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Divino: a pluralidade faz a festa A experiência da perda e a retórica da cenografia

O início de 2010 foi sui generis para o município de São Luís do Paraitinga. Com as chuvas típicas de verão, que nos últimos três meses haviam sido mais vigorosas, ultrapassando as médias históricas para o período, e que foram potencializadas na última semana de dezembro do ano anterior, o rio Paraitinga, que corta o município passando pelo coração do seu histórico centro urbano, não conseguiu escoar a tromba d'água que atingiu a região da Serra da Bocaina no dia 30 de dezembro, e a região da Serra do Mar, no dia 31 do mesmo mês. A enchente, que é parte integrante do cotidiano da cidade no período de chuvas na região (novembro a março), superou todas as expectativas atingindo a altura de doze metros. Habituada às cheias moderadas do Paraitinga nos verões anteriores – e incrédula –, boa parte da população local imaginou que a água não subiria além dos cinco metros, uma estimativa, até então, exagerada. A fundação da cidade na planície sedimentar formada pelo aluviamento flúvio-lacustre45, somada ao manejo inadequado das terras às margens do Rio Paraitinga (desmatamento, formação de pasto e, atualmente, monocultura de eucalipto) e à saturação pluviométrica do solo naquele período, causou um alagamento que provocou a destruição de vários edifícios seculares construídos em taipa-de-pilão e pau-a-pique e tombados pelos órgãos de preservação do estado e da união. Muitos imóveis não resistiram à cheia de quase doze metros de altura e à força da correnteza do rio (COMO..., 2010). Até mesmo a igreja católica matriz, imponente monumento, símbolo da dinâmica sociocultural e histórica da cidade, não suportou a força das águas.

Dez dias depois da catástrofe, tivemos a oportunidade de observar a Praça da Matriz (Praça Oswaldo Cruz). O cenário era chocante. Nossa impressão era que a praça e seu

45 ―[...] Periodicamente, no período chuvoso anual, as águas do rio Paraitinga, não tendo a vasão [sic] necessária

em virtude do represamento pela soleira, extravasavam, inundando áreas relativamente grandes nas partes baixas, no sopé dos flancos dos morros do anfiteatro alveolar e depositando, quer por ocasião das cheias, quer quando do escoamento das águas, apreciável quantidade de sedimentos. Originou-se, assim, uma planície sedimentar, cujas proporções, entretanto, não são muito grandes. Em tal planície, mais tarde, o rio aprofundou um pouco seu leito, após ter descrito meandros que foram divagantes, em virtude de uma retomada dc erosão que continua em processo na atualidade. O resultado foi que o nível da planície se alteou um pouco em relação ao do leito do rio, de modo a não ficar mais sujeito às inundações com a mesma freqüência anterior. Daí formar-se um patamar parcialmente abrigado das inundações – hoje inteiramente verdadeiro baixo terraço fluvial em processo de definição. [...]‖ (PETRONE, 1959, p. 310).

entorno haviam sido bombardeados. As paredes de barro esfareladas sob os escombros dos telhados dos casarões imperiais, o fedor, a sujeira – paralelamente à publicização da vida privada dos moradores, surgida em função de objetos pessoais, mobiliário e roupas que estavam espalhados por todos os cantos, e sobretudo o esfacelamento das casas e do semblante de seus donos compunham um verdadeiro cenário de guerra. Os comerciantes e moradores da parte baixa do centro urbano do município perderam tudo, à exceção de suas vidas – surpreendentemente em razão da gravidade da tragédia. As pessoas que vimos ou com quem falamos46 encontravam-se desoladas, desesperadas por terem perdido tudo e sem certeza alguma sobre o próprio futuro, nem sobre o futuro da cidade. Não obstante a incerteza do porvir, em todos os discursos havia a convicção da reconstrução da cidade. Mesmo sem saber, naquele momento, o como fazer, todos diziam: ―mas nós vamos reconstruir‖ ou ―vamos reconstruir uma cidade melhor ainda‖ (numa atualização do mito de fênix).

A dor da perda de suas casas, dos seus objetos pessoais e das referências concretas de suas lembranças era indescritível. No entanto, nenhum morador com quem falamos sentiu mais a perda de sua própria casa do que a ausência do prédio da igreja católica matriz. Como em praticamente todas as cidades interioranas paulistas, parte significativa da vida social, dos ritos e ritmos dos habitantes de São Luís do Paraitinga ainda gira em torno da igreja católica. Ouvimos depoimentos contundentes e doloridos sobre as perdas privadas. Contudo, invariavelmente, o pesar maior recaía sobre o desmoronamento da igreja central e da igreja de Nossa Senhora das Mercês (construída ainda no século XVIII). O símbolo do sentimento de perda e de desorganização psíquico-social momentânea do município foi a destruição desses templos.

A impressão que tivemos, ao vermos aquelas imagens da cidade destruída e ao ouvirmos aquelas pessoas, sugeriu a metáfora do apagamento da memória e da identidade. Foi difícil afastar o pensamento da ideia de que ali, naquela cidade, as referências privadas (a ―consciência individual‖) estavam fortemente vinculadas às referências comunitárias, públicas (a ―consciência coletiva‖). Mesmo aqueles que não eram católicos ou católicos praticantes sofreram com a ausência da igreja que ocupava o centro espacial e simbólico e marcava as sociabilidades locais. Assim, as senhoras de mais idade se referiram às missas de domingo e os mais afastados da prática católica (e mais novos) se referiram ao relógio da igreja, que marcava o ritmo do centro urbano. Pessoas dos dois grupos e outras também se lembraram

dos toques do sino que há mais de cento e cinquenta anos soava na cidade (sobretudo às 6 horas, ao meio-dia e às 18 horas). Numa tentativa de contornar e amenizar a perda de espaço tão significativo para o município, a prefeitura armou uma estrutura metálica, coberta por uma lona, para abrigar os eventos coletivos que antes ocorriam no interior da igreja. As celebrações e reuniões comunitárias (religiosas e civis) passaram a ocorrer, assim, na Praça Oswaldo Cruz (Praça da Matriz) em frente aos escombros da igreja.

Durante nossa visita, protagonizamos um episódio revelador da dramaticidade vivenciada pelos moradores da cidade. Sentimo-nos bastante incomodados pela presença de alguns fotógrafos amadores que apontavam suas lentes indiscriminadamente para faces sofridas ali onde estávamos. Apesar de portarmos uma câmera, não encontramos motivação para fazer fotos de uma tragédia alheia. No entanto, resolvemos fazer algumas fotos da casa do amigo que nos acompanhava. Na verdade, a casa era de sua mãe e nós não havíamos percebido que ela estava sentada na calçada do outro lado da rua. Ela também não nos reconheceu de imediato, mas começou a chamar a nossa atenção e fazer gestos com as mãos querendo dizer que iria cobrar ou que deveríamos pagar para fazer fotos de sua casa destruída, confirmando exatamente o nosso temor quanto à exploração da desgraça alheia. Só quando nos aproximamos dela para falar que fazíamos fotos da casa de um amigo (que, aliás, era seu filho e estava nos arredores, ocupado em entrevistas para jornais da capital) é que a reconhecemos. Para nós, esse episódio confirmou o questionamento sobre a relação dos moradores da cidade com os consumidores do turismo cultural, ávidos pelo consumo do patrimônio histórico, da cultura popular, mas também, por extensão, da intimidade de muitos moradores da cidade. Atitude semelhante à dessa senhora repetir-se-ia de modo inusitado, ao final do último domingo da festa do Divino de 2010, por ocasião do desabafo de um morador local quanto à presença, em suas palavras, ―predadora‖ dos ―hipócritas‖ e ―cosmopolitas‖ de São José dos Campos e São Paulo, que usavam a cidade para se divertir e depois iam embora47. O trágico episódio da enchente de 2010 em São Luís do Paraitinga confirmou de forma enfática dois fatos fundamentais: (1) a importância da religiosidade católica para a dinâmica sociocultural da cidade, representada, naquele momento, pela lamentação da destruição do símbolo maior e mais concreto desta religião e deste estilo de vida; e (2) as

47 O rapaz parecia estar em estado de embriaguez. No entanto, supomos que ele expressava, talvez desinibido

pela condição etílica, um sentimento não muito raro na cidade, sobretudo entre os que sobrevivem por meio de atividades que não têm relação direta com o turismo. Experiência, entre outras, que denuncia a clara distinção, no município, entre nós e os outros; uma das distinções que a modernização, por princípio desvanece.

transformações no cotidiano dos atores comuns diante do ―enobrecimento‖ do patrimônio histórico e cultural, valorizando-os no mercado de bens turísticos (SANTOS, C., 2006)48.

Ficou claro desde o início – isto é, desde o começo da reconstrução –, na atuação dos moradores da cidade, para além até da ação das diferentes esferas e níveis do poder público, que o principal motivador para reerguer a cidade e as vidas de seus moradores passaria, necessariamente, pela produção cultural dos artistas locais e pela (re)invenção coletiva das celebrações ―tradicionais‖. Celebrar a memória e a identidade local, através de cantos, ritmos, danças e rituais próprios, pareceu-nos uma estratégia ―adotada‖, talvez fosse melhor dizer ―assumida‖, pela população (dentro do campo de possibilidades de estruturação pessoal para reerguer coletivamente uma cidade). Assim, por exemplo, apesar do cancelamento oficial das festividades do Carnaval de 2010 por parte da prefeitura, já em fevereiro, alguns foliões carnavalescos e pouquíssimos turistas (na verdade, pessoas com segunda residência na cidade) saíram às ruas, desfilando e não permitindo que passasse em branco, naquele trágico ano, o consolidado e famoso carnaval de marchinhas da cidade.

Depois, seguiram-se outros eventos e celebrações, com versões bem diferentes das dos anos anteriores, seja pela rarefeita presença do turismo, seja pelo aporte de recursos de agências públicas de outros níveis de governo, contrariando, inclusive, a lógica de (falta de) investimentos anteriores na cidade. Presenciamos, no ano de 2010, antes da Festa do Divino que ocorreu no mês de maio, as comemorações da Semana Santa e de São Benedito (abril). A festa de São Benedito, por exemplo, foi presenciada somente por pequeníssimo público da cidade – à exceção de nossa presença, de uma auxiliar de pesquisa e de um cantor sertanejo da cidade de Taubaté, contratado para fazer um show no pátio da igreja, não havia pessoas de fora da cidade. Mas, de fato, o que a população estava aguardando como o grande símbolo de renascimento da cidade era a Festa do Divino. E inúmeros esforços foram feitos para emprestar este significado às festividades do Divino Espírito Santo na cidade no ano de 2010. Para mitigar a tragédia que atingiu a todos, somente uma prática onipresente no município seria capaz de reavivar a memória e reestruturar os ânimos.

48 Uma interessante discussão a respeito da visão de moradores sobre a transformação de seu lugar de moradia

em destino turístico encontra-se em Freire-Medeiros (2010). Trabalhando com a opinião e representação dos habitantes da favela da Rocinha na cidade do Rio de Janeiro, a autora conclui que entre a reprovação incondicional e a aprovação irrestrita do turismo pelos moradores existe um conjunto de situações intermediárias e nuançadas que revela a complexa dinâmica de aproximação e afastamento entre diferentes atores sociais e suas identidades construídas por meio dessa nova realidade.

Cabe ressaltar que, mesmo antes da recente tragédia, a Festa do Divino era a principal festa religiosa do município, funcionando como o ápice, a síntese e a conclusão do ciclo festivo devocional da cidade (LOPES, 2006; SANTOS, J., 2008; TOLEDO, 2001; WILLIEMS, 1947). Na verdade, isso integra a explicação sobre a expectativa quanto à edição da festa do Divino de 201049. A seguir, apresentamos um resumo dos principais eventos e práticas que constituem a festa do Divino em São Luís do Paraitinga. Este evento acabou se mostrando fundamental para embasar nossas reflexões sobre as práticas dos atores da cultura popular que focalizamos neste estudo e esperamos que, ao final, tenha ficado evidente o porquê.

O Divino em São Luís do Paraitinga

A Festa do Divino, de origem colonial e ocorrência nacional, outrora bastante disseminada e vigorosa, mantém-se atualmente como celebração destacada em algumas poucas cidades médias e pequenas localizadas na área de influência dos paulistas coloniais, denominada nos tempos remotos de Paulistânia e que abrange parte dos atuais estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, além de São Paulo (ARAÚJO, 1964; BRANDÃO, 1981; CAMPOS, 1997; MORAES, 2003; SANTOS, J., 2008). Esta festa também ocorre nos locais em que se formaram colônias de migrantes portugueses (sobretudo vindos do Açores), como por exemplo, no estado do Rio de Janeiro e Santa Catarina (FRADE, 2005). Como todas as festas populares semelhantes, ela possui uma pluralidade de maneiras de se realizar: diversas formas, conteúdos e temporalidades dão o tom vernacular à comemoração. A seguir, procuramos situar sinteticamente as características históricas e culturais gerais da festa do Divino no Brasil e em São Luís do Paraitinga, especificamente.

As origens desta comemoração são europeias e seguem três ciclos de difusão no Brasil. O primeiro, quinhentista, na costa do nordeste e de São Paulo. O segundo, no século XVII, com a imigração de açorianos, sobretudo, para o Maranhão, e no século XVIII, com a imigração de outra leva de açorianos, desta vez concentrada em Santa Catarina. E o terceiro,

49 Nós temos acompanhado o último final de semana, o principal, da festa do Divino em São Luís do Paraitinga

desde o ano de 2003; mas apenas em 2010 é que nos foi possível presenciar os dois finais de semana do evento. Como atividade de pesquisa integrante do projeto Os sistemas abstratos e a produção de

reflexividade na religiosidade contemporânea, coordenado por José Rogério Lopes, UNISINOS, São Leopoldo, (RS). Nós e outro pesquisador ficamos incumbidos de fazer os registros etnográficos do primeiro final de semana da festa de 2010. No segundo, o coordenador e mais um pesquisador se juntaram a nós. Não comparecemos à Festa do Divino de São Luís nos anos de 2002 e 2006.

que ocorreu até a primeira metade do século XX com a imigração de açorianos para o estado do Rio de Janeiro (FRADE, 2005, p. 27). Essa festa ocorre em Portugal provavelmente desde o século XIII e uma das possíveis origens está ligada à imagem da rainha D. Isabel (1271- 1336), ―a santa‖, de Portugal – esposa de D. Diniz (1267-1325). Uma versão da origem está ligada a um fato milagroso ocorrido com a rainha Isabel e que culminou com a distribuição de alimentos à população faminta de Portugal medieval, fato que ajuda a compreender a distribuição de alimentos durante a festa do Divino em muitos lugares do Brasil ainda hoje. Uma variação do mito dá conta da transladação da coroa do Império ao altar da igreja, do mesmo modo, ainda ritualizado em muitos locais, como na festa de São Luís do Paraitinga50.

No Brasil, há registros de sua realização desde o período colonial. É marcadamente caracterizada como festa dos brancos da elite, que, em cortejo, se apresentavam à população mais pobre (SOUZA, 2002). No sistema dual da sociedade brasileira da época (FERNANDES, 1991; IANNI, 1988) – transferido para tempos históricos recentes –, era reservado, em contraposição, um espaço e tempo para a celebração pública dos negros pobres. Estrutura que reproduzia e construía simbolicamente a rígida estrutura hierárquica da sociedade, celebrando alternativamente os deuses e os reinados de dominantes e dominados (ARAÚJO, 1964; DAMATTA, 1994). Apesar da importância dessa ―marca‖ dualista da estrutura social brasileira, com base na história da festa em São Luís do Paraitinga consideramos que sua reprodução no interior da manifestação que comemora o Divino precisa ser relativizada. Nesta cidade, essa ―marca‖ é historicamente atenuada ou eufemizada nas relações e circularidades entre a elite e a ―plebe‖ local – não obstante, a também intensiva e duradoura concentração de riquezas no município. Williems (1947, p. 164) comentando os aspectos da festa do Divino de Cunha na década de 1940, afirma que a redistribuição de bens propiciada pela festa ―contribue [sic] para atenuar os antagonismos entre as diversas classes que compõe a sociedade‖. É difícil imaginar a permanência e a profusão das práticas culturais tradicionais ―populares‖ no município de São Luís sem essa relação tensa e ambígua com as manifestações da elite. A dança de fitas da cidade, por exemplo, uma prática popular tradicional com crianças das escolas públicas, é conduzida há mais de quatro décadas por uma senhora da elite local. Desconhecemos a existência dessa atividade em algum bairro rural ou conduzida entre famílias de baixa renda.

50 A rainha Isabel, num ato desesperado e como último recurso para salvar o reino da fome, teria abdicado da

coroa e nomeado o Espírito Santo rei do Império português. Sua coroa é, então, levada em procissão até a Igreja e depositada no altar, simbolizando que o Espírito Santo, a partir daquele momento, reinava sobre Portugal (FESTA, s/d).

A elite do município e as classes populares podem até guardar uma característica comum de ―periferia‖ dos centros nacionais de poder econômico e político. Mas a elite circula muito mais frequente e duradouramente pelos circuitos cosmopolitas. Podemos pensar aqui desde os antigos coronéis oligarcas do fim do império e início da república, que foram políticos estaduais e federais (ALMEIDA, 1987), até o compositor Elpídio do Santos, luisense que em meados do século XX tinha amplo respaldo na, incipiente, mas vigorosa, indústria cultural paulista, compondo trilhas sonoras para o cinema, especialmente para os filmes de Amácio Mazzaroppi (SANTOS, J., 2008). Essa frequentação continuou ao longo do século XX. Na década de 1970, muitos jovens da elite luisense graduaram-se na cidade de São Paulo e formaram redes cosmopolitas e internacionais. Alguns, inclusive, moraram na Europa e voltaram, pois nunca deixaram a relação umbilical com a cidade. Foram os jovens dessa geração que criaram, no início dos anos 1980 o carnaval de marchinhas, motivados, entre outros fatores, pela provocação da indústria cultural (Jornal Nacional)51. Foram eles que muitas vezes acorreram com apoio logístico, político ou material a alguns grupos de congada e moçambique. Em seus discursos e em algumas práticas, há a clara opção pela ―manutenção‖ e valorização da ―cultura popular‖ da cidade. De fato, uma das características culturais da cidade é a grande quantidade de músicos profissionais e amadores (a maioria) entre seus habitantes. Muitos outros músicos e grupos musicais da cidade também dizem buscar inspiração nas práticas musicais populares da região. Os jovens da atual geração da elite da cidade seguem no mesmo caminho da geração de 1970. As considerações sobre as relações da classe média e os moradores dos morros cariocas, que acabaram favorecendo a ―domesticação‖ e difusão do samba do Rio de Janeiro (VIANNA, 2004), oferecem os caminhos para explicar essa relação para o caso da cidade de São Luís do Paraitinga.

Circularidades como esta, a história local, os atores e as conjunturas socioeconômicas produzem a heterogeneidade no conjunto de festas que denominamos de Divino Espírito Santo. Contudo, dentro dessa variação das festas do Divino que ocorrem no Brasil, é relativamente comum a presença da coroação de imperadores, de grupos devocionais populares, de missas, da Bandeira do Divino, da farta distribuição de alimentos e da quermesse. É heterogênea também a relação entre os organizadores dessas festas e as

51 O carnaval de marchinhas da cidade, que já chegou a atrair mais de trinta mil pessoas à cidade, no início dos

anos 2000, recomeçou em razão de uma reportagem da emissora de maior audiência nacional que, no começo dos anos 1980, fazia ironia com a cidade que há mais de cinquenta anos não comemorava carnaval por medo de pragas religiosas lançadas no início do século XX pelo então padre da cidade, o romanizador italiano Ignácio Gióia.

autoridades eclesiásticas e civis (hoje, quase sempre da área do turismo), definindo assim a sua maior ou menor autonomia. Esses fluxos de sentidos e de acomodações de interesses acabam gerando, com efeito, um variado número de festas dentro das festas, sobretudo entre aquelas que ainda ocorrem sob a influência do ―popular‖.

A festa do Divino Espírito Santo de São Luís do Paraitinga existe, pelo menos, desde o século XIX52, sendo considerada uma das mais tradicionais e importantes do ciclo festivo do Divino Espírito Santo do Estado de São Paulo e do Brasil. Trata-se de um grande evento que encerra o ciclo de festividades religiosas do município (LOPES, 2006, p. 202). Por ocasião da abertura do Império do Divino, e durante as duas semanas de festividades, reúnem- se na cidade vários grupos tradicionais de devoção popular da região e também da região metropolitana de São Paulo. Estes grupos de devoção dizem respeito às ―manifestações tradicionais populares‖, que os folcloristas brasileiros da segunda metade do século XX identificavam na categoria de ―folguedos folclóricos‖ (LIMA, 1962). No Divino de São Luís