• Nenhum resultado encontrado

8 DELINEAMENTO METODOLÓGICO 8.1 Pesquisa qualitativa em saúde

8.5 Processamento e interpretação do material empírico

Todas as palavras tomadas literalmente são falsas. A verdade mora no silêncio que existe em volta das palavras. Prestar atenção ao que não foi dito, ler as entrelinhas. A atenção flutua: toca as palavras sem ser por elas enfeitiçada. Cuidado com a sedução da clareza! Cuidado com o engano do óbvio! Rubem Alves

As entrevistas foram transcritas integralmente pela pesquisadora e como já assinalado, as informações contidas no diário de campo e da análise dos prontuários também foram utilizadas na organização, no processamento e na interpretação do material discursivo.

Decorrida a fase de transcrições, realizamos uma leitura exaustiva do material com o intuito de nos impregnarmos do sentido das falas, a fim de identificarmos sentidos e significados emersos durante os encontros, organizados em categorias analíticas e empíricas que melhor expressam a articulação entre o que foi dito pelos sujeitos, os objetivos da pesquisa, o referencial teórico adotado e a interpretação do investigador na composição da rede interpretativa (MINAYO, 2012).

Comparamos tal etapa como um movimento em espiral, tendo ocorrido pari passu à realização das entrevistas, atentos ao fato de que a análise produzida pode refinar, reorientar as questões formuladas aos sujeitos participantes.

Trabalhar qualitativamente implica, necessariamente, por definição, em interpretar os sentidos e as significações que uma pessoa dá aos fenômenos em foco. (TURATO, 2003).

Portanto, não se trata aqui de apontar se os participantes atendem ou recebem atenção de modo integral e humanizado, (ainda que o estudo pretenda compreender como se revela a qualidade do cuidado) mas, sobretudo, compreender o modo como os mesmos interpretam essa maneira de cuidar a partir dos itinerários terapêuticos, operando numa dupla hermenêutica (BOURDIEU, 2004), ou seja, reinterpretando as interpretações desses sujeitos.

Destarte, o que as análises fazem é tornar visíveis os modos de interpretar, as maneiras de projetar significados no que está sendo dito e como os interlocutores se posicionam frente ao que está sendo dito, aos personagens que povoam seus enunciados e à alteridade com que se defrontam na interação (PEREIRA ET AL, 2009).

Nossas referências possuem um cunho hermenêutico32 filosófico, dentre outros

pressupostos, pois além de intentar privilegiar a historicidade do objeto e a reflexão vinculada à práxis, na “arte da compreensão” (GADAMER, 2006, p. 166) assumimos uma “fraca representatividade” segundo os parâmetros do zeitgeist33 da época. Na realidade, poderíamos

afirmar que temos uma “forte representatividade” a partir de outra perspectiva, diferenciada da pesquisa quantitativa. Uma representatividade que acentua a multivocalidade, ou seja, que revela a polissemia presente nos vários discursos sociais (BARTHES, 1992).

Tal abordagem nos norteia a uma postura interrogativa, que busca a compreensão do sentido daquilo que está sendo comunicado no texto, aqui entendido de forma ampla: biografia, narrativa, discurso, documento, livro, dentre outros. Sendo assim, trabalhamos a abordagem hermenêutica enquanto propulsora do exercício constante da interrogação diante dos nossos conceitos prévios ao entendimento daquilo que de fato diz o texto.

29 A palavra hermenêutica é derivada do termo grego hermeneutike e o primeiro homem a empregá-la como termo técnico foi o filósofo Platão. A palavra grega hermeneuein significa expressar, explicar, traduzir ou interpretar; hermeneia é, pois, interpretação.

33 C. G. Jung utilizou esse termo ao referir-se aos espíritos da época que atravessam a ciência, ou melhor, o fazer

científico, como uma cosmovisão coletiva, que “tem a desagradável qualidade de querer que o considerem o critério supremo de toda a verdade e tem a pretensão de ser o detentor único da racionalidade”. (JUNG, 1971, p. 287)

É dar-mo-nos conta dos próprios pressupostos, para que o texto possa apresentar-se em sua alteridade, podendo assim confrontar sua verdade com as nossas opiniões prévias pessoais (GADAMER, 2008) e uma ética que requer compreendermos que “o discurso é sempre discurso a respeito de algo (...) é a vinda à linguagem de um mundo” (RICOEUR, 1990, p. 46), ou seja, o texto traz consigo a historicidade e, nesse sentido, o tipo de mundo que é aberto pelo texto.

Temos ainda em vista uma compreensão dialógica da linguagem e esta traz consequências hermenêuticas, para a qual compreender/interpretar mediado pela linguagem é sempre participar de um diálogo, ou seja, entre sujeitos, aqui o pesquisador e os participantes do estudo; o sentido de um diálogo não está em posse de nenhum destes, mas foi sendo tecido à medida que transcorreu o diálogo, daí entendermos desse maneira a entrevista não – estruturada, pois ao responder de modo próprio ao convite a falar feito pelo pesquisador, a fala do sujeito participante fez outros convites à fala posterior, outras perguntas a partir de um determinado aspecto valorizado.

Assim, o sentido das perguntas lançadas dependeu das respostas dadas pelo usuário ou familiar, configurando-se pois como uma dialética de pergunta e resposta e não um encadeamento de perguntas e respostas, como na entrevista estruturada.

A exigência da realização de entrevistas para a produção de evidências parte da aceitação do pressuposto hermenêutico de que se há diálogo entre os pesquisadores e participantes da pesquisa é porque concordamos em não ter uma compreensão conclusiva e o diálogo durará enquanto e porquanto houver um nível de entendimento sobre algo que se possa e se deseje alcançar.

Essa necessidade do outro para a realização do diálogo é que baliza a busca da verdade na hermenêutica. Não temos a verdade, estamos na verdade ao fazer surgir o autêntico eu e autêntico outro ao nos apropriarmos da singularidade da situação de cada um de nós ante um horizonte comum.

Nosso compartilhamento linguístico em seus diversos níveis criam nossas experiências de comunidade, estendem nossa realidade de modo potencialmente infinito. Nossa comunicação, socialização ocorre mediante ao rompimento e expansão das barreiras, à fusão de horizontes, condição sine qua non para o conhecimento hermenêutico.

Portanto, conversar/entrevistar é elevar a um patamar mais rico o conhecimento mútuo dos falantes e a compreensão do tema sobre o qual interagimos. Assim, quanto mais ocorre a fusão de horizontes, percebemo-nos em contato com o outro e entendendo-nos sobre algo, mais próximos estamos da verdade desse encontro. (AYRES, 2008)