de ordenamento legislativo e judiciário da sociedade. Cada escola tornar-se-ia, assim, uma espécie de cidadela- Estado, segundo o autor.

É preciso, pois, recusar a estratégia de mimetismo dos mecanismos ordenadores da democracia política quando da tomada de decisão no cotidiano escolar, atentando para as naturezas singulares e os planos organizativos necessariamente distintos das instituições políticas e sociais. Caso contrário, o risco imediato é o da desritualização das rotinas próprias à escola, assim como o do esvaziamento dos papéis e funções de seus protagonistas.

Algumas décadas separam os três autores, mas o debate em torno da questão autoridade versus liberdade na educação segue incólume, suscitando controvérsia. Na companhia deles, somos compelidos a nos distanciar de alguns bordões ao mesmo tempo tão consensuais quanto impraticáveis, tais como: aprender a aprender, aprender

a partir da experiência, aprender para a vida etc. Aqui, o verbo em destaque passa a

ser o ensinar.

Antes ainda, somos compelidos a desconfiar do afã criticista e ingênuo que, no esforço atabalhoado de denunciar os riscos do suposto autoritarismo de quem ainda ousa querer ensinar de fato, finda por se postar de maneira imediatista e depredadora do mundo.

Ademais, as próprias noções de autoridade e liberdade passam a figurar não como polaridades antagônicas, mas como elementos indissociáveis de uma equação imprescindível à ação escolar: só haverá liberdade exatamente onde houver uma prática exigente e generosa da autoridade.

Trocando em miúdos, a árdua e lenta reapropriação do legado cultural pelos mais novos, objeto precípuo do trabalho das gerações mais velhas, é condição sine qua

non para a tão almejada emancipação ulterior das novas gerações – algo que principiaria

no plano das destrezas escolares e se alastraria, mais tarde, para o domínio da participação na vida pública.

Disso decorre um importante desdobramento em relação à própria noção de infância: tratar-se-ia mais de um tempo de preparação para o ingresso responsável na

vida adulta, e menos de uma etapa autônoma da existência em que se devem respeitar suas especificidades e idiossincrasias, tal como se vê alardeado pelo jargão contemporâneo psico-pedagogicamente correto, mas empiricamente lábil.

Em suma, educar para a liberdade significaria menos continência aos difusos impulsos infantis/juvenis, e mais lapidação intelectual dos mais novos para a admissão no mundo dos feitos humanos e sua complexidade característica.

Pois bem, o acento na temática da autoridade docente constituiu-se numa marca distintiva dos estudos que levei a cabo durante anos. Uma temática sempre inquietante, posto que atravessada por dificuldades extremadas, quer na esfera teórica, quer, tanto mais, no plano empírico. Um exercício invariavelmente no fio da navalha.

Um dos intercessores mais inusitados com quem travei contato foi o Padre Antônio Vieira e, em particular, um de seus célebres textos: o Sermão da Sexagésima. Alguém diria tratar-se de uma obra à primeira vista pontual e datada, embora muito menos do que assim se possa reputá-la quando cotejada com os embaraços do universo