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A avaliação dita formal (SCRIVEN, 1967) que nos interessa nesta pesquisa, dotada de procedimentos sistemáticos, teve um rápido desenvolvimento inicial em 1960-1970, mas apenas em 1980 experimentou um amadurecimento que a torna hoje uma disciplina ou transdisciplina emergente (WORTHEN et al., 2004).

Consoante GUBA e LINCOLN (1989), autores seminais no âmbito da avaliação qualitativa, podemos destacar o surgimento de quatro estágios da avaliação que envolve diferentes perspectivas com aportes epistemológicos distintos, entendendo que, a despeito das rupturas, tais vertentes coexistem na atualidade:

 Avaliação de 1ª geração (1910-1940): baseia-se na mensuração de resultados e na técnica, avaliando desempenho e produtividade.

 Avaliação de 2ª geração (1940-1960): fundamenta-se na identificação e descrição de como os programas atingem resultados.

 Avaliação de 3ª geração (1960-1990): na qual a finalidade é julgar o mérito do programa, mantendo, ainda, as funções anteriores de técnica e descrição, baseando-se em referenciais externos.

 Avaliação de 4ª geração (anos 90): configura-se como processo de negociação com todos os atores envolvidos, valorizando as diferentes percepções.

Os autores identificam alguns problemas dessas três primeiras gerações, entre eles a tendência à supremacia do ponto de vista gerencial nos processos avaliativos; a incapacidade em acomodar o pluralismo de atores e projetos envolvidos em torno de qualquer programa; a hegemonia do paradigma positivista, desconsiderando o contexto da avaliação, assim como a priorização e a legitimação dos métodos quantitativos e a crença numa verdade única.

Considerando a periodização acima, esta pesquisa17 conflui para os preceitos e procura contribuir para a avaliação de 4ª geração, visto que busca não apenas melhorar a gestão dos programas e as práticas assistenciais, mas também possibilitar a democratização dos dispositivos de saúde mental, contribuir para a transparência dos processos e gerar aprendizado que fortaleça indivíduos e grupos. Desse modo, nossa intenção não é apenas focalizar os objetivos da avaliação ou as técnicas, mas especialmente as pessoas que as

17 Como este estudo se trata de uma pesquisa com contornos avaliativos, ressalva-se que pesquisa e avaliação

são marcos com peculiaridades distintas, mas que se aproximam em alguns aspectos. A pesquisa tendo como principal objetivo gerar conhecimento através do uso de métodos e evidências, sem necessariamente emitir um juízo de valor ou contribuir na tomada de decisões, como no caso da avaliação.

realizam e os mecanismos e relações que estabelecem ao praticá-las, compreendendo a avaliação como uma prática social complexa (BOSI; UCHIMURA, 2006).

No Brasil, a avaliação dos programas e serviços de saúde teve maior visibilidade em 1990 (HARTZ, 1997), principalmente em dois momentos: (1) com o advento da Constituição de 1988, a qual ampliou os direitos civis dos cidadãos; e (2) no contexto das leis orgânicas de saúde, que colocaram o SUS nas três esferas do Governo (FURTADO, 2006).

O projeto social do SUS de ampliação dos serviços suscitou questionamentos sobre a qualidade dos serviços prestados e convocou a avaliação como instrumento na busca de respostas (NOVAES, 2000). Ressalta-se, porém, que o crescimento pelo interesse em avaliação no Brasil deu-se, sobretudo, nas universidades e no terceiro setor (FURTADO, 2006).

Diante dessa nova conjuntura, a avaliação tornou-se uma estratégia para verificar alguns aspectos de qualidade desejáveis nos serviços de saúde, tais como: a efetividade, a eficácia, a eficiência, a equidade, a qualidade técnico-científica, a acessibilidade, a adequação e a aceitação dos programas (VUORI, 1991). Contudo, tanto o termo avaliação quanto o termo qualidade são polissêmicos e, dada a sua complexidade, alguns autores o empregam com diferentes significados, cabendo, portanto, demarcá-lo.

Dentre algumas definições, destaca-se a de Worthen et al. (2004), ao destacar que avaliação é a determinação do valor ou mérito de um objeto de avaliação. Os autores complementam que avaliação é a identificação, o esclarecimento e a aplicação de critérios defensáveis para determinar valor, qualidade, utilidade, eficácia ou importância do objeto. Percebe-se, portanto, que a avaliação se caracteriza pelo seu julgamento de valor a partir da utilização de técnicas e métodos científicos.

De acordo com Scriven (1967), a avaliação pode ser uma abordagem somativa ou formativa. A primeira é realizada ao final de um programa e busca dar aos responsáveis pela tomada de decisões e aos consumidores potenciais julgamentos de valor ou mérito do programa, visando encerrá-lo, mantê-lo ou expandi-lo. A segunda se desenvolve no decorrer do desenvolvimento do programa e propõe dar informações úteis para a melhoria do programa, possibilitando a compreensão do grupo-alvo e de suas necessidades.

Ayres (2001, 2008) ressalta que a avaliação formativa implica reconhecer os projetos

de felicidade que justificam e elucidam a realização do cuidado que se quer julgar, voltando-

se para a dimensão subjetiva da qualidade. Assim, a avaliação de ações de saúde não deve ter como base a condição, estado, forma ou função a serem promovidos, evitados, corrigidos ou recuperados em si mesmos, os chamados êxitos técnicos conferidos pela dimensão

instrumental da avaliação. O fundamento da dimensão prática da avaliação é a validade da resposta dada pela ação de saúde à demanda posta pelo usuário dessa ação conforme seu projeto de felicidade.

No que concerne ao termo qualidade, este pode ser tomado como desfecho da avaliação dos programas de saúde e possui distintos sentidos no plano epistemológico e metodológico. Bosi e Uchimura (2006) destacam dois aspectos da qualidade: a multidimensionalidade intrínseca, que implica a diversidade de abordagens e combinações metodológicas da qualidade, e a multidimensionalidade extrínseca, que se refere à variação da qualidade de acordo com a posição ou interesse de grupos ou atores sociais.

Durante muito tempo e predominantemente até a atualidade, tais abordagens da avaliação destinam-se a verificar o êxito técnico dos serviços e programas (AYRES, 2001) a partir de padrões e normas preestabelecidos, limitando-se à quantificação dos elementos formais de uma intervenção. Bosi e Uchimura (2006) fazem uma justaposição dessa avaliação normativa à concepção de avaliação da qualidade formal.

A avaliação da qualidade formal, de espólio positivista, não faz parte desta pesquisa, visto que a natureza do nosso objeto de estudo o situa na esfera da subjetividade, nas experiências, nas expectativas e nos projetos de vida dos usuários a que servem tais programas. Nesse sentido, o enfoque na dimensão subjetiva da qualidade é análogo à denominada avaliação qualitativa dos programas e serviços de saúde (BOSI; UCHIMURA, 2007).

A avaliação qualitativa deseja compreender os significados que os atores atribuem às dimensões do programa ou como se realizam no cotidiano as ações em interface com os discursos ou concepções sobre tais ações (DESLANDES; GOMES, 2004). Esta estará sempre presente quando o avaliador desejar compreender como se dá na prática e no cotidiano, a interface entre a realização das ações do programa, em nossa pesquisa a RAPS, e os discursos/ concepções dos usuários sobre estas ações (PATTON, 2004, APUD DESLANDES, 2008, P.73).

Nesse processo de empoderamento e participação há um ganho de reflexão crítica em todos os envolvidos. Para Mercado (2006), os principais propósitos de uma avaliação devem ser 1) criticar certas posturas ideológicas tradicionais; 2) gerar novos conhecimentos e; 3) medir o impacto das intervenções na saúde.

No campo da saúde mental a avaliação esteve historicamente atrelada a uma prática individualizante que atribuía ao louco valores estigmatizantes como os de incapacidade, irresponsabilidade, periculosidade, inferioridade, irracionalidade (AMARANTE, TORRE,

2007). Segundo ele, a transição paradigmática vivida pela crise dos modelos de intervenção no campo da saúde mental demanda que os processos de avaliação possam romper com a hegemonia do paradigma médico-psicológico dominante tornando-se capazes de operacionalizar novos modos de avaliar a produção de subjetividades.

A avaliação da desinstitucionalização tem sido realizada principalmente a partir de indicadores baseados na relação entre a abertura de unidades de caráter substitutivo, como os Centros de Atenção Psicossocial e o fechamento de leitos de hospitais psiquiátricos. Apesar de os números nos mostrarem o andamento estrutural do processo, eles não evidenciam a maneira como é realizado o cuidado a esses usuários no contexto de vida em família/sociedade e no cotidiano das práticas de saúde. Essa perspectiva é importante para a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), cujos princípios partem da superação de um paradigma de atenção centrada na doença e caminham para a atenção baseada na promoção da saúde, onde assumem importância os conceitos de integralidade e cuidado (MARTINS, PINHEIRO, 2009, p. 95).

Bosi e Uchimura (2007) afirmam que a avaliação qualitativa busca desvendar o universo simbólico dos atores em sua complexidade e profundidade, materializado nas relações intersubjetivas estabelecidas em determinadas práticas em saúde. Neste sentido, a utilização da avaliação qualitativa nos serviços de saúde mental está em consonância com o plano discursivo e prático de suas ações, visto que um cuidado em saúde mental implica inevitavelmente a utilização de tecnologias leves18.

Assim, as experiências em geral, especialmente a dos usuários, e as avaliações com foco nas dimensões da qualidade do cuidado passam a ser valorizadas teoricamente como produto de vários saberes e práticas que se somam dialogicamente na produção de ações interativas e reflexivas (PINHEIRO, MARTINS, 2011)

Com base na micropolítica da produção do cuidado, entendida como ação cotidiana de cada sujeito na defesa dos direitos do seu trabalho na saúde, o privilégio é dado ao sujeito como o centro das ações e serviços de saúde, uma vez que o cuidado hoje está sendo ressignificado e passa a ter o sentido de acolhimento, respeito e encontro (FRANCO; MERHY, 2008).

Outra contribuição ao nosso estudo vem da experiência dos estudos organizados por Pinheiro e Martins (2011) sobre integralidade e avaliação na atenção básica que construíram

18 São três os níveis tecnológicos na atenção em saúde, segundo Merhy (2006): leve (tecnologias ou modos

relacionais de agir na produção dos atos de saúde, ou seja, em intervenções pautadas nos relacionamentos interpessoais dos atores envolvidos), leve-duro (saberes tecnológicos clínicos e epidemiológicos) e duro (equipamentos, medicamentos e máquinas).

desenhos para avaliação em saúde, a partir do estudo sobre experiência de adoecimento e as contribuições dos estudos sobre itinerários terapêuticos e trajetórias assistenciais como ferramentas metodológicas traçadas a serem utilizadas na Rede de Atenção Psicossocial.

Há, portanto, uma integração entre o objeto de estudo desta pesquisa e o método utilizado no campo da avaliação qualitativa, explicitando sua intricada relação com as dimensões de integralidade e humanização do cuidado nos serviços de saúde mental.