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Mediação cultural e interpretes culturais nos grupos devocionais:

quando a crença vira cultura popular

Desde os primeiros contatos com os grupos de moçambique, a partir do ano 2003, chamou-nos a atenção a existência de grupos que estão atuando e desejam atuar em espaços ―secularizados‖ como os dos ―festivais‖ de cultura tradicional e de folclore. Logo foi possível perceber que não era simples e fácil classificá-los como grupos religiosos, ou mais precisamente como grupos devocionais. Essa manifestação refere-se a uma religiosidade que tem necessidade de ser exposta, uma religiosidade ―exibicionista‖, performática. Os mestres moçambiqueiros e seus companheiros, em nome de São Benedito, primam pela ―qualidade‖ da performance do seu grupo: esforçam-se para estar ritual e devidamente paramentados, espera-se que nenhum dançador de linha atravesse os passos, rigorosamente também executam os preceitos ritualísticos de uma apresentação quando estão na rua em cortejo: rito de início, de saudação, de despedida (é neste preceito ritual invariável que se evidencia o caráter sagrado com o qual o moçambique pode ser associado). Mas os ritos de religião mais evidentes ao observador desavisado ocorrem nos bastidores: é a oração com o pedido de proteção antes do início dos cortejos/apresentações e a oração de agradecimento após as mesmas. Estes momentos, nós demoramos a presenciar.

Quando elogiados, dizem que dançam bonito ―para o Santo‖. Mas também dançam bonito para os espectadores, os públicos das festas religiosas populares, hoje repletas de turistas. Ou seja, não estamos convivendo mais com as ―festas populares‖ no sentido tradicional do termo, que supunha a coincidência entre realizadores/produtores e público. Hoje não ―dançam‖ para os seus; dançam, se apresentam para turistas ou para consumidores locais da cultura popular tradicional que não se confundem econômica e culturalmente com os produtores desta cultura. O paradoxal nessa constatação, para nós, é que mestres e grupos não recebem para assim se apresentar, quando muito uma pequena ajuda de custo, sempre insuficiente para a demanda que a manutenção dos apetrechos exige.

Se o interesse econômico não é o que motiva as práticas dos agentes populares, qual seria o outro interesse? Seria o interesse religioso? Pode ser, e é possível que em muitos

casos ele dê conta de explicar as molas da ação do moçambiqueiro. Mas há indícios de que as coisas estão mudando. Como os depoimentos revelam, os mestres precisam oferecer mais ―razões‖ razoáveis para conquistar e manter discípulos-dançadores. Alguns depoimentos comentam que a devoção sozinha não é mais suficiente para atrair adeptos para a ―dança de São Benedito‖:

[...] A gente não tem um incentivo [financeiro na forma de ajuda de custo]. O meu incentivo hoje em dia... ‗Cê sabe que a gente faz por parte do santo, da devoção da gente, mas não é o suficiente para todo mundo. Eu queria que fosse só isso, pelo menos eu tava na minha fé... Eu não ensaio pra fazer bonito. Eu ensaio só em intenção de São Benedito e Nossa Senhora. O resto é consequência do trabalho da gente[...] (Entrevista mestre Fernando, , 22 maio 2010)172.

[...] Hoje pro mestre Guilherme poder manter o seu jovem participando, ele tem que falar a linguagem do jovem, mas não fazer o que ele faz. Ele sempre procura fazer um atrativo diferente, sempre que tem uma apresentação, ele fala assim: ―agora vocês já cumpriram a suas missões, agora vocês tem a liberdade e pode sair e pode passear, mas tal horário vocês voltam‖. Porque a gente não pode ser aquele tipo de mestre taxativo: ―você veio pra apresentar, você não pode fazer mais nada‖. Não pode. Se ele fizer isso a gente tá reduzindo a permanência desse jovem. Por isso que tem muitos grupos de Moçambique de que os jovens estão participando hoje e o mestre é muito taxativo, o mestre tem que ver que o tempo que ele aprendeu com o pai dele o mundo era diferente, agora do mestre pra frente é uma outra visão, ele tem que ver que ele não pode falar assim: ―não, eu aprendi assim e os jovens têm que aprender assim‖. Não. Ele tem que entender que o mundo é dos jovens, o mundo é diferente e se a gente souber falar a linguagem dos jovens e sempre colocar coisas atrativas que eles gostam, de se apresentar e depois ter o seu momento de liberdade, aí a gente vai ter sempre jovens participando junto com a gente. Agora se a gente for aquele mestre taxativo: ―eu sou assim, tem que ser assim‖. Pronto: começou a perder os jovens [...] (Entrevista mestre Guilherme, 19 abr. 2010).

Da mesma forma, muitas crianças da região hoje aprendem o moçambique num universo laico, a escola. Outro indício da mudança é que, cada vez mais, os espaços de apresentação destes grupos não são os espaços sacralizados da festa popular: estão presentes nos festivais de folclore, nos festivais de cultura tradicional, nos museus vivos, nas ONGs, muitas vezes distantes do seu lugar comunitário ou de peregrinação. Gostaríamos de começar

172 Os atores que participaram da pesquisa serão identificados por nomes fictícios, para cumprir exigência do

o exame sobre estas transformações analisando alguns aspectos da condição de mediadores culturais que os mestres populares de companhia de moçambique exercem.

Para tanto, adotamos uma perspectiva sócio-antropológica na qual foi necessário considerar as representações presentes na vida cotidiana dos atores sociais responsáveis pela produção e manutenção das chamadas culturas tradicionais da região do Vale do Paraíba do Sul, pois estamos considerando que a ―experiência vivida‖ é ―fundamental para o entendimento da eficácia da mobilização das vontades‖. Afinal, hoje sabemos que o campo de poder não pode mais ―ser pensado apenas a partir dos grandes marcos estruturais‖, como o Estado ou as classes (cf. MONTERO, 1993, p. 170).

A produção cultural e a atualização identitária apresentam questões que aparentemente estão separadas, mas que explicitam a contradição no processo histórico-social da constituição do campo de poder na sociedade. A consideração da formação histórica da região valeparaibana realizada anteriormente teve o objetivo de iluminar a análise das mediações entre os diferentes mundos e domínios de significado pelos quais transitam hoje os atores populares e de suas ações e lógicas para agir em diferentes mundos. Este entendimento sugere a relação entre dois eixos: a identidade cultural(AGIER, 2001; HALL, 2006, 2003)173 –, que se constitui pelo modo com que os indivíduos atribuem significado às suas realidades simbólicas e/ou concretas, pautadas por questões da vida cotidiana (HELLER, 2000) –, e as políticas de identidade (ALVES, C. 1997 e CIAMPA, 2002) – entendidas neste texto como as estratégias de grupos hegemônicos, tradicionais ou emergentes (WILLIAMS, 1979), e de instâncias públicas ou privadas na proposição de ações que acabam significando mediações no processo de formação identitária dos sujeitos. Os dois eixos supra referidos passam, nos pequenos municípios da região, por transformações que podem ser associadas a processos reflexivos de incorporação de códigos da cultura urbano-racional.

Os trabalhos de observação realizados nas festas populares da região do Vale do Paraíba nos últimos anos permitiram-nos presenciar algumas mudanças nos usos e motivações dos registros produzidos. Nesses locais, foram observadas práticas de registros de pesquisadores, fotógrafos, repórteres e populares (turistas e locais). Isto tem levado a pensar sobre um conjunto de intenções, formas de produção e de fruição desses registros das práticas

173 Apesar de suas especificidades, engloba-se com a noção de identidade cultural a noção de identidade étnica

(CUNHA, 1987), pois para o caso considerado reconhecem-se aproximações entre a formação do ―grupo cultural‖ e as ―etnias‖, no sentido clássico do termo (BARTH, 1998).

culturais tradicionais. Os novos usos apontam para a constituição de processos de reflexividade174 ligados a diferentes formas de circularidade e de diálogos entre os que registram e os que produzem essas expressões.

As práticas populares tradicionais têm se transformado frente à modernização social e econômica, tendo ganhado ampla atenção por parte das ciências sociais. Verificamos, por um lado, como as festas populares se transformam frente ao desenvolvimento da massificação do consumo de bens e serviços e, por outro lado, como os grupos urbanos encontram espaços de vivência no interior das metrópoles, onde é possível experimentar formas de enraizamento e pertencimento mimético às culturas populares tradicionais, diante da pretensa saturação da cultura de massas característica das grandes cidades (FARIAS, 2007, 2008; GARCIA, 2004; MIRA, 2006, 2009). Esses fenômenos, ligados às transformações sociais colocadas em funcionamento pela modernização ocidental, devido à própria tendência universalizante da indústria cultural e da economia global, acabam envolvendo a todos, mesmo aqueles dentre nós que estão nas pequenas cidades à margem das metrópoles globais. Nossa intenção foi a de observar estas transformações nos contextos mais periféricos dos circuitos de produção e consumo massivos, não obstante a eles relacionados e por eles afetados (LOPES, 1995, 2006, 2007a; 2007b). Podemos identificar na contemporaneidade a emergência de uma diversidade de formas e momentos de registros autoproduzidos sobre a experiência cotidiana, como o uso de gravadores na captação de áudios e o uso de câmeras, celulares e filmadoras digitais na captação audiovisual de práticas culturais, e a consequente propagação destes registros na Internet, nos meios de comunicação massivos ou mesmo em redes de sociabilidades de alcance mais restrito, como a parentela e a vizinhança.

174 A reflexividade aqui remete às discussões realizadas por Giddens (1991; 1997) onde é pensada como uma

das características da ―modernidade reflexiva‖. Para este autor, a reflexividade constitui-se na possibilidade de ações de um indivíduo poder repercutir nas ações e práticas dos outros sujeitos. Assim, por exemplo, a teoria social sobre a realidade altera essa mesma realidade, o que obriga a uma nova investida teórica para entender essa nova realidade. Procuramos adotar para o texto uma abordagem que leve em conta a dimensão histórica deste fenômeno. José de Sousa Martins, ao refletir sobre o visível e o invisível na religiosidade brasileira, sugere outra forma de entender esse processo. Para o autor, há uma transfiguração simbólica e imaginária nos casos de apropriação de equipamentos (e práticas) dos outros grupos sociais: ―Nela, a ordem social aparece invertida, revertida através de equipamentos de identificação que transladam os humilhados e ofendidos para o âmbito do sagrado, redimindo-os simbolicamente da humilhação de sua subalternidade. Não é casual, pois, que as mais significativas rebeliões populares na história brasileira tenham sido, e de certo modo continuem sendo, ao mesmo tempo, um mergulho dos pobres no sagrado, na sacralidade plena‖ (MARTINS, 2002, p. 227).

Mediações culturais: a batalha cultural dos mestres populares

Antes de prosseguir, cabe uma digressão sobre alguns conceitos-chave para a análise. Tomamos como referencial teórico sobre mediação as reflexões de Paula Montero (2006), a respeito da presença missionária entre os povos indígenas no Brasil, e de Raymond Williams (1979) no quadro da análise marxista da história literária. A consideração de alguns conceitos elaborados por Raymond Williams apresenta-se como importante para o equacionamento das demandas culturais impostas pelas exigências da sociedade atual. Os conceitos de mediação, cultura e hegemonia se articulam constituindo um modelo analítico que permite apreender a produção cultural para além de seus elementos adaptativos, extensivos e incorporadores. Para os nossos propósitos a sua noção de hegemonia com seu sentido ampliado que abarca os processos de dominação cultural, além dos processos políticos e econômicos é particularmente decisivo para a definição do que entendemos por mediação. No entanto, é necessário acompanhar o desenvolvimento de sua argumentação a favor do sentido amplo e processual de hegemonia (WILLIAMS, 1979).

Williams (1979, p. 98), no quadro do debate sobre o materialismo histórico, discute o conceito de cultura175 com referência à relação entre, de um lado, ―forças produtivas‖ e arte e, do outro, pensamento e consciência, questionando qual o processo de determinação mais coerente para explicar a relação entre estas categorias: ―reflexo‖ ou ―mediação‖? Segundo o autor, as metáforas ―reflexo‖ e ―mediação‖ pressupõem um determinado distanciamento entre as categorias do mundo real (processo social material) e o que se fala dele (linguagem), como duas realidades distintas e preexistentes. A adoção da ideia de mediação, contudo, presume que a distinção entre o processo social material e a linguagem não é direta, mas um processo simultaneamente constitutivo e constituído pelo processo social material. Williams sugere, assim, considerar ―a linguagem [que é a natureza de seu objeto de análise] e a significação como elementos indissolúveis do próprio processo social, envolvidos permanentemente na produção e reprodução‖ da realidade social. Mediação, nesse sentido, é

175 No contexto da obra de Williams, Cevasco (2001, p. 46) chama a atenção para o fato de que a palavra cultura

―traz nas suas extensões e ambiguidades a história de disputas em torno da fixação de seu sentido para cumprir determinada função social‖. Para Williams, a cultura engloba as concepções de ―um modo de luta‖, ―alta cultura‖ e ―cultura comum‖, além da noção clássica de cultura como um modo de vida. A cultura é resultado da experiência ordinária, também, caracterizada pela experiência pessoal – já está dada no nosso modo de vida – e pelas formulações tradicionais e hegemônicas (dominantes e alternativas) – neste sentido, a cultura é de todos (CEVASCO, 2001, p. 46-47). A cultura é de todos e está ―em todas as sociedades e em todos os modos de pensar‖ (WILLIAMS, apud CEVASCO, 2001, p. 49). Essa concepção de cultura é própria de quem tem, como Williams, um profundo senso de igualdade, que formula, segundo Cevasco (2001, p. 48), por exemplo, ―que a criatividade não é um processo excepcional, mas o produto de toda uma sociedade‖.

considerada, como um processo ativo e substancial de construção de significados e valores, mas ainda assim o conceito de mediação guarda o inconveniente de estar associado à ideia de ―intermediário‖176. Buscando superar alguns limites dessa distinção, o autor discute maneiras de reformular a ideia de reflexo e dar substância particular à ideia de mediação. Sugere, assim, duas possibilidades: o conceito de ―tipicalidade‖ e o de ―homologia‖ (WILLIAMS, 1979, p. 99-103).

Para realizar uma síntese do primeiro conceito, Williams (1979, p. 104-107) recupera em Aristóteles a noção de ―universais‖ – elementos permanentemente importantes da natureza e condição humanas – que, em Lukács, são pensados como permanentes, mas modificados por condições históricas específicas; são ―típicos‖ ou ―universais‖, num sentido mais secular. Por último, refere-se à Belinsky, Chernyshevsky e Dobrulyobov, nos quais o caráter típico é o caráter ou situação plenamente característico ou representativo – que ―condensa‖ uma realidade mais geral. As ideias do autor redefinem a noção de reflexo e superam suas limitações mais óbvias, evidenciando que ―a ‗realidade social‘ é um ‗processo dinâmico‘, e é esse movimento o que é refletido pela ‗tipificação‘‖ (WILLIAMS, 1979, p. 105).

Embora haja outras maneiras de entender a noção de ―tipo‖ (como ―emblema‖ ou ―símbolo‖, como exemplo representativo de uma classificação significativa – sentido que predominou no pensamento marxista), o autor enfatiza a variação desenvolvida por uma das fases da Escola de Frankfurt: em um polo, a noção de ―correspondência‖, elaborada por Walter Benjamin; em outro, as ―conexões‖, as ―imagens dialéticas‖ de Theodor Adorno. Teríamos, aqui, segundo o autor, modelos ―de constelações bastante objetivas nas quais a condição social se representa‖ (WILLIAMS, 1979, p. 106): ―As correspondências são semelhanças, em práticas que parecem muito diferentes, e que pela análise se pode ver que constituem expressões diretas, e relacionadas diretamente, com um processo social geral, da qual constituem também reações‖ (WILLIAMS, 1979, p. 107). Ao conceito de correspondência, Williams associa o conceito de ―homologia‖, desenvolvido nas ciências da vida, onde foi distinguido de analogia: ―A ‗homologia‘ é correspondência na origem e desenvolvimento, a ‗analogia‘ na aparência e função‖ (WILLIAMS, 1979, p. 108).

176 O problema relacionado ao conceito de ―reflexo‖ também é extensivo ao conceito de mediação: ainda se tem

um certo senso de áreas separadas e preexistentes, uma mediação entre duas categorias consideradas como distintas (como no marxismo, com as noções de estrutura e super-estrutura) (WILLIAMS, 1979, p. 102). Para a consideração dos vários sentidos de mediação (ver WILLIAMS, 2007).

Essa associação permite elaborar distinções correlatas dos termos estrutura e função: ―‗Correspondência‘ e ‗homologia‘ podem ser variantes sofisticadas de uma teoria do ‗reflexo‘, ou da ‗mediação‘, no seu sentido dualista [isto é, uma forma de processo ou

estrutura social geral]‖ (WILLIAMS, 1979, p. 108). Mas, à medida que essas noções trabalham identificando evidências significativas, outras evidências são negligenciadas, prevalecendo um processo de seletividade da evidência histórica e cultural: a análise histórica é substituída pela análise de época.

[...] Tanto ―correspondência‖ como ―homologia‖, em certos sentidos, podem ser modos de exploração e análise de um processo social apreendido, desde o início, como um complexo de atividades específicas, mas relacionadas. A seleção existe, evidentemente, mas como uma questão de princípio não há uma distinção a priori entre o necessário e o contingente, o ―social‖ e o ―cultural‖, a ―infra-estrutura‖ e a ―super-estrutura‖. Correspondência e homologia não são, portanto, relações formais, mas específicas: exemplos de verdadeiras relações sociais, em sua prática variável, que têm formas de origem comuns [...] (WILLIAMS, 1979, p. 108-109).

Como tais noções trabalham com história, estrutura e produtos conhecidos, suas variantes não podem ser plenamente levadas à análise da prática contemporânea. A superação dessa limitação pode ser alcançada por uma abordagem alternativa, orientada ao processo cultural e às relações práticas, com o conceito de ―hegemonia‖ (retomado de Gramsci). Tal conceito permite reconhecer o campo da ―complexa combinação de forças políticas, sociais e

culturais ativas, vividas na experiência social‖ (WILLIAMS, 1979, p. 109-111, grifo nosso). E enquanto complexa combinação de forças políticas, sociais e culturais de dominação social em épocas ―normais‖ (sem crises), esse conceito, segundo Williams, tem efeitos imediatos na teoria cultural:

[...] A ―hegemonia‖ é um conceito que inclui imediatamente, e ultrapassa, dois poderosos conceitos anteriores: o de ―cultura‖ como ―todo um processo social‖, no qual os homens definem e modelam todas as suas vidas, e o de ―ideologia‖, em qualquer de seus sentidos marxistas, no qual um sistema de significados e valores é a expressão ou projeção de um determinado interesse de classe (WILLIAMS, 1979, p. 111).

Como lembra Williams, só é possível afirmar que os homens definem e modelam suas vidas enquanto uma abstração. Nas sociedades concretas há desigualdades na capacidade de realizar esse processo. Nas sociedades complexas, esta heterogeneidade, como vimos no primeiro capítulo com Durham (2004), se concretiza pela desigualdade entre as classes

sociais. Para Williams, Gramsci teve o expressivo mérito de introduzir ―o reconhecimento necessário do domínio e subordinação naquilo que ainda deve ser reconhecido como todo um processo‖. (WILLIAMS, 1979, p. 11-112). A hegemonia seria assim,

[...] todo um conjunto de práticas e expectativas, sobre a totalidade da vida: nossos sentidos e distribuição de energia, nossa percepção de nós mesmos e nosso mundo. É um sistema vivido de significados e valores – constitutivo e constituidor – que, ao serem experimentados como práticas, parecem confirmar-se reciprocamente. Constitui assim um senso da realidade absoluta, porque experimentada, e além da qual é muito difícil para a maioria dos membros da sociedade movimentar-se, na maioria das áreas de sua vida. Em outras palavras, é no sentido mais forte uma ―cultura‖, mas uma cultura que tem também de ser considerada como domínio e subordinação vividos de determinadas classes. (WILLIAMS, 1979, p. 113).

Williams argumenta que uma noção de hegemonia é mais vantajosa heuristicamente porque é capaz de responder aos processos ―normais‖ de organização social e controle das sociedades complexas, em detrimento da visão de uma classe dominante baseada em fases históricas bem anteriores e mais simples. O conceito de hegemonia pode ser aplicado a significativas áreas modernas, como a do lazer e da vida privada – da ―experiência vivida‖, que pode ser associada ao que outros autores chamam de cotidiano (ver CERTEAU, 2000). E neste caso, ―se as pressões e limites de uma determinada forma de domínio são experimentadas em tais proporções, e na prática internalizada, toda a questão do domínio de classe, e das oposições a ele, se transforma [...]‖ (WILLIAMS, 1979, p. 113-114, grifo do autor)177. O trabalho e atividade culturais não são uma super-estrutura, pois a tradição e a prática culturais são vistas como muito mais do que expressões superestruturais (reflexos, mediações ou tipificações) de uma estrutura social e econômica formada. Nesse contexto, as experiências e práticas ativas que nossa sociedade classificou especializadamente como ―lazer‖, ―entretenimento‖ e ―arte‖ – nas quais pessoas empregam seus recursos físicos e materiais – podem ser vistas como elementos da hegemonia (dominante e alternativa). Uma perspectiva que considera todas estas experiências e práticas como ―uma formação cultural e social inclusiva que, na verdade, para ser efetiva tem de ampliar-se e incluir toda essa área de experiência vivida, até mesmo para formá-la e ser formada por ela‖ (WILLIAMS, 1979, p. 114). Mas essa abordagem traz enormes dificuldades teóricas e práticas, uma vez que seria

177 É difícil de se afastar da tentação de afirmar que há uma relação de ―homologia especial‖ (no