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Avaliação escolar e o Mesmo

A FORMAÇÃO PARA O REINO DA PAZ

2.4. As práticas pedagógicas e o olhar levinasiano

2.4.1. Avaliação escolar e o Mesmo

A nova configuração da sociedade, globalizada e mundializada, com exigências de mercado e de um novo perfil social, associada ao grande volume de informações disponíveis, sobretudo pelos novos meios de comunicação, tem exigido da escola também uma nova postura. É certo que, nos últimos anos, vários foram os procedimentos revistos no meio escolar que acarretaram verdadeiras conquistas, sobretudo, quando se trata da instituição de uma cultura de reflexão e de experiências em educação.

Por outro lado, juntamente com tais ajustamentos, constataram-se grandes polêmicas em torno da avaliação escolar. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira contribuiu em muito para isso, tendo sugerido a revogação de formas e instrumentos de educação que fossem excludentes. Como consequência, foram exarados inúmeros pareceres, resoluções e normas oficiais, o que renderam, somando-se à própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, múltiplas interpretações e confusas apropriações.

Entre essas novas exigências que se fazem perceber, a escola deve assumir um papel de propiciadora de ambientes estimulantes ao ensino, deixando

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de ser mera transmissora do conhecimento para se tornar propulsora de potenciais criativos, de troca de experiências e do pensamento crítico.

No entanto, nos últimos anos, a escola, suscetível à economia e à política, passou a sofrer a pressões economicistas para que atingisse metas de aprovação e valores mínimos de reprovação. A intenção de evitar a exclusão por meio de provas e avaliações foi interpretada de maneira estreita. A evolução subsequente produziu, entretanto, alguns efeitos negativos devido à aplicação dessa orientação.

Diante de tais polêmicas, os professores passaram a ficar inquietos e temerosos sobre o futuro que lhes poderia advir. Possivelmente, isso explica por que ainda hoje predominam as formas de avaliação tradicionais que se centram basicamente no conteúdo.

Nessa postura, devemos nos ater à noção de apreender, que compreende o processo de transmissão e avaliação da recepção. A transmissão, por sua vez, é sempre uma imposição de algo fechado, já demarcado em suas fronteiras, impossibilidade de pensar o diferente. A este respeito, Romão nos diz:

com uma concepção educacional “bancária” desenvolvemos uma avaliação “bancária” da aprendizagem, numa espécie de capitalismo às avessas, pois fazemos um depósito de “conhecimentos” e os exigimos de volta, sem juros e sem correção monetária, uma vez que o aluno não pode a ele acrescentar nada de sua própria elaboração gnosealógica, mas repetir o que lhe foi transmitido. Desenvolvemos a “pedagogia espetacular”, na qual os alunos devem se limitar a expelir pálidos reflexos do que é o professor enquanto sujeito epistemológico.393

Esses mecanismos tornam-se possíveis quando o avaliador seleciona por amostragem um conteúdo e avalia o quanto o aluno sabe (de acordo com os parâmetros do educador) daquela amostra. Avalia-se, então, em percentual e atribui-se uma nota. Ao avaliar, o educador não deseja que as fronteiras da amostra sejam ultrapassadas e por tal razão, é comum alunos relatarem que o que caiu na prova foi justamente o que ele não sabia (amostra). Quase sempre, o aluno não tem chances de dizer o resto que sabe. Daí que a avaliação, quando

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assim procede, é sempre um processo de finitude por excelência, que não aceita coexistir com o exterior. Não há possibilidade de transbordamento. Eu não posso dizer o que sei.

A partir daí, o aluno, sem opções, busca sempre contentar o avaliador, na perspectiva de quem o examina e não em sua própria perspectiva, sem considerar sua própria reflexão. Ao final, o que vê no “espelho” não é a si mesmo, mas aquele a quem precisou agradar. É o que Saviani chama de cultura da resolução de pseudo-problemas:

Toda uma série de mecanismos artificiais é desencadeada como resposta ao caráter artificioso das questões propostas. O referido caráter artificioso configura, evidentemente, o que denominamos "pseudo-problema". Um raciocínio extremado tornará óbvio o que acabamos de dizer: suponhamos que as 7.100 ilhas do arquipélago das Filipinas tenham, cada uma, um nome determinado. Suponhamos, ainda, que um professor de Geografia exija de seus alunos o conhecimento de todos esses nomes. Os alunos estarão, então, diante de um problema: como conseguir a aprovação em face dessa exigência? Uma vez que eles não necessitam saber os nomes das ilhas (isso não é problema), mas precisam ser aprovados, partirão em busca dos artifícios ("pseudo- soluções") que lhes garantam a aprovação. Está aberto o caminho para a fraude, para a impostura. Com este fenômeno estão relacionados os ditos já generalizados, como: "os alunos aprendem apesar dos professores", ou "a única vez que a minha educação foi interrompida foi quando estive na escola.”394

Essas formas de avaliação privilegiam o englobamento, a amostragem, a mensuração, a classificação e a seleção dos melhores, não obstante, podem ser consideradas como mecanismos de exclusão.

Evidentemente, a exclusão começa a partir do momento em que o professor organiza seu trabalho, baseando-se em uma metodologia de ensino cuja finalidade é aplicar a todos. O aluno que não tiver uma boa adaptação a essa metodologia estará praticamente condenado à reprovação (o que não se encaixa é descartado).

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SAVIANI, 1973, p.06. - A Filosofia na formação do professor. Escrito em 1973 como texto didático para os alunos da disciplina Filosofia da Educação l, do curso de Pedagogia - PUC/SP Publicado na Revista D/doto, no l, janeiro de 1975.

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Além do mais, os sistemas avaliativos têm agido nas escolas de uma maneira marcante, transformando o currículo, o espelho dos exames (é o que tem acontecido, por exemplo, com as avaliações de vestibular e provas do ENEM e ENADE). Essa escola, voltada para o treinamento de avaliações, testes, exames, vem desenvolvendo nos estudantes habilidades quase que mecânicas, numa busca quase que desenfreada do automatismo. O que importa é conhecer, decifrar, para se sair bem.

(...) questões cujas respostas são de antemão conhecidas. Isto é evidente em relação ao professor, mas não deixa de ocorrer também no que diz respeito ao aluno. Na verdade, o aluno sabe que o professor sabe a resposta; e sabe também que, se ele aplicar os procedimentos transmitidos na sequencia das aulas, a resposta será obtida com certeza. Se algum problema ele tem, não se trata aí do desconhecimento das respostas às questões propostas, mas, eventualmente, da necessidade de saber quais as possíveis consequências que poderá acarretar o fato de não aplicar os procedimentos transmitidos nas aulas.395

Por outro lado, como currículo oculto produzido a partir dessa prática, lembremo-nos que é um estímulo para comportamentos individualistas competitivos de grau extremos. O individualismo competitivo é oposto à cooperação.

Seguindo com a análise, temos que a própria questão de quantificação de fenômenos educacionais implica em questões ainda mais profundas. Nem todos os processos de ensino/aprendizagem podem ser tão prontamente quantificáveis. Muito do que acontece dentro da sala de aula escapa à possibilidade de ser medido por um ou vários instrumentos. Nesse sentido, Lévinas já nos alertava sobre o movimento da razão, que é de englobar tudo e a todos.

Essa discussão evoca a reflexão sobre os pressupostos da própria educação. Até que ponto se pode construir um instrumento de medida sem comprometer a integridade do seu todo? Seria o ato de avaliar, com todo o seu aparato mensurador e seu alto risco de reducionismo?

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A avaliação, portanto, assumiria uma posição de controladora superpoderosa, responsável por um certo número de coisas, de uma certa maneira. Enfim, responsável por manter a ordem. Naturalmente, na ordenação das probabilidades, manter a ordem inspira mais chances de incitar o medo do que a identificação. O medo é um fenômeno estranhamente vívido nos ambientes escolares.

Por tais razões, os sistemas de avaliação encaixam-se também como instrumentos para exclusão e modelagem de indivíduos. A avaliação é o instrumento final dessa visão classificatória, punitiva e coercitiva, de controle cognitivo e da conduta comportamental do aluno. Nisto, também a Unesco, aparentemente tem realçado a necessidade de se pensar os sistemas educativos em outras perspectivas:

Depois, é necessário que os próprios sistemas educativos não conduzam, por si mesmos, a situações de exclusão. O princípio de emulação, propício em certos casos, ao desenvolvimento intelectual pode, de fato, ser pervertido e traduzir-se numa prática excessivamente seletiva, baseada nos resultados escolares. Então, o insucesso escolar surge como irreversível, e dá origem, frequentemente, à marginalização e à exclusão social.396

Segundo Lévinas, tudo isso se deve às ciências empíricas e positivistas que passam arrogantemente sobre tudo e têm desempenhado primordialmente a missão de tudo esclarecer e tudo dominar. O que é possível e o que não é possível, até mesmo sobre a vida e seu sentido, tem sido enquadrado.

Essa pretensão de dominar e esclarecer tudo gera consequências terríveis para a humanidade não só no quesito científico, mas também no âmbito pedagógico. Como uma herança indesejável, a ânsia de pensar que se pode esclarecer tudo, nos leva a uma ideia errada do ato de conhecer. A ideia de conhecimento e de como ele se processa, segundo Lévinas, revela alguns aspectos significativos. No ato de conhecer, o diferente é neutralizado por conceitos genéricos e universais. Esse enquadramento e essa generalização, de acordo com o sentido levinasiano, é também uma forma de violência conceitual.

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Lembremo-nos de que a tirania consiste exatamente em recusar essa realidade oposta, em fazer existir somente o geral, o sem vulto.

Assim, o conhecimentonão pode ser reduzido a um mero processo de mesmificação. Nesse sentido, a atitude pedagógica de avaliar o conhecimento do aluno respeitando o princípio ético deveria ser uma transcendência para que não recaísse nas mesmas pretensões da razão moderna; para além de mensurações, quantificações e englobamentos, deveria pensarem como se tornar uma verdadeira escuta.

Escutar o aluno, suas reais apropriações, seu entedimento para além do que foi estipulado. Devemos examinar aquilo que o aluno realmente pensa sobre o problema, não aquilo que nós lhe sugerimos como resposta. Para tanto, devemos estimular meios de avaliação em que o aluno possa responder com reflexão, extraindo a resposta de seus próprios recursos, sem que tenhamos que as sugerir.

É, contudo, útil para ajudar os alunos a construir o seu próprio sistema de pensamento e de valores, livremente e com conhecimento de causa, sem ceder às influências dominantes e a adquirir, assim, maior maturidade e abertura de espírito. O que pode ser penhor de convívio social no futuro, um estímulo para o diálogo democrático e um fator de paz.397

Muito embora a avaliação possa ser influenciada pelo interrogatório, não se deve esperar uma resposta pronta. Esta deve ser um produto original do pensamento, produto do raciocínio feito sob comando. Assim, o que avaliamos é agora patrimônio da conduta do aluno, algo que lhe pertence, o qual não podemos tirar. É esse patrimônio que lhe dá possibilidades para criar, reinventar, redescobrir e interpretar o mundo.

Contribuindo para a análise, Hoffman aponta para uma avaliação capaz de perceber a aprendizagem em suas múltiplas dimensões. O aprender envolve o desenvolvimento, o interesse e a curiosidade do aluno, a sua autoria como pesquisador, como escritor, como leitor. Envolve o seu desenvolvimento pleno. A análise da aprendizagem é uma análise de conjunto de saberes e de fazeres.

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Esse aprender é um aprender muito mais amplo do que muitos professores hoje concebem.

Avaliação deve ser vista como um princípio ético. A avaliação, muito mais do que o conhecimento de um aluno, é o reconhecimento desse aluno. Cada aluno é importante em suas necessidades, em sua vivência, em seu conhecimento.

É possível que parte do que aqui se defende já esteja sendo praticado por algumas instituições. A esse respeito, podemos citar as escolas alemãs que trabalham com sistemas de avaliação inspirados na pedagogia waldorfiana, enquadrando-se próximas ao pensamento levinasiano.

Devemos ressaltar, no entanto, que, para Lévinas, a instância “liberdade” também é “obediência” somente se, aquilo que for comandado, se apresentar como evidência ética para quem deve executar a ordem. Ora, se com esses argumentos sustentamos que a avaliação, da forma como foi exposta, é excludente, controladora e formadora, evidentemente temos que buscar outras possibilidades para efetivá-la.