• Nenhum resultado encontrado

Os avatares da “cultura popular”: sobre festas, santos, mestres populares

e a conveniência da “cultura tradicional”

Práticas culturais de longa duração

No mês de junho de 2010, na cidade de Jacareí, aconteceram uma feira e um concurso para escolher o ―melhor bolinho caipira do Vale do Paraíba‖108. Tratava-se de uma atividade inserida numa estratégia para tentar registrar o bolinho caipira como um patrimônio cultural da cidade de Jacareí, uma das cidades do Vale do Paraíba que disputa para saber qual delas faz o ―melhor‖ quitute109. Essas disputas se encaixam perfeitamente na nova configuração das trocas simbólicas do mercado de bens tradicionais. Os organizadores desses circuitos de trocas chamam-nos de patrimônio imaterial. Porém, trata-se da apropriação e ressemantização de práticas populares de origem tradicional. Com relação ao bolinho caipira, chama-nos a atenção, não a ação de se buscar esse reconhecimento protocolar oficial de patrimônio nacional ou regional, mas o fato de sua permanência e difusão no cardápio regional. Uma boa questão é tentar explicar a longa duração de pratos ―típicos‖, valores e práticas religiosas e lúdicas consideradas como coloniais – isto é, tradicionais – entre os agentes e atores culturais do Vale do Paraíba. É sobre isso que gostaríamos de falar no início deste capítulo, enfocando os chamados grupos folclóricos, especificamente o moçambique e a congada.

Como vimos, a decadência econômica de todo o Vale do Paraíba, mas sobretudo das cidades que se encontravam fora dos traçados da ferrovia e da rodovia que cortavam a região, criou aquela situação sintetizada e imortalizada por Monteiro Lobato: ―as cidades

108 O concurso de bolinho caipira aconteceu em Jacareí (SP) em 25 de junho de 2010 (LEITE, 2010).

109 As três versões do bolinho mais conhecidas no Vale do Paraíba são a de peixe, a de carne de porco e a de

linguiça; além do recheio, varia também o tipo de farinha de milho utilizada: a amarela e a branca. A programação anunciava que: ―Serão três categorias: 'melhor bolinho tradicional' – que deverá ser feito com farinha de milho branca e linguiça –, 'melhor receita original' – na qual a escolha do tipo de recheio e a massa serão livres –, e 'melhor acompanhamento de bolinho' – no qual os bares deverão propor uma combinação do quitute com algum tipo de molho, antepasto ou bebida. Haverá votação popular e júri técnico e serão divulgados até o dia 17 de agosto.‖ O interessante neste trecho são os usos das palavras tradicional e original, pelo fato de que os organizadores já definiram a priori qual é o ―mais tradicional‖, como afirma a reportagem em outro trecho (LEITE, 2010).

mortas‖ não são, foram. Aquela economia ―inexpressiva‖, a partir do início do século XX, pode ter contribuído para a preservação de algumas características socioespaciais e culturais e modificado outras, evidentemente. O ―desinteresse‖ econômico pela região, no caso a microrregião do Alto Paraíba do Sul e o chamado Vale histórico, onde se localizam os municípios retratados por Lobato, permitiu, aos que nela permaneceram, levarem a vida a seu termo, com uma temporalidade própria (aos olhos do escritor, praticamente congelados).

O outro fator, aliás, que pode justificar essa permanência de práticas da cultura popular tradicional na região é, justamente, a referida longa história de sua ocupação europeia, aliada à marcante presença de símbolos ―indígenas‖ e ―africanos‖ na linguagem, nas práticas cotidianas, nos mitos, nos valores e nas festas religiosas e profanas. Mas talvez essa, que foi nossa primeira hipótese de trabalho, seja a mais ingênua. Não basta a longa duração da vida regional anterior à industrialização para justificar as permanências culturais atuais. Se isto fosse suficiente, deveríamos observar o mesmo fato em outras regiões de antiga ocupação europeia no país. Mas nem sempre isso acontece. Além disto, como encaixar a existência de grupos de cultura popular em áreas de ocupação europeia bem mais recentes do que a valeparaibana?

O atual mestre do moçambique do bairro do Belém, de Taubaté, lembra que na década de 1970, quando foi de São Luís do Paraitinga para Taubaté, participava (com toda a família) de uma congada da cidade de Mogi das Cruzes (SP), região metropolitana de São Paulo. Trata-se de uma importante companhia (fundada por um migrante luisense) que reuniu durante a década de 1970 muitos dos, hoje, principais mestres luisenses que migraram do bairro rural do Rio Abaixo (Raizeiro) para cidades da grande São Paulo e do Vale do Paraíba e que hoje constituem-se em símbolos da religiosidade popular da Festa do Divino em São Luís do Paraitinga.

Aliás, as redes migratórias são outro fator importante para ajudar a entender essa ―permanência‖ das congadas e moçambiques. Os locais onde se constituíram grupos de migrantes de São Luís do Paraitinga e Cunha quase sempre assistiram à formação de congadas ou moçambiques. As principais regiões de destino destas populações rurais, expulsas do campo pela decadência das atividades monocultoras de café, foram exatamente a grande São Paulo e os maiores centros urbanos do Vale do Paraíba – Taubaté, São José dos Campos, Pindamonhangaba, Guaratinguetá e Lorena – não por acaso, municípios cortados pela ferrovia e rodovia que ligam São Paulo ao Rio de Janeiro. No caso de São Luís do

Paraitinga, quase todos os grupos, senão a sua totalidade, originam-se num único bairro rural (bairro do Raizeiro) e quase todos os primeiros mestres que recriaram seus grupos nestas outras cidades pertencem a uma ou duas famílias negras daquele bairro. Como vimos, Araújo (1964) sustenta que o local original de difusão do moçambique valeparaibano foi a cidade de São Luís do Paraitinga.

Resta explicar porque o Vale possui mais destes grupos do que a cidade de São Paulo. Algumas hipóteses podem ser lançadas: um maior contingente de migrantes se deslocou o mais próximo possível da cidade de origem; as condições de trabalho e sobrevivência nas cidades do interior seriam mais propicias à manutenção das atividades de um grupo devocional – uma vez que é necessário um investimento grande de tempo para a condução destas práticas, ao menos em certas épocas do ano, o que, sem dúvida, as formas de trabalho agrícola tradicional favoreciam. São hipóteses sociodemográficas a serem testadas, mas fogem aos propósitos deste trabalho.

A dimensão e a importância do campo religioso no Vale do Paraíba é outro fator. Nesse aspecto, cabe destacar que mesmo nas práticas católicas mais ortodoxas e nos valores morais dos católicos urbanos da região destaca-se certa permanência de ―formas coloniais‖. E isso não é diferente em relação à religiosidade popular tradicional, sobretudo na contemporaneidade das festas religiosas e nas práticas de devoção aos santos populares. O destaque aqui fica por conta das festas de São Benedito e do Divino Espírito Santo. Ambas guardam uma peculiaridade: são festas que não tem um calendário fixo difundido universalmente, nem mesmo se consideramos apenas o Vale do Paraíba. A festa de São Benedito, por exemplo, geralmente ocorre na segunda-feira após a Páscoa. Esse é o caso na maior parte dos municípios, inclusive o da maior festa ao santo negro, na cidade de Aparecida. Mas, na cidade vizinha, Guaratinguetá, que também recriou uma ―espetacular‖ festa de São Benedito, ela acontece na segunda-feira da semana seguinte à da Páscoa (a despeito das narrativas dos realizadores, aqui a concorrência explica a diferença de datas). Porém, a festa também acontece no dia 25 de abril em São José dos Campos e em algumas cidades da região pode-se observá-la acontecendo no segundo semestre, sobretudo em outubro.

A Festa do Divino, que oficialmente é Festa de Pentecostes, ocorre quarenta e nove dias após a Páscoa. Esse é o caso de São Luís do Paraitinga. Mas em Cunha e Lagoinha ocorre no início de julho. E algumas outras cidades a comemoram em agosto (segundo o

calendário agrícola). Não por acaso também, estas duas festas são eventos-chave para os grupos de congada e moçambique, aliás, grupos sempre constituídos em homenagem a São Benedito, e no Vale do Paraíba do Sul, também quase sempre, a Nossa Senhora Aparecida (santos de devoção predominantemente de negros)110. E aqui se registra uma prática tradicional significativa: São Benedito é essencial em qualquer cortejo devocional no Vale do Paraíba. Se for digna de consideração, a procissão deve ser encabeçada pelos devotos do santo negro. Seja pela irmandade de São Benedito, seja por um moçambique. Caso contrário é chuva na certa na hora da procissão, conforme reza a crença – e nem os sacerdotes ousam interferir nessa disposição de longa data. Assim, nas muitas festas de São Benedito que ocorrem no Vale do Paraíba, os grupos locais se dividem: ou permanecem nas procissões de suas cidades ou se encaminham para outras cidades. Nos últimos anos, a presença dos moçambiqueiros tem sido bem mais tolerada pelos padres na procissão de São Benedito, mas essa relação entre os especialistas legítimos e populares é sempre tensa.

Em todas as datas em que há um cortejo religioso pelas ruas em homenagem a algum santo, São Benedito deve vir à frente. Na festa do Divino, os moçambiqueiros também estão presentes à frente da procissão das bandeiras do Divino. Não resta dúvida de que esta demanda rotineira contribui para a manutenção destes grupos. Mas há outra necessidade fundamental: o pagamento de promessas, por parte de devotos populares, requer também o trabalho especializado destes grupos, embora em menor grau do que há alguns anos. Cumpre- se promessa dançando moçambique por alguns minutos ou segurando o estandarte de São Benedito durante a apresentação dos moçambiqueiros. Atualmente, há outra demanda ainda: as estratégias das secretarias de Turismo e Cultura das cidades da região têm oferecido frequentes oportunidades para a expressão destes grupos. Essas demandas antigas e novas contribuem, de alguma forma, para que os grupos se sintam reconhecidos. Some-se a estas solicitações aquelas que podemos definir como externas, constituídas pelos festivais de folclore ou de cultura popular no estado e no país. Entretanto, essas demandas contínuas e extensivas não se apresentam como uma situação sine qua non para o revigoramento destes grupos, como nos adverte o caso da congada de Ilhabela. A congada insular se apresenta uma única vez ao ano quando seus integrantes – que moram espalhados por várias cidades do litoral paulista ou do Vale do Paraíba – se reúnem nas ruas do centro histórico da bela ilha, no dia 13 de maio para celebrar... São Benedito!

110 Em Minas Gerais, entre os congadeiros, predomina, ao lado de São Benedito, a devoção a Santa Ifigênia e a

Além desses, acreditamos que há mais um fator importante, esse no campo político. O Vale do Paraíba, como sua religiosidade ajuda a evidenciar, é palco de uma prática política e valores fortemente conservadores. Segundo Vieira (2008), nesta cidade, política é sinônimo de eleição. O autor afirma também que a centralidade das decisões políticas continua nas mãos do prefeito, mandatário da prefeitura, o mais importante espaço de poder do município. Assim, as relações pessoais de amizade e compadrio permeiam toda a dinâmica política: ―Quando se tem no prefeito um ‗bom amigo‘, estão garantidas obras e serviços solicitados, caracterizando, uma relação clientelista e paternalista.‖ (VIEIRA, 2008, p. 124). Vieira associa essa permanência a ―traços que ainda permanecem da cultura caipira como rituais de participação política a sua relação com o lazer, as festas religiosas, a comida, principalmente o ‗fogado‘, e outras formas de convivência comunitária [...].‖ (VIEIRA, 2008, p. 126). Para João Santos (2008, p. 139) a cidade de São Luís se caracteriza por uma mentalidade política ―avessa às transformações muito abruptas‖, o que facilitaria a presença de práticas assistencialistas na administração municipal. Além disso, outra marca na vida social da cidade seria o forte controle do clero católico no dia-a-dia das pessoas. Associado a esses aspectos, a constituição de certo ―regionalismo‖ contribuiu para a preservação das suas práticas culturais tradicionais.

Renato Ortiz (1992), afirma que um recurso simbólico à perda de poder por parte das elites regionais é realizar um investimento no reconhecimento das práticas populares de sua região. Podemos desenvolver esta ideia baseados nas propostas de Pierre Bourdieu (2006). A conquista do poder político-econômico ocorre também com o auxílio de uma luta simbólica que se constitui basicamente na legitimação de práticas socioculturais, que são as práticas da classe (ou grupo) que detém o poder político-econômico. Ao mesmo tempo, esses que têm o reconhecimento para definir o que é legítimo e digno, também afirmam o que não é, e o fazem através de estigmatizações. Assim, a elite urbano-industrial irá se constituir como a elite política e econômica do país criando estigmas sobre as populações de outras regiões e das outras classes. Geralmente, os estigmas baseiam-se na oposição entre o erudito e o popular, o intelectual e o manual e entre o urbano e o rural; nas palavras de Bourdieu, entre o refinado e o rústico.

No Brasil, as ideias de Monteiro Lobato sobre Jeca Tatu foram parte dessa ação ativa e deliberada de estigmatização da população rural do Vale do Paraíba; região que, justamente durante a década de 1920, vê seu poder econômico e político ser destituído. O regionalismo, segundo Bourdieu (2006, p. 126-127), nada mais é do que uma estratégia para

enfrentar essa perda de poder por parte da oligarquia local (segundo Renato Ortiz, Gilberto Freyre é um autor paradigmático dessa ação, na década de 1930, em relação às oligarquias nordestinas). As oligarquias compensam a falta de poder no domínio nacional voltando-se para a lógica interna das disputas regionais.

Resta aos dominados nas relações de forças simbólicas sob essas configurações duas saídas: ou aceitam (de forma resignada ou provocante) a definição dominante da sua identidade (heterodeterminada), ou buscam a assimilação, que é um trabalho que faz desaparecer aqueles sinais que lembram o estigma. É, portanto, o estigma (no caso do Vale do Paraíba, o caipira Jeca Tatu) que dá à revolta regionalista os seus princípios de unificação do grupo e os pontos de apoio objetivos da ação de mobilização. Uma saída honrosa para essa aceitação da identidade imposta pelo outro seria, ao invés de suprimir as características estigmatizadas, destruir a escala de valores que as constitui como estigma – tarefa, no entanto, que não caberia a um grupo ou ―região‖ isoladamente.

A constituição do regionalismo é uma explicação bastante interessante para a permanência. Afinal, ela situa a cultura regional (popular) dentro do campo de força das relações de poder e dominação simbólicas. A objeção a se fazer é o fato de que ela não revela, na realidade, o que é o fenômeno que chamamos cultura (e, por extensão, de cultura popular). Esse modelo argumentativo teria correspondência concreta com a realidade somente se aquilo que estamos chamando de cultura popular fosse algo coeso e unificado. Ao contrário, o desafio que a noção de cultura popular nos coloca é a ideia de não oposição entre (1) a aceitação crítica da diferença e (2) a assimilação. Ou, em outros termos, o desafio posto à divisão binária resistência vs. conformismo/assimilação popular.

Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que não existe uma ―cultura popular‖ íntegra, autêntica e autônoma. Se não se destaca isto, corre-se o risco de saltar entre a alternativa da autonomia pura ou o total encapsulamento (que a ideia anterior poderia sugerir). Como lembra Stuart Hall (1997, 2003), o campo cultural é um campo em que se trava uma luta constante e complexa entre a resistência e a aceitação, a recusa e a capitulação. Nesse campo de batalhas não se obtêm vitórias definitivas, mas posições que são conquistadas e perdidas. De novo, as formas culturais não são algo inteiro e coerente; ao contrário, são profundamente contraditórias, jogam com as contradições, especialmente no universo do ―popular‖. O sentido estruturador do ―popular‖ são as tensões e oposições entre aquilo que é próprio do lugar dominante da elite e aquilo que é da ―periferia‖ – do não-lugar do dominado.

Enfim, o que define a ―cultura popular‖ são as relações que a colocam em uma tensão contínua com a cultura dominante (tanto na sua forma erudita, quanto na sua forma massiva – proveniente da indústria cultural).

Um episódio que merece ser ressaltado é o da publicação do livro de um cordelista de São Luís com verba da Secretaria estadual da Cultura (Proac). Poderíamos usar esse exemplo para denunciar as formas de reificação e fortalecimento do estigma do caipira e do artista popular por parte do establishment ou da hegemonia (cf. WILLIAMS, 1979). Isso porque, para ser merecedor do prêmio, foi sugerido ao poeta popular que reescrevesse seus cordéis na ―linguagem caipira‖. Entretanto, esse mesmo ator participou de um evento realizado na Avenida Paulista no mês de maio de 2010, proporcionado pelo presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Este último decidiu oferecer um espaço na Fiesp para que artistas do município de São Luís do Paraitinga se apresentassem e, dessa forma, chamassem a atenção para a tragédia que ocorreu na passagem do ano 2009/2010 naquela cidade. Num intervalo de uma das performances de literatura de cordel e contação de histórias do ator em pauta, um executivo ―engravatado‖ (como o cordelista fez questão de destacar) aproximou-se dele e fez um depoimento emocionado agradecendo-lhe por ter ―lavado a sua alma‖, ao afirmar que ―o caipira não fala errado, mas sim, diferente!‖ O indivíduo relatou que havia passado trinta anos na capital tendo que ―aguentar essa humilhação‖ de, sendo diferente, ser classificado como ―errado‖ (para ficarmos com um eufemismo). Ou seja, não é tão simples a definição dos efeitos da hegemonia nesse caso da violência simbólica de um burocrata do Estado ―burguês‖ determinando a reificação de um estigma social. Como afirmou Williams (1979), a hegemonia não é propriamente possuída por uma classe ou grupo; ela é constituída processualmente pelas relações sociais e necessita estar ininterruptamente sendo recriada e se defendendo dos ataques que tentam alterar suas correlações de forças. Mesmo sem ter tal intenção, o trabalho do poeta popular, cujo conteúdo foi negociado no quadro das representações sociais estruturadas e estruturantes das hierarquias regionais e sociopolíticas no interior do território paulista, poderia ser – em tese e potencialmente, já que falamos de uma edição limitada – utilizado enquanto instrumento de uma hegemonia alternativa.

Esse cordelista de São Luís é escolarizado, tem ensino fundamental, é ávido leitor, extremamente ―antenado‖ com as coisas que acontecem no mundo todo e, portanto, em nossa opinião, suas estrofes deveriam ser publicadas na forma ―original‖, isto é, revisadas segundo a norma culta da língua portuguesa. Porém, da forma como o cordel será distribuído poderá ter

vários usos, inclusive o de ―vingança‖ contra os poderes simbólicos estabelecidos pela hegemonia. O que queremos dizer é que o produto patrocinado pelo Estado pode não ser puramente manipulador como podemos supor. Isso porque, junto com o falso apelo, a redução de perspectiva e a trivialização do estigma, há também elementos de reconhecimento e identificação, expressões de experiências e atitudes reconhecíveis às quais as pessoas respondem (HALL, 2006). O consumo desse produto cultural não pode ser definido aprioristicamente. Ele será estabelecido pela forma como o livro será apropriado no interior da dinâmica cultural do qual passa a fazer parte.

Esse é o ponto que julgamos significativo no estudo sobre a contemporânea conveniência da chamada cultura popular: não considerar estritamente reificados os produtos da cultura ou das culturas populares, como, por exemplo, as festas. Porque esses produtos são dinâmicos; eles estão em constante movimento. Eles mudam de uma época para outra, de um lugar para outro. São conveniente e diversamente usados para propósitos considerados legítimos por parte de seus protagonistas e consumidores. Portanto, deveríamos atentar melhor para os processos e significados que envolvem a constituição da cultura popular, as invenções constantes das festas populares, enfim, a construção social do ―popular‖ ou do ―folclórico‖ – as relações entre o tradicional e o espetacular, entre o moderno e o passado. Os mestres que arrolamos anteriormente nos fazem lembrar que não há um conjunto de atores propriamente populares, mas sim, situações mais ou menos convenientes para que o ator participe de um acontecimento ou de uma prática ―popular tradicional‖ (CANCLINI, 2008).

Um dos momentos mais convenientes para a atividade da cultura popular tradicional no Vale do Paraíba é, sem dúvida, a festa do Divino Espírito Santo em São Luís do Paraitinga. É, por isso, um local e momento privilegiados para acompanharmos a ação dos mestres populares. Como vimos, essa festa popular ganhou contornos ainda mais significativos após a enchente que destruiu a cidade na passagem dos anos 2009 e 2010. Procuramos, a seguir, retomando nossos dados sobre a festa do Divino do ano de 2010,