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Lévinas e o judaísmo acadêmico: O Grego e o Semita

LÉVINAS: FORMAÇÃO, INFLUÊNCIAS E REDEFINIÇÕES

4. O projeto filosófico levinasiano

4.1. Lévinas e o judaísmo acadêmico: O Grego e o Semita

O significado de ser judeu hoje, para Lévinas, é o de ter a obrigação de resistir ao mal, como nova modalidade de Ser:

Uma história que faz apelo maior aos recursos do eu em cada um e a seu sofrimento inspirado pelo sofrimento do outro homem, a sua compaixão que um sofrimento não-inútil (ou amor), que não é mais sofrimento “por nada” e que tem, de chofre, um sentindo? Não somos nós- como povo judeu à sua fidelidade- todos votados ao segundo termo desta alternativa no fim do século XX e depois da dor inútil e injustificável que no seu percurso foi exposta e desdobrada sem sombra alguma de teodiceia consoladora? Nova modalidade na fé de hoje e mesmo, nas nossas certezas morais, modalidade extremamente essencial à modernidade que desponta.126

O pensamento de Lévinas se baseia em um teocentrismo de longo alcance, que lhe permite combinar um compromisso com a fé judaica e com a produção filosófica. Mas a influência desse compromisso teocêntrico se espalha muito além

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ROSA, 2009, p.16

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dos limites de seus pontos de vista sobre a fé religiosa. É fonte de sua crítica sobre o pensamento filosófico ocidental.

Pela vontade de entender filosoficamente a sabedoria judaica da Bíblia e do Talmud, Lévinas dá a seu pensamento uma dimensão hermenêutica que, em sua obra, se prolonga além de uma vertente filosófica propriamente dita, em outra mais especificamente talmúdica: uma série de ensaios, de meditações que remetem especificamente a textos das Escrituras e particularmente do Talmud. Tais textos, em razão de seu caráter heterogêneo e peculiar, parecem destinados a frustrar uma racionalidade animada pelo desejo de sua própria coerência, pois se justificam por um modo de pensar em que a coerência está na exigência ética.127

Para Lévinas, a religião consiste no principal valor a ser respeitado. Em tempos de conflitos, todos os demais valores devem ser subordinados à religião, embora ela não seja necessariamente o único valor importante. O filósofo exemplifica que, ao agir para o bem do outro, é preciso reconhecer que esta é a realização de um ato ético, nobre e não um ato religioso e santo. Daí a necessidade da tradução do semita ao grego.

Quanto ao “judaísmo”, trata-se de uma religião, uma vez que apresenta um caráter de revelação. A revelação de Deus a Abrão e a Moisés é composta por dimensões: bíblica e rabínica. A tradição rabínica ou sabedoria judaica foi desenvolvida em tempos pós-bíblicos.

Segundo Scholem (1970), a sabedoria judaica128é caracterizada por uma origem e por um fim. A origem dessa sabedoria pode ser encontrada na revelação ocorrida no Monte Sinai, ao passo que o ponto de chegada é a figura do sábio.129Moisés recebeu a Torah no Sinai e a transmitiu a Josué. Josué a transmitiu para os anciãos e os anciãos passaram-na para os profetas. Os profetas, por sua vez, a entregaram para os homens da grande assembleia e os homens da grande assembleia sugeriram que adotassem cautela e que todos se reunissem em torno da Torah. Assim chegamos à figura do sábio, que se

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BORDIN, 1998, p.557.

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Sabedoria indica uma dimensão que tem a ver com o mundo humano e prático.

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Essa declaração é muito bem ilustrada nos textos da Mishna, em que é perceptível a cadeia de transmissão da revelação da Palavra de Deus e a sua humanização.

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materializa na medida da sequência de eventos e mostra as características da sabedoria: a origem, transmissão, interpretação, discussão de decisão e implementação.

Moisés recebeu a revelação do Sinai.130Sinai significa céu, isto é, Deus. Moisés recebeu a revelação de Deus e desceu do Monte Sinai, por um Deus que se faz audível à sua vontade. A origem é divina e todos os outros elos da cadeia são humanos: Moisés, Josué, Idosos – juízes, os profetas, os homens da grande assembleia, ou seja, os sábios. Os profetas são canais de transmissão da Revelação.

Nesses termos, um único ponto de partida, o da revelação, em geral, não basta. A revelação deve ser implementada e fazer-se cumprir pelos homens. A palavra dada na origem dos acontecimentos compete ao sábio, que deve interpretar e transmiti-la. Segundo Scholem(1970), nesse processo, a origem divina permite que palavra e o sábio sejam um, ou seja, a palavra humanizada.

A transmissão da revelação é um processo de humanização, de como a palavra de Deus se torna cada vez mais humana. Parece um processo de secularização, sem a transcendência de Deus, mas não para o judaísmo, para o qual a origem divina está sempre presente. A revelação do Sinai é sempre hoje.131

A concepção do judaísmo é profética, já que não existem novas revelações. O ponto de chegada são os homens da grande assembleia, que são os protótipos para o judaísmo dos rabinos. Para o Judaísmo, a revelação bíblica termina no momento em que se completam os livros do Cânon, o Pentateuco, escritos em Jerusalém, na Idade Antiga.

Por outro lado, Lévinas distingue claramente o Grego do Semita. Sua visão mergulhada no interior do judaísmo emana implicações importantes para a relação com a ética. Valores religiosos não podem ser subordinados aos valores éticos que, costumeiramente, são ditados por interesses humanos. Para Lévinas, esses valores éticos são profanos por definição e, portanto, há uma distinção nítida entre

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O propósito do nome Sinai é justamente referir a Deus sem nomeá-lo.

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o semita e o reino da ética. “No judaísmo, o ato mediante o qual os israelitas

aceitam a Torá precede o conhecimento. Para eles, é a fonte do sentido e o evento fundamental que instaura a ética.” 132

Basicamente, a Torah não reconhece os imperativos morais decorrentes do conhecimento da realidade natural ou da consciência do dever do homem para com o seu semelhante. Tudo que reconhece são Mitzvot, imperativos divinos.

Lévinas não nega que há um verdadeiro reino de valor ético. O filósofo afirma que tanto os deveres teocêntrico/religiosos quanto as concepções antropocêntricas de valor são “legítimas”, mas entende que os valores éticos, na concepção grega, são distintos e salienta a importância de não se confundir um com o outro. A ética grega, observa Lévinas, é uma “categoria ateísta por excelência”, que coloca o eu no ápice dos valores no lugar do outro-Deus.

Outra grande preocupação de Lévinas refere-se à falta de autoridade da ética grega, por isso suas bases são demasiadas fracas para fundamentar imperativos categóricos. Constantemente Lévinas utiliza termos como rigor,

heroico e messiânico. Talvez porque os postulados éticos da tradição filosófica

grega sempre podem se desculpar, quando excluem da regra geral as exceções ou os casos que não estão inseridos no discurso da totalidade. Já do mandamento divino, de onde advém a verdadeira ética, não há como escapar.

No judaísmo, a partir da autoridade de uma demanda divina, sua posição como mandamento promove a transformação da condição de “mero bom conselho, uma aspiração nobre, ou um ideal sublime” para uma “realidade da lei, algo que é obrigado a tomar como se deve tomar uma ordem policial a sério”.

A ética grega mesmo agindo por ideais nobres e legítimos, ainda tornaria os atos éticos não heroicos. Para Lévinas, a ausência de um mandamento é uma das razões da fraqueza humana, pois a priva de seu caráter ético, que é heroísmo. Dessa forma, primeiramente, existe a tarefa de traduzir a Escritura para o grego, ou seja, transcrever os ensinamentos em categorias filosóficas. Lévinas se dispõe a trabalhar com leis e fontes rabínicas, em particular o Talmude, de uma

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maneira filosófica. Assim, toma a fenomenologia como possibilidade de levar o semitismo ao Ocidente, sem a estética de um discurso religioso.

Existem importantes ideias cujo significado original se encontra no pensamento bíblico. Essas deveriam ser traduzidas em uma linguagem universal, em pensamento. Tal tarefa exige de Lévinas uma grande atenção para com a exegese feita pelos rabinos.

Para que uma palavra hebraica continue a ser ouvida hoje, é necessário que passe pelo crivo do judaísmo. A tradição judaica exegética assegura um texto aberto, isto porque a Escritura vive apenas quando interpretada a assumida na prática. Poderíamos afirmar que, se não fosse Lévinas – o principal precursor deste pensamento – a oportunidade de traduzir para o grego certas passagens da Escritura estariam perdidas.

Em contraste com alguns dos mais conhecidos filósofos judeus do século XX, Lévinas encontra na fenomenologia uma ferramenta confiável que pode ser utilizada na investigação da fé e do raciocínio filosófico. Assim, o filósofo discute não só do ponto de vista teológico, mas também no sentido de utilizar as ferramentas do discurso filosófico racional para traçar as implicações de determinadas posições às suas conclusões lógicas.

Na obra “Deus que vem a Ideia”, Lévinas formula o conceito de transcendência.133 De acordo com o autor, a ideia central do monoteísmo judaico é a transcendência radical de Deus, uma visão que foi dada por seu mentor, Maimônides.134Provisoriamente, podemos aceitar que “Deus é radicalmente transcendente.” Essa é uma declaração cognitiva. Uma primeira formulação aproximada do seu significado seria a de que Deus é uma entidade inexistente, absolutamente incomparável a qualquer outra forma de realidade que se pode eventualmente encontrar.135

Com base nessas observações, percebemos imediatamente que o pensamento de Lévinas encontra-se desprovido de muito do que se passa pela teologia judaica geral ou tradicional. A fé não pode ser formulada em torno de 133 LÉVINAS, 2002, p.169. 134 SCHOLEM, 1970, p.71. 135 SCHOLEM, 1970, pp.11-19.

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proposições acerca de Deus e de sua relação providencial para o universo. O Deus de Lévinas não é um Deus providencial, a história não tem teleologia e não encontramos tentativas de teodiceia em Lévinas. Ao contrário do pensamento de muitos filósofos judeus contemporâneos, Lévinas defende que um profundo compromisso com a transcendência não pode permitir o envolvimento de um Deus em assuntos meramente humanos. Para Lévinas, Deus deve ser verdadeiramente transcendente, então não podemos associar a nossa realidade, em qualquer nível, com a de Deus. A afirmação que podemos fazer a respeito de Deus é a de que ele é radicalmente transcendente.

Lévinas defende ainda que a natureza que reflete as ações de Deus torna Deus imanente na natureza e, portanto, não mais transcendente, tanto de um ponto de vista semântico e ontológico. Portanto, Lévinas assume a noção de transcendência de Deus mais do que até mesmo a sua própria filosofia.

Por outro lado, a obra “Do Sagrado ao Santo” nos indica como devemos entender como Lévinas, desde a sua inserção no judaísmo, já recorre à linguagem como uma demanda transcendente.

Segundo Scholem (1970), na história do povo judeu, o ensino tradicional judaico sustenta que, ao mesmo tempo em que Deus transmitiu a Torah Escrita, transmitiu também um ensinamento oral a Moisés que não era para ser escrito. Esse ensinamento oral acabou por ser escrito como o Talmude, até o final do século VI, sendo este a origem do sistema complexo de lei da vida judaica. Esse sistema governou até o século XIX e continua a estruturar a vida de judeus ortodoxos contemporâneos.136

No judaísmo, a Torah é a fonte dos mandamentos – os Mitzvot – que são a maneira pela qual os judeus deverão servir a Deus. Tal Escritura não foi feita por trás do véu da mitologia ou pré-história, mas aconteceu em plena luz da história e no decorrer da vida do povo hebreu. A Escritura é uma das instituições da religião de Israel.

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A Torah contém claramente as leis ou mandamentos que regem às instituições políticas e sociais já existentes, daí leis sobre escravidão, por exemplo.

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Outro ponto importante apontado por Lévinas consiste na tentativa da língua impossível de Deus. A Torah usa várias formas literárias passíveis de compreensão humana, mas, do ponto de vista da fé religiosa, a Torah e a totalidade da Sagrada Escritura devem ser concebidas como uma demanda que transcende o alcance da cognição humana.

Assim, a Torah, a Sagrada Escritura, não pode ser lida como um repositório de fatos históricos. Para lê-la “a partir do ponto de vista da fé”, devemos lê-la para as exigências que coloca sobre nós. A Torah, como uma obra sagrada, lida na esfera do sagrado e não é supostamente um repositório de verdades proposicionais de história ou ciência. O que ela oferece, ao contrário, é “a exigência feita do homem para adorar a Deus”.137