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O Nós: ética, política e estado no reino da guerra

O REINO DA GUERRA E O REINO DA PAZ

1. O Reino da Guerra

1.3. O Nós: ética, política e estado no reino da guerra

O eu egoísta é a medida de tudo. Em seu “tratado do egoísmo”, Lévinas nos mostra como são muitos os instrumentos criados pela razão para se obter a

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LÉVINAS, 2005, p.241.

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Veremos adiante que Lévinas não tem dúvidas de que a ética ocidental não passa de uma negociação de interesses daqueles que detêm o poder no momento.

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Lévinas tece contrapontos entre os conceitos de Reificação e História. Segundo a literatura levinasiana, a história absorve os existentes em suas regras, sendo necessária a ruptura.

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paz. De maneira astuciosa, esse ser enclausurado em si mesmo, fechado em uma identidade construída, tem a si próprio como referência, e como objetivo todo o protagonismo de si e a vontade de domínio.235Em função disso, a prática de negociar entre os seres resulta nas regras de paz de quem tem mais poder.236

Não há alteridade com o outro dentro dessa realidade sem contato ou familiaridade com o mundo do Outro. Disso podemos compreender o pensamento totalitário, fruto da racionalidade que pretende dominar, que tem seu germe de violência desembocado na “Política”, na “Economia” e na “Ética”.

A ontologia como filosofia primeira é uma filosofia do poder. Desemboca no Estado e na não-violência da totalidade, sem se premunir contra a violência de que vive esta não-violência e que aparece na tirania do Estado.237

Adentrando na fenomenologia da Sociedade e do Estado, em Lévinas temos que a sociedade de Eus é constituída por múltiplas vontades, imersas na necessidade ontológica do egoísmo que constitui os Eus como entes separados. Na tentativa de autopreservação, os Eus conflitam entre si. O enredar da astúcia da razão leva-nos à política que, na sociedade dos Eus, surge como a arte de negociar a paz.238

Considerando que o avanço da humanidade é pensado politicamente a partir dos conflitos que surgem na guerra dos Eus, postulando-se para eles uma nova estratégia, em Lévinas, a questão é outra:

Saber se a sociedade, no sentido corrente do termo, é resultado de uma limitação do princípio de que o homem é o lobo para o homem, ou se, pelo contrário, resulta da limitação do princípio de que o homem é para o homem.239

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Segundo Lévinas, o ser autointeressado não está disposto a parar até que todas as coisas estejam sob seu controle, totalizado ou reduzido. Essas totalizações apresentaram-se em duas formas para Levinas: prático e noético.

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Tudo que faz oposição ao eu e que apresenta uma resistência a ele causa o seu afastamento e a procura um novo ambiente. O afastamento não é um respeito ao outro, mas o reconhecimento de que o outro é mais forte e pode dominar.

237 LÉVINAS, 1980, p.16. 238 LÉVINAS, 1980, pp. 213-217. 239 LÉVINAS, 1982, p.74.

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A partir dos conflitos que surgem a cada minuto no mundo dos existentes, Lévinas colhe evidências suficientes para crer que a guerra nos mostra o Mal de ser. A política, que produz a guerra, é um estado permanente de guerra. Lévinas está convencido de que a política é a arte de negociar com quem tem mais poder, de prever e ganhar por todos os meios a guerra. Disso resulta uma forma de paz, mesmo que seja a guerra fria.

Esta paz razoável, paciência dilação do tempo, é cálculo, mediação e política. A luta de todos contra todos- se faz escambo e comércio. O entrechoque em que, todos contra todos estão todos contra todos, faz-se limitação recíproca e determinação de uma matéria. Mas, o interesse persiste esse mantém pela compensação que, no futuro, deverá equilibrar as concessões pacientemente e politicamente consentidas de imediato.240

No entanto, para Lévinas a paz dos impérios saídos da guerra repousa sobre outra guerra. A política é produtora e mediadora da paz e disso decorre a compreensão levinasiana de que a política é Mal de Ser. O Estado surge como compromisso no conflito das espontaneidades livres e egoístas.

A exemplo dos grandes impérios que surgiram ao longo da história, o Estado ególico, Mal de Ser, atinge seu apogeu em uma hipertrofia que não encontra mais nenhum obstáculo ao seu mundo. O percurso para esta hipertrofia é a busca pela hegemonia, a conquista, o imperialismo, que resulta no Estado totalitário e opressor, ligado a um egoísmo realista. É o local por excelência da corrupção e, talvez, o último refúgio de idolatria.

Por outro lado, Lévinas considera que a política é a arte de prever e ganhar a guerra por todos os lados. Esta, enquanto prática de negociar a paz, é sempre uma violência contra os mais fracos. Portanto, no reino do Ser, a política é Mal de Ser.

Eles são o interesse. A essência é interesse. O interesse está sendo dramatizada no auto-interesse de lutar uns contra os outros, todos

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contra todos, na multiplicidade de alergia- egoísmo que estão em guerra uns contra os outros e, assim, juntos.241

Não obstante, a economia enquanto instrumento da razão dominadora, age sobre a vontade, tentando se apoderar da pessoa. No mundo da economia, as vontades da consciência estão restritas ao valor econômico.242

Na economia, elemento em que uma vontade pode dominar outra sem destruí-la como vontade opera-se a totalização de seres absolutamente singulares dos quais não há conceitos e que, em virtude de sua própria singularidade, se recusam à adição. Na transação realiza-se a ação de uma liberdade sobre a outra. O dinheiro, cuja significação metafísica talvez não foi medida.243

Nesse sentido, o pensamento levinasiano vem a calhar, sobretudo no momento em que vivemos uma mentalidade mundial global chamada neoliberalismo econômico.244

Também a ética, instituída racionalmente, consiste em seu último estágio na submissão da vontade subjetiva às leis universais.

Ao se referir ao domínio do logos e subjugação do Outro pelo mesmo, Lévinas considera que a ética se traduz como o privilégio do grupo majoritário, sendo suportada pelo grupo da minoria, que se encontra do outro lado da balança.

A história do pensamento das éticas, considerando todos os tratados sobre ética e moral já elaborados pelos homens, revela, no seu interior, uma história de confronto dos pensamentos e das muitas éticas, que se agrava diante das muitas culturas inseridas em um mesmo momento histórico, o que para muitos é a experiência do estranho.

Não obstante, diante da pretensão da ética à universalidade, deveríamos responder que todos somos protegidos, mas é justamente nesse ponto que nos deparamos com o primeiro problema. Considerando a ética como tratado dos

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LÉVINAS, 2005, p.64.

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Para Lévinas, o indivíduo está fora da totalidade quando na transação da economia e do comércio, o sujeito é envolvido, vendido ou comprado. O dinheiro nessa relação é, em menor ou maior grau, salário.

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LÉVINAS, 2005, p.64.

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fortes que será suportada pelos fracos, surge a seguinte pergunta: Quem impõe a ética e quem a suporta?

Como vimos no primeiro capítulo, a história das sociedades e dos tratados éticos nos mostram como os diferentes e as diferenças dificilmente foram contempladas pela ética. Os mais fracos sustentavam como escravos o arcabouço simbólico da ética dominante enquanto podiam. Segundo Lévinas (1980), as revoluções tiveram ao longo da história o poder dos fracos, dos resistentes e diferentes para moverem a história, mas após se fazerem úteis, estes foram destituídos e absorvidos. Esse primeiro problema relaciona-se com um segundo, que trata da alteridade diante da diferença.

A partir da diferença e da alteridade, surge um terceiro grande problema: Poderá existir um fundamento para a ética? Considerando que tais questões sobre o fundamento acabaram por se tornar um movimento perpétuo e inacabado,245há uma resistência identificada por Lévinas para tarefa de buscar tal fundamentação à ética.

Atualmente, percebemos que as éticas são forjadas em um verdadeiro campo de batalha. Isso resulta em um cenário no qual o indivíduo solitário renuncia a si mesmo para em seu lugar assumir o coletivo. Daí assistimos a emersão dos chamados códigos de ética ou deontologia dos grupos que resultam em novo estado de guerra: das minorias e dos grupos sociais que elegeram uma ética para si e querem torná-la positivada. Portanto, a história dos sistemas éticos, segundo Lévinas, reflete a crise do próprio pensamento.

Por fim, tendo constatado a insuficiência da fratura como mediadora das relações humanas, o movimento que Lévinas (1993) propõe é o surgimento da interioridade como primeiro momento, ontologicamente necessário para o surgimento do eu ético. O filósofo defende a necessidade de autoconstituição enquanto subjetividade, como abertura ao outro, transcendendo o egoísmo.

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De acordo com Oliveira(1993), há um estado de resistência em relação a todos os princípios já formulados. O princípio teológico, presente por muito tempo no ocidente, já não é considerado fundamento aceito. O princípio racional não é mais contemplando após as grandes guerras. Houve um desencanto com a razão humana. O princípio individualista não contempla o geral da ética, mas o indivíduo que segue acima de todas as coisas, em detrimento do coletivo. O princípio social exclui o indivíduo da ordem das prioridades.

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