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TEMAS CENTRAIS

9.1 Itinerários terapêuticos

9.1.1 Experiência de sofrimento psíquico

A experiência de sofrimento psíquico dos usuários entrevistados pode ser compreendida a partir do conjuntos dos sinais e sintomas identificados como violência contra si e contra os outros, isolamento, agitação, alterações no discurso, problemas no campo da percepção (delírio e alucinação), ataques e crises, mudança de desempenho de papéis sociais, da aparência, emoção, comportamento bizarro, ou seja, condutas e modos de ser considerados estranhos ou alheios a um padrão normal de modo marcante. Tais características marcaram os diagnósticos dos médicos como esquizofrenia, depressão, transtorno bipolar (APÊNDICE E).

“Se ela tiver agressiva, ela vem em cima deu, das irmãs dela, de qualquer um...” (HUWC2)

34 A categoria unidades mínimas, pertencente a este modelo, já foi apresentada na descrição do cenário de estudo

“Ele tava dormindo e acordou com ela tentando sufocar ele” (HSMM1)

“Essas vozes não param de perturbar ela, ela é agressiva, vem assim pra cima da gente” (HSMM7)

“Ela fica violenta, ela fica agressiva, ela fica dizendo as coisas, não fala coisa com coisa, pensa mal de você” (CAPS4)

A gente fechava o portão e a porta, ela arranjava alguma coisa pra bater, pra tentar arrombar, coisas assim bem agressivas mesmo. Ela agredia só se a gente tentasse barrar algumas vezes, mas não era de jogar nada, era só se a gente tentasse barrar aquilo que ela queria fazer, tipo sair pra rua, coisa do tipo, mas assim dentro de casa, do nada, ela não tinha agressividade com ninguém, ela tinha com ela assim, às vezes de se asunhar, coisa assim, mas assim tentar contra a vida ou coisa mais grave não. (CAPS1)

“Aí passou a terça, quarta e quinta e ela só acordada, não dormia, com o olho enorme” (HSMM6)

“Comecei a fazer coisas que tava desagradando a minha família querendo passar na frente dos carros, entrando no mercantil querendo comprar coisa, porque eu achava que eu era muito rica, eu querendo sair de noite umas horas da noite” (HSMM3)

ela não tava nem comendo e nem andando, fez tudo na cama, sujou tudo, iam até botar a sonda nela por conta que ela não comia (...) Ela dorme, acorda, mas ela escuta tudo que você falar, ela entende, mas não fala e é com as mãos assim fechada direto, assim como quem tá com medo de uma coisa. Das outras vezes quando ela começou, ela ficava dizendo que iam matar a família dela, o filho, meus irmãos, vão matar, vão matar, tipo assim delirando e também ela ficava um pouco agressiva se você tentasse fazer alguma coisa, banhar ela, dar alimentação, tentar botar na boca dela, tudo isso ela ficava agressiva (HUWC2)

“Ouvia voz, via vulto, ouvia grito, ouvia me chamar, não era nada, era só ilusão, só coisa perturbação do juízo.” (HSMM/HD5)

“Agora dessa vez, eu botei na cabeça que eu era filha do Senhor Jesus, que é muito rico, então eu fiquei delirando nessa parte aí” (HSMM/HD3)

“Tensões, choros, acho que visões, coisa do tipo, e que ela dizia que via, né como também sentia, ela dizia que sentia muita quentura no corpo, sobretudo à noite quando a gente já estava dormindo ela acordava pra tomar banho pela madrugada porque dizia que estava, que o corpo estava quente como fogo queimando coisa do tipo- (CAPS1)

De acordo com o CID-10R, os transtornos esquizofrênicos se caracterizam em geral por distorções fundamentais e características do pensamento e da percepção, e por afetos inapropriados ou embotados, a percepção delirante, ideias delirantes de controle, de influência ou de passividade, vozes alucinatórias que comentam ou discutem com o paciente na terceira pessoa, transtornos do pensamento e sintomas negativos, entre outros (OMS, 2008).

Já no diagnóstico da depressão levam-se em conta sintomas psíquicos, fisiológicos e evidências comportamentais, a saber: humor depressivo, redução da capacidade de experimentar prazer na maior parte das atividades, antes consideradas como agradáveis,

alterações do sono e do apetite, retraimento social e crises de choro, para citar estes. (DEL PORTO, 1999; OMS, 2008)

“Quando ela entrestecia, ela não queria comer, não queria falar com ninguém nem beber

água, não trocar de roupa, não tomar banho, depressão dela toda vida foi assim, no começo ela passava meses aí, depois foi passando de ano e saindo ano” (HUWC2)

Era digamos um silêncio, ela ficava calada, só falava se a gente perguntasse alguma coisa e ela não respondia muito a nada, queria só dormir, ficar deitada, não tinha ação pra fazer atividades diárias, as coisa de casa, ou sair de casa. Ficava só dentro de casa, resguardada, silenciada, sem nenhuma reação assim. (CAPS6) Nos relatos lidos, o isolamento tende a estar associado, por um lado, à indisposição e falta de ânimo que remetem às ideias de força e fraqueza, e por outro, à condição de estar amuado. Trancar-se, deixar a casa em desleixo, descuidar-se de si mesmo são também comportamentos mencionados para se descrever uma dinâmica de isolamento.

Outra experiência de sofrimento psíquico são as mudanças súbitas e inexplicáveis nas atitudes:

“A gente ver que não é ela, sabe, porque ela é uma pessoa muita calma, muito tranquila” (HSMM6).

“Porque antes ela era uma pessoa saudável, alegre, só que ela sempre foi uma pessoa calma, quieta, calada, mas nunca era explosiva nem nada não” (CAPS4).

Por fim, as descrições de normalidade, que caracterizam o estado da pessoa antes da doença ou sua recuperação, apontam para dimensões importantes da semiologia relativa a problemas mentais. Conforme Rabelo et al (1999), os signos de normalidade presentes nos relatos envolvem três tipos básicos: desempenho de papéis sociais, aparência e relação com outros.

Os signos de desempenho de papéis, referentes, basicamente, ao trabalho, aparecem tanto nas descrições de normalidade quanto na identificação de melhora. Nestes contextos, fala-se que a pessoa era (é) trabalhador (a) e/ou que apresenta(va) disposição para trabalhar.

“Quando ela tá em casa, ela faz o serviço dela, varre, lava prato, faz comida, quando ela tá boa, mas do jeito que ela tá aí não, quando ela está boa ela faz tudo. (...) Ela trabalhava, era normal, saía, tinha problema nenhum, trabalhava ela, sempre trabalhou” (HUWC1)

Há três aspectos importantes a notar quanto ao significado do trabalho na atribuição de normalidade ou melhora. Em primeiro lugar, a disposição para o trabalho está relacionada à força-entendida como um estado de plena posse das capacidades físicas e mentais-, e deste modo se opõe à fraqueza que caracteriza a doença. A outra concepção do que é ser trabalhador relaciona-se também ao cumprimento de expectativas sociais específicas para

cada gênero: a mulher trabalhadora é definida, nas narrativas, em termos do cuidado com a casa e os filhos e a última categoria importante é a construção e afirmação da identidade.

Já a normalidade/sofrimento identificada pelo cuidado com a aparência, pode ser contemplada nesta fala:

Ela ficou num estado que não tinha mais nem a gente aguentava com ela, não tinha, se você tentasse pegar ela pra botar no banheiro pra banhar ela rasgava a gente todinha, ela ficou num estado que não, ninguém aguentava, fedendo, cabeça cheia de piolho, muita suja, o corpo dela ninguém via mais nem a pele, era só sujo (HUWC2)

Como dissemos nos capítulos três e sete, as doenças mentais foram incluídas como condição crônica por exigir cuidado contínuo e prolongado (OMS, 2003) e algumas vezes manifestam-se na exacerbação de sinais e sintomas como descritos acima, marcando o que as pessoas denominam de “crise”. Contudo, tal condição também comporta períodos de “silenciamento ou “normalidade” (BELLATO et al, 2011)

“Depois de algum período, ela acabava voltando, digamos, bem pra convivência normal de

família, de atividades, de cuidar da casa, de passeios”. (CAPS1)

Apesar da predominância de características psicopatológicas nas experiências vividas, não foi nossa intenção produzirmos um diagnóstico ou tomar a pessoa pela doença e sim queremos destacar que a saúde e a doença devem ser compreendidas como processo, pois estão vinculadas a situações singulares e complexas da existência humana, que, por sua vez, tem um caráter dinâmico, de poucas certezas. Isto nos remete a biografias, culturas, histórias, a sujeitos sociais concretos, com suas trajetórias e mundos subjetivos, que são muito mais do que sintomas, resultados obtidos em escalas padronizáveis, mais do que possa dar conta uma ou outra concepção teórica. (DALMOLIN,2006)

Consoante Basaglia, a psiquiatria colocou o sujeito entre parênteses para se ocupar de uma doença abstrata. Então, aceitamos a proposta deste autor de colocarmos a doença entre parênteses para nos ocuparmos das pessoas concretas em suas experiências, em seus sofrimentos. Sendo assim, não existe a doença mental enquanto fato da natureza, mas experiências de pessoas concretas em dor e sofrimento, tal como nos usuários anteriores (AMARANTE, GULJOR, 2010).