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Os avatares da incorporação

No documento Soberania municipal em Quito (1808-1830) (páginas 175-182)

CAPÍTULO 2. POR EL DESEO DE LOS PUEBLOS, POR LA CONVENIENCIA Y LA

2.4. Os avatares da incorporação

locais, ainda que ampliada a outros ramos do direito (entre eles o econômico), se sujeitava à aplicação de um tipo de justiça que, em suas instâncias finais, estava subordinada aos chefes departamentais e aos Intendentes. O poder outorgado a estes funcionários do Estado colombiano foi sustentado sobre quatro sustentáculos entendidos como âmbitos de influência instituídos no regime de Intendências impulsionado pelo reformismo bourbônico: justiça, fazenda, economia e polícia.373

2.4. Os avatares da incorporação  

A incorporação do Departamento do Sul à Colômbia decorreu na trilha de uma ruinosa situação política e a latente confrontação de seus poderes locais pela conservação de uma hegemonia territorial, conquistada durante o largo período do regime monárquico na região norandina; e sobre a linha de montagem do antigo sistema de corregimientos. No Sul, o poder central colombiano precisou negociar com os governos locais das cidades regionais como Quito, Guayaquil e Cuenca, sobre as formas em que plasmaria sua presença num espaço territorial heterogêneo e no qual os mecanismos administrativos e funcionais estatais, e a legitimidade quanto à representação política, passavam pelo município.

A crise econômica do Sul foi outro fator que dificultou a cristalização do regime republicano que se ensaiava, e retornava ao estado cada vez mais dependente dos governos locais, à medida que através destes era possível sustentar os mecanismos de arrecadação fiscal, organização das milícias, estabelecimento de políticas educativas e de saúde pública.

Estamos de acordo com Bushnell ao destacar que as indisposições no Departamento do Sul foram, especificamente, produto de três fatores sobre os quais o município da capital departamental não deixou de se manifestar. Em primeiro lugar, o fortalecimento dos laços comerciais dos portos do Pacífico (entre eles a cidade-porto de Guayaquil) com o tráfego direto com a metrópole espanhola e outros territórios na América (como o caso do Vice- Reino da Nova Espanha), circunstância que “asestó un serio golpe a las manufacturas

                                                                                                                          373 Ibidem.

textiles de las tierras altas del Ecuador”.374 A base da economia serrana entregava incipientes cotas de produção têxtil que tinham boa saída nos mercados alto-peruanos.375

Em segundo lugar, a depressão econômica causada pela quebra de um sistema produtivo concebido para sustentar um tipo de economia configurada regionalmente “para dentro” e com escassas aptidões para se modernizar, tornou-se ainda mais aguda com a situação de guerra constante, a partir de 1820. Em terceiro lugar, a mobilização da população das terras altas quiteñas, as sucessivas imposições e os recrutamentos, assim como o incremento da arrecadação fiscal, liquidaram a economia regional de Quito, reduzindo-a dramaticamente às possibilidades econômicas que mantinham os setores dos proprietários rurais, em vista de uma emergente produção agrícola e de gado orientada para o consumo interno.376 O desenvolvimento desses novos padrões de economia, não obstante, foram fortemente atingidos pela política grã-colombiana de tarifas, com a qual os grandes produtores venezuelanos ficaram em vantagem evidente sobre os quiteños.377 Três fatores sobre os quais o mal-estar local apresentou suas reclamações através de seu município:

Tales dificultades eran consideradas por la municipalidad de Quito como la causa fundamental de todos los problemas económicos de la región. Los hacendados alegaban en forma convincente, apoyados por los concejales municipales de Quito y de Latacunga, que estaban imposibilitados para cargar con los censos clericales sobre sus propiedades en razón de las escasez de numerario que hacía bajar los precios de los productos agrícolas y pecuarios; y la escasez de numerario la atribuían al declinamiento de las manufacturas y del comercio.378

As alegações do governo local sobre as pressões fiscais e econômicas para a sustentação do país no esforço das guerras em Pasto, especialmente, foram uma das queixas mais frequentes. Esta realidade é ostensiva ao revisar as Atas do conselho, logo após o pronunciamento de 29 de maio de 1822. As reuniões regulares do corpo edílico trataram

                                                                                                                         

374 BUSHNELL, David. “Capítulo XIX”. In: Idem. El régimen de Santander… op. cit., pp. 365.

375 Sobre a crise da produção do minério potosina no contexto do reformismo bourbônico, cabe considerar a análise completa realizada por TANDETER, Enrique. Coacción y mercado. La minería de la plata en el Potosí colonial, 1692-1826. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 1992, pp. 213-278. Sobre a crise da obraje quiteña e suas estratégias de reconversão econômica, ver, BORCHART, Christiana. El corregimiento de Otavalo... op. cit.

376 VAN AKEN, Mark. “La lenta expiración del tributo... op. cit., pp. 49-80. 377 BUSHNELL, David. “Capítulo XIX”… op. cit., pp. 365.

com especial atenção os pedidos formulados pelo intendente departamental sobre arrecadação de capitaciones, empréstimos forçosos e contribuições.379

Na Constituição de Cúcuta, o regime de Intendências supôs a inserção de um sistema de administração que pretendia moderar o movimento centrípeto dos poderes locais com a instauração de um esquema de racionalização, formulado a partir da divisão entre a administração de justiça e a polícia, ou seja, entre o princípio de governo e a jurisdição como âmbitos de exercício do direito estatal.380

Com a emergência do novo sistema, os conselhos municipais viram reduzidas suas margens de ação não apenas na organização da vida comunal (polícia), mas também quanto às formas em que a justiça e sua aplicação adquiriram suas formas. Tratava-se da instauração sem precedentes para o caso do território do atual Equador de um sistema centralizador, destinado a enfrentar de maneira aberta os antigos poderes locais fincados nos conselhos municipais, que se traduzia, essencialmente, num enfrentamento pelo exercício da justiça, retida como prática local pelos alcaldes e juízes pedâneos, e a justiça delegada pelo poder central republicano (encarregada aos Intendentes como responsáveis de ditá-la). Daí que uma das primeiras instituições criadas dentro do espaço quiteño fossem as Cortes de justiça:

1. - Libre todo el territorio del sur ha llegado el caso de cumplirse los artículos 8 y 9 de la ley de octubre del año último.

2. En consecuencia, la corte de justicia del distrito del Sur debe ser la que el Presidente Libertador organizó en su decreto del 24 de junio citado, sujeta á procederconforme a la ley orgánica del 12 de octubre.381

Ao interpor a lei como fonte da administração de justiça (as leis republicanas), a aplicação da justiça comuncal como parte das atribuições municipais, nas quais prevaleceu a cultura local como manifestação do iuscommune, abriu passagem para a posterior estatização da justiça como parte da incorporação periférica realizada, em primeiro lugar,

                                                                                                                         

379 As capitaciones eram tributos pessoais arrecadados entre os habitantes da jurisdição departamental. O controle sobre sua arrecadação recaía diretamente sobre o Intendente, embora este disponha do poder de encarregar os municípios de tal tarefa, para logo entregar o arrecadado. VELA WITT, Susana. El Departamento del Sur… op. cit., pp. 41.

380 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. “La formación histórica del principio de autotutela”. Moneda y Crédito, no. 128, 1974, pp. 67; MALAGÓN PINZÓN, Miguel. “El régimen de los Intendentes... op. cit., pp. 122.

pelo minguante Estado imperial e as emergentes entidades republicanas hispânicas. Ao “legalizar-se”, a justiça abandonava sua fisionomia corporativa, a qual comportava uma pré-condição de quem exercia a justiça como parte de um corpo orgânico e social (o

cabildo), despojado de suas atribuições subjetivas, a um novo marco de legitimidade no

qual o exercício da justiça legal passava pela aplicação da lei, à margem dos valores culturais comunais:

Em resposta ao pluralismo jurisdicional e à consecutiva fragmentação institucional, os juízes podiam ter diversas vinculações orgânicas (municipal, senhorial, real), mas portavam um padrão de juridicidade substancialmente uniforme que determinava a uniformidade da condição do juiz, entrelaçando os universos leigo e letrado no plano judicial.382

***

A republicanização do município de Quito, que começou no dia em que um cabildo ampliado, composto pelos oficiais do corpo cabildante, representantes das corporações e

padres de familia, decidiu sua associação à Colômbia, encontrou o governo local da sede da

Audiência em pleno deslisamento social em relação a seus componentes sociais. Os sucessivos fracassos juntistas de 1809 e 1810, promovidos especialmente por representantes das elites nobiliárias locais, famílias que também ramificaram sua presença no cabildo quiteño, se encontravam num parcial retiro, a ponto de que, uma vez logradas as capitulações militares de Quito, compartilhavam funções com membros de outros setores da sociedade quiteña: artesãos e comerciantes, os quais haviam ingressado no ayuntamiento graças às reformas introduzidas pela Constituição de Cádiz, interessada em ampliar suas margens de incorporação social ao espectro de um tipo de cidadania que, sem deixar de ser corporativa, permitia o acesso de emergentes setores sociais.

Após analisar os desenlaces possíveis do conflito armado entre os exércitos realistas e as coalizões bolivarianas, os oficiais da municipalidade deixaram de respaldar aos primeiros e se apressaram a mediar politicamente dentro do cenário de incorporação que a capitulação realista lhes sinalizava. Sistematicamente, se negaram a cumprir cabalmente

                                                                                                                         

382 GARRIGA, Carlos. & SLEMIÁN, Andréa. “Em trajes brasileiros’: justiça e constituição na América ibérica (c. 1750-1850)”. Revista de História, no. 169, julho-dezembro, 2013, pp. 192.

estes requerimentos, mas mantiveram uma clara postura realista, de modo que suas ações estiveram a ponto de ser recompensadas com uma série de mercês, dentre as quais constavam antigas aspirações territoriais e governativas que frente aos vice-reinos

neogranadino e peruano buscavam recompor jurisdicionalmente a importância de uma

Audiência decaída.

Foi um governo local socialmente híbrido que se anexou a Colômbia. Dentro dele, os representantes dos grupos da nobreza local já haviam começado a mimetizar-se, ao mudar seus sobrenomes e nomes antes que a supressão de títulos de nobreza, distinções hereditárias e morgadios, ditada pelos deputados neogranadinos e promulgada mais tarde pela Constituição de Cúcuta, tivesse efeitos na Presidência de Quito.

Tais posturas autonômicas avivaram os receios de Bolívar diante de um município que, a semelhança de outros grandes municípios da presidência, se mostrava com o ímpeto suficiente para, eventualmente, contrabalançar os intentos do incipiente poder central colombiano para incorporar periferias sociais e territoriais em conflito; daí que se propusera inicialmente uma agressiva centralização do poder, por meio do estabelecimento de apenas um departamento administrado com um intendente que conjugasse as esferas militar e civil em seu exercício.

A Lei de Divisão Territorial de 1824 ressaltou em alguns casos e redefiniu em outros as dimensões dessas soberanias territoriais, para conter a influência dos governos locais em um modelo administrativo centralizador que se sustentou sobre o círculo de juízes paroquiais que constituíam o enlace entre municípios e o resto da cadeia de burocratas criada pelo poder central: governadores, intendentes e chefes de Distrito. Tais encadeamentos mantinham uma estreita relação com o conceito inicial colombiano de administração da justiça que, por meio de tribunais provinciais e cortes superiores, procurava centralizar o exercício legal da distribuição do direito. Assim, a aplicação da justiça se deslocou, de um exercício demarcado pela aplicação local baseada em atribuições proporcionadas pelas leis do costume, dos alcaldes como juízes de primeira instância, a um de caráter legal.

De outra parte, é possível concluir que a incorporação periférica operada no espaço do antigo reino de Quito se realizou de maneira contraditória em relação às expectativas e aspirações territoriais expressadas na Constituição de Cúcuta. As declarações, tanto das

assembleias locais como a da cidade de Quito, a qual não renunciou a seu direito de decidir soberanamente pela anexação à Colômbia, ainda quando a capitulação militar das forças monárquicas era um fato, demonstra o sentido independente por trás das ações e decisões de seu cabildo, para o qual os resultados dos combates de Pichincha não comportavam a concessão de um estado de liberdade por parte dos colombianos. Ao que parece, os

quiteños não sentiam que se outorgava a eles coisa alguma, mas que recuperavam um

estado de situação que anteriormente haviam alcançado com seus próprios esforços, durante o decênio revolucionário. Suas alegações ante a decisão de Bolívar de não conceder mercê alguma aos cabildantes quiteños até que sua declaração de anexação fosse referendada pelo Congresso, fosse respondida com uma série de comunicações nas quais insistentemente se recordava o papel da urbe no processo independentista, o qual se remontava inclusive antes dos inícios da campanha bolivariana:

Tan recomendable contésto es el dichoso lazo de unión, con que para siempre ha estrechado esta capital sus intereses a los de la gran república de Colombia, de que es parte integrante. Conoce cumplidos sus votos, por que en efecto, si llegó a aclamar su libertad política en el año de nueve; procuró principalmente observar la estrella del norte, que había de corresponder á las luces del sol de su justicia en la buena causa que á la faz del mundo entraba á sostener.383

Um conflito latente se aprofundou entre as cidades-regionais do Sul pela conservação de antigas hegemonias territoriais e administrativas, as quais não tardaram em reclamar ao poder central por um conjunto de atribuições que, paulatinamente, descentralizaram um esquema político-administrativo de marca centralizadora. A conformação temporal da Corte distrital de justiça do Sul, na cidade de Cuenca, que se trasladaria mais tarde para Quito, uma vez resolvida sua anexação, é um exemplo disso. Mais tarde, com a anexação da sede da antiga Audiência, o tribunal se moveria para aquela cidade, convertida agora em capital distrital e sede departamental, frente ao qual as sedes departamentais de Guayaquil e Cuenca solicitariam seus próprios tribunais de justiça.

Nessa base, a consolidação geográfica do novo poder central republicano se entrelaçou sob a pressão exercida desde os espaços regionais do Sul, por meio de negociações com os governos das cidades que funcionariam como sedes departamentais,

                                                                                                                         

383 “Cabildo de Quito junio 21 de 1822—12. Al ecsmo. sor. Simón Bolívar, Presidente Libertador de la República”. Gaceta de Colombia, no. 50 (29.09.1822).

em vista do que o modelo centralizador de governo proposto pelo nascente republicanismo

norandino se descentralizou na prática, e marcou os árduos e conflitivos tempos de vida da

entidade política colombiana auspiciada por Bolívar.

Sobre a linha de montagem territorial do antigo sistema vice-reinol, e não a partir dos desenhos territoriais dos levantes revolucionários dos anos de 1810-1820, a incorporação da antiga Audiência de Quito dependeu de declarações locais de associação cuja legitimidade residia em seu caráter corporativo. Tais manifestações serviram aos bolivarianos para decantar o projeto republicano que sobre o papel se havia esboçado em Angostura, com a Ley Fundamental de 1819 e consolidada com a Constituição de Cúcuta em 1821.384 Como sublinhou López-Alves:

Como parte de la alianza con Venezuela, en 1819 se creó la Gran Colombia, que también incluía a Ecuador, pero sólo duró hasta 1830, el Estado logró retener el control de un territorio más pequeño (el territorio actual de Colombia). Sin embargo las graves dificultades para centralizar el poder fueron una característica definitoria de la formación del Estado hasta el siglo.385

Uma vez incorporadas essas discordantes localidades, seus governos locais foram considerados potenciais obstáculos para o fortalecimento de um modelo estatal centralizador, concebido assim precisamente para controlar os eventuais movimentos descentralizadores A metáfora escolhida por Bolívar para se referir à situação do recém anexado Distrito do Sul rememorou o estado de aparente calma de seus vulcões nevados que, embora adormecidos na superfície, borbulham em suas entranhas, ameaçando expulsar seus incandescentes materiais para o exterior com catastróficos e imprevisíveis efeitos. Em uma nota dirigida ao neogranadino Santander, o caudilho anotava: “Aseguro a Vd. con

franqueza que, a pesar de la aparente tranquilidad en que nos hallamos en el Sur, yo comparo este país al Chimborazo que exteriormente está muy frío mientras que su base está ardiendo”.386

                                                                                                                         

384 GUTIÉRREZ ARDILA, Daniel “Un sistema para la América independiente… op. cit., pp. 442-45.

385 LÓPEZ-ALVES, Fernando. “Un ejército débil y una democracia restrictiva: Colombia, 1810-1860”. In: Idem. La formación del Estado… op. cit., pp. 145.

CAPÍTULO3.“GOTEIRASNACAPITAL”.GUERRAEEXPECTATIVAS

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