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Em As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, Marco Polo descreve imaginariamente ao imperador Kublai Khan a geografia e o dia-a-dia das cidades sob seu domínio. Uma delas é Leônia, analogia imbatível das escolas brasileiras atuais.

Lá, a cada manhã, seus habitantes jogam fora tudo que lhes serviu no dia anterior: tubos de pasta de dente, lâmpadas, aparelhos de porcelana, pianos, enciclopédias. E a vida recomeça do zero, indefinidamente, sempre a reboque do prazer oferecido pelas coisas renovadas e diferentes.

Em Leônia, os lixeiros são alvos da mais resoluta admiração, já que, sem eles, a cidade não suportaria sua realidade de opulência e de desuso: as duas propriedades conexas definidoras do estilo de vida ali reinante. Tudo seria perfeito para seus habitantes, caso não houvesse a ameaça do lixo acumulado, essa materialidade incômoda daquilo que não serve mais, ecos do passado suprimido.

No caso escolar, é impressionante a volatilidade dos fazeres cotidianos, a despeito da rotinização e da morosidade a eles inerentes. Raros são os profissionais que se recordam dos resultados dos projetos interdisciplinares dos anos anteriores. Mais raros ainda são os alunos que têm uma vaga lembrança do tema aglutinador do sem- número de trabalhos realizados. Em favor do que despendemos tanta energia em empreendimentos ainda em construção, mas já em ruína?

Da opulência de projetos episódicos e sucessivos ao seu esquecimento quase imediato, vamos caminhando ao léu, tornando o cotidiano escolar uma espécie de inferno particular para cada qual: os profissionais sonhando com a aposentadoria; os alunos, com a formatura; ambos, com o fim da via crucis escolar.

Em consonância ao espírito tarefeiro da época, grande parte das ações pedagógicas está fadada a uma vida curtíssima e, conseqüentemente, a um empobrecimento intelectual sem precedentes. Isso porque carecemos de tempo para a lenta decantação de algumas poucas idéias, potentes e sóbrias; potentes porque sóbrias, sóbrias porque poucas.

Recordemos as montanhas e montanhas de produções pedagógicas pontuais e sem razão de ser que têm os cestos de lixo como destino único. E, assim, os lixeiros da Leônia escolar brasileira vão garantindo seu futuro duvidoso.

Marco Pólo conta que os detritos de Leônia invadiriam o mundo, caso não fossem comprimidos pelos das cidades vizinhas, ambos escorando-se reciprocamente,

misturados em elevações de cume inalcançável e sempre a ponto de desmoronar: “Basta que um vasilhame, um pneu velho, um garrafão de vinho se precipitem do lado de Leônia e uma avalanche de sapatos desemparelhados, calendários de anos decorridos e flores secas afunda a cidade” (CALVINOa, 1990, p.106).

Algo semelhante à cidade imaginária de Calvino parece se passar com as práticas escolares nacionais, explicitamente enredadas numa avalanche de ações inócuas e marcadas, sobretudo, por uma ânsia utilitarista e pragmatista. Vidas tarefeiras, enfim.

É inegável que as últimas décadas atestaram uma explosão das funções clássicas dos profissionais da educação. A partir das mudanças substanciais presenciadas no entorno escolar, o trabalho pedagógico tem deparado com exigências múltiplas que ultrapassam em muito aquelas preconizadas historicamente.

Novas dimensões foram se somando às funções docentes habituais, não se tratando de uma substituição, mas de um acúmulo delas. Por exemplo, nas expectativas dos envolvidos, desde as esferas político-administrativas até as próprias famílias, parece pairar uma espécie de polivalência difusa atribuída ao professor.

Embalados por um espírito reformador que parece revestir a imagem social que se acalenta das práticas escolares, todos parecem crer numa espécie de psico- pedagogização extensiva, que abrangesse desde os usos do corpo, passando pelas vicissitudes dos sentidos, até os descaminhos das consciências. Sob esse aspecto, seria possível ensinar, ou prevenir, quase tudo.

Das regras básicas da convivência democrática ao respeito às diferenças individuais; do voto esclarecido aos direitos do consumidor; dos perigos do aborto à condenação do preconceito racial; da preservação do meio ambiente à profilaxia das doenças sexualmente transmissíveis; do enfrentamento ao uso/abuso de drogas às campanhas de desarmamento da população; das novas leis de trânsito aos riscos da obesidade; da erradicação de certas doenças endêmicas ao combate à violência urbana; da preparação para o vestibular ao ingresso no mercado de trabalho; e, por fim, o pleno desenvolvimento da pessoa, assim como reza a Constituição.

Se levarmos em conta que a instituição escolar configura, atualmente, uma das práticas sociais que congregam mais intensivamente o impacto das demandas sociais, torna-se evidente sua conversão numa espécie de centro irradiador de uma vida mais

Isso significa que, a cada década, as práticas escolares parecem tornar-se mais e mais reféns de novas atribuições, tendo seus objetivos e funções redesenhados ao sabor das demandas de normalização que se gestam freneticamente no campo social.

Contudo, aquilo que à primeira vista consistiria numa mostra de fortalecimento ou de alargamento do âmbito institucional escolar tem sido encarado como um embuste. Enquanto se avolumam novas exigências quanto à intervenção escolar, menos se obtêm resultados eficazes e integrais no âmbito propriamente pedagógico.

No entanto, se, por um lado, quanto mais se solicita do trabalho escolar, mais respostas parciais, fragmentárias e dissonantes seus profissionais têm conseguido ofertar, por outro, a impotência alegada por eles parece dever-se, ao menos em parte, à sua própria onipotência irrefletida. Ora, o fato de eles não contarem mais com um modelo unívoco de atuação não significa que deveriam acatar a multiplicação progressiva de suas funções a ponto de se outorgarem um status de sobrenaturalidade.

Para que se possa problematizar tal movimento de dilatação dos quadros de competências docentes, faz-se necessário delinear a atmosfera ético-política que emoldura os fazeres escolares contemporâneos.

De largada, havemos de convir que a conjuntura educacional brasileira – e, em particular, a estatal – vem sacramentando imagens desalentadoras: penúria, inocuidade, letargia etc. Mais correto, talvez, seria reputarmos as práticas escolares como confinadas em um implacável estado de sítio ético-político. Tal hipótese fundamenta-se em algumas tensões que atravessam os fazeres escolares atualmente. Conheçamo-las.

A primeira é aquela expressa na cisão irreconciliável entre ensino estatal de qualidade indigente versus ensino privado de qualidade farsesca, o que redunda em duas faces da mesma moeda: a deserção e a teatralização pedagógicas. De um lado, o trabalho escolar convertido em assistencialismo para pobres, por meio de uma oferta pedagógica instrumental, aligeirada e fracionada; de outro, o ensino tornado objeto de mercantilização para ricos, por meio da oferta de mais um produto de grife, pragmático e com destinação certa: a preparação técnica para os vestibulares. Em ambos os casos, o patrimônio do conhecimento humano e sua exuberância se vêem dissipar do horizonte das relações civis, sendo substituídos pelo minimalismo pernicioso da indústria cultural. Estaríamos, assim, condenados à barbarização paulatina das novas gerações? Estaria a elite econômica nacional abdicando da benesse de também ocupar o lugar de elite cultural, de modo análogo à prostração intelectual das classes populares? Estaria a inteligência nacional, aqui e ali, sendo mandada às favas, caso um dia tenha havido?

A segunda tensão descende da anterior e afeta diretamente o ensino público: a normativa da universalização do ensino fundamental versus o crescente analfabetismo funcional de uma enorme parcela da população; alguns estudos o estimam no patamar de, no mínimo, 50%. Eis o efeito da negligência pedagógica redundando em sucateamento intelectual. E as estatísticas sazonais estão aí para comprovar o saldo da calamidade educacional brasileira: em termos de rendimento cognitivo tanto do alunado público quanto do particular, estamos na dianteira de apenas alguns países africanos. Ora, se os oito anos mínimos e obrigatórios não têm sido suficientes para oferecer uma qualificação razoável no que se refere, ao menos, ao letramento da população, por que tamanho dispêndio? Melhor seria restarem abertas apenas algumas poucas escolas públicas de excelência, à moda do ensino universitário? O Estado abdicar da missão educacional, delegando-a exclusivamente à iniciativa privada? Algo imponderável em tempos ditos democráticos, em que a melhoria das práticas educativas basilares é, inicialmente, ponto de honra e, depois, tema de amnésia dos governantes.

Daí a terceira tensão: dos palanques eleitorais às teses acadêmicas, repete-se em uníssono a prioridade da agenda educacional no tocante ao desenvolvimento econômico e social do país; donde a escolarização como suposto mecanismo básico de ascensão socioeconômica para os que dela usufruem. Contudo, os críticos apontam a face obscura de tal agenda massificadora: com o suposto fito de promover equidade, o ensino público teria se convertido num eficaz dispositivo de reprodução das injustiças sociais, e seus profissionais, num contingente de mão-de-obra a serviço da exclusão silenciosa dos alunos desfavorecidos, ratificando a vulnerabilidade social e pedagógica de que já padecem. Serviçais da ordem reinante, as rotinas escolares teriam se especializado na subtração daquelas mesmas crianças e jovens que alegam auxiliar, proteger, desenvolver. Estariam, então, as escolas condenadas à tarefa de perpetuar o apartheid socioeconômico brasileiro, quando, em tese, se lhes atribui o exato oposto? Estariam, pois, os profissionais da educação traindo flagrantemente a promessa democrática, a mais cara, talvez?

Acrescente-se a isso uma quarta tensão, fruto de uma crença social esquizofrênica. A escola é creditada como instituição vertebral dos contextos democráticos e, ao mesmo tempo, acusada de se encontrar em desuso ou decadência. Paradoxalmente, aqueles que partilham da convicção de que, sem escolas, não há sobrevida ao mundo democrático são os mesmos que pregam que os saberes escolares teriam se tornado anacrônicos, ante um mundo pautado pelo excesso de informação.

Assim, o monopólio pedagógico das práticas escolares estaria sendo preterido drasticamente por outras formas de ensino/aprendizagem, em particular aquelas propiciadas pelo mundo digital. Sem papel definido neste mundo volátil e imagético, o velho trabalho escolar deveria então se reduzir à guarda e tutela moral da infância e da juventude? Deveriam os professores sucumbir ao papel outrora exclusivo da família? Algo difícil de ser admitido e motivo de querelas infindáveis entre as duas instituições, sempre em disputa pela delimitação de suas fronteiras contíguas e cambiantes.

As quatro tensões anteriores convergem para uma última, cabal, agora no interior do trabalho educativo. No cotidiano escolar, é patente um inflacionamento das demandas pedagógicas advindo de um superávit de expectativas atribuídas aos profissionais – aqui ensina-se tudo: valores, atitudes, habilidades formais e informais e, enfim, destrezas intelectuais. Grande escola! Por outro lado, a alegação recorrente dos atores escolares é a oposta – aqui já não se consegue ensinar quase nada, dada a desfiguração radical dos papéis de professor e aluno e, por extensão, a esgarçadura dos vínculos entre eles. Pobre escola!

Sem a adesão voluntária dos mais novos, qual o sentido dos esforços?,

interrogam-se os professores. Sem uma sólida convicção dos mais velhos, qual a razão

para a rendição?, indagam os alunos. O resultado desse desencontro de desígnios é ora

o esmorecimento crônico (pela mão docente), ora a depredação aguda (pela mão discente) da ambiência pedagógica das salas de aula, tornadas paisagens áridas e ermas do ponto de vista intelectual.

Dessas cinco tensões derivam quatro grandes efeitos de fundo. A saber: no tocante aos profissionais, a argumentação, embalada pela alegação onipresente de desgaste ocupacional crônico, de que o campo profissional é arbitrado tão-somente pela experiência solitária de cada um em sala de aula. Na esfera técnico-pedagógica, o advento do espontaneísmo e do vale-tudo metodológicos. No plano político, a ascensão crescente da privatização e da deslaicização do ensino. No âmbito ético, por fim, o desapego progressivo em relação às novas gerações e às especificidades do ato de educar com vigor e com responsabilidade.

Tais efeitos seriam chancelados pela sensação aguda de oscilação constante ou, no limite, de desregulamentação, como a entende Zygmunt Bauman (1998): uma aceleração dos processos de desencaixe dos modos de vida que nos ensinaram um dia a ser quem éramos e que já não somos mais.