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A bárbara civilidade dos Antigos

1. Dos princípios morais: imagens de inspiração utópica

1.3 A bárbara civilidade dos Antigos

Se a lei manifesta a vontade divina na vida que os homens compartilham, a moderação fundamenta moralmente uma vida social feliz, afinal, a moderação é a virtude que cria a disposição para a obediência291. Fénelon valoriza a dialética existente

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GALLOUÉDEC-GENUYS, 1963, p. 156-157.

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entre o Ethos coletivo e a moral particular de cada indivíduo. O respeito à lei que sustenta o Estado depende dos costumes sociais, o que justifica que o príncipe governe por meio de uma política de costumes. Em Salento, a moderação não aparece apenas como resultado da reforma de Mentor, mas antes participa da dinâmica criadora das medidas que a constituem:

Pour le dedans de la ville, Mentor visita tous les magasins, toutes les boutiques d’artisans et toutes les places publiques. Il défendit toutes les marchandises de pays étrangers qui pouvaient introduire le luxe et la mollesse. Il régla les habits, la nourriture, les meubles, la grandeur et l’ornement des maisons, pour toutes les conditions différentes. Il bannit tous les ornements d’or et d’argent, et il dit à Idoménée: "Je ne connais qu’un seul moyen pour rendre votre peuple modeste dans as dépense, c’est que vous lui en donniez vous-même l’exemple. Il est nécessaire que vous ayez une certaine majesté dans votre extérieur; mais votre autorité sera assez marquée par vos gardes et par les principaux officiers qui vous environnent. Contentez- vous d’un habit de laine très fine, teinte en pourpre ; que les principaux de l’Etat, après vous, soient vêtus de la même laine, et que toute la différence ne consiste que dans la couleur et dans une légère broderie d’or, que vous aurez sur le bord de votre habit. Les différentes couleurs serviront à distinguer les différentes conditions, sans avoir besoin ni d’or, ni d’argent, ni de pierreries” (FÉNELON, 1920, L. X, p. 264).

A defesa da modéstia é recorrente ao longo de todo o romance, mas, na reforma de Salento, essa virtude possui um papel essencial. Mentor exige a moderação material, entendendo-a como uma qualidade espiritual que deve ser cultivada em todas as instâncias da vida. Os homens devem situar sua felicidade na moderação, sintetiza o reformador, no poder de fazer o bem a outras pessoas e na reputação de que gozarão em razão de suas boas ações292. Ou seja, a felicidade está na vida simples que as boas leis protegem e a moderação faz amar. Mais uma vez, a imagem de Bética se impõe como síntese da admiração que Fénelon nutria pelos costumes dos povos antigos. Na seção dedicada ao projeto de poética da Lettre à L’Académie, Fénelon elogia em Homero a pintura da simplicidade dos costumes que tem o poder de levar o leitor de volta à Idade de Ouro293. Já podemos afirmar com alguma certeza que, para Fénelon, a felicidade

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FÉNELON, 1920, L. X, p. 268.

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estava no passado da Idade de Ouro, correspondente pagão do Éden, que, constantemente, projeta-se em seus textos ficcionais e não ficcionais como um ideal que o príncipe deve manter no horizonte.

Essa volta ao tempo anterior à queda e à degradação pode ser melhor entendida por intermédio da metafísica exposta no Démonstration de L’existence de Dieu, em que Fénelon parte da observação da natureza para comprovar a existência divina. Nessa perspectiva, a capacidade que os Antigos apresentavam de representar a simples natureza justifica sua imitação. Alcançar a naturalidade das coisas significa voltar à origem em que as coisas mesmas foram criadas. Assim se explica a importância que determinadas virtudes morais ganham no projeto político-social de Mentor: frugalidade, simplicidade, inocência são valores recorrentes na narrativa das Aventuras. Na última parte da Carta, concernente à Querela entre Antigos e Modernos, depois de afirmar que os artistas de seu tempo eram superiores aos do passado pelo fato de conhecerem a verdade do Cristianismo, Fénelon destaca a capacidade dos Antigos de viverem e representarem em suas obras a felicidade de uma vida simples. Ao mesmo tempo, lamenta que seus contemporâneos estivessem cegos para a expressão do “belo natural” e da simples natureza por pura vaidade:

Quand les poètes veulent charmer l’imagination des hommes, ils les conduisent loin des grandes villes; ils leur font oublier le luxe de leur siècle, ils les ramènent à l’âge d’or; ils représentent des bergers dansant sur l’herbe fleurie à l’ombre d’un bocage, dans une saison délicieuse, plutôt que des cours agitées, e des grands qui sont malheureux par leur grandeur même (FÉNELON, 1899, p. 155).

Os Modernos conhecem a verdade da fé, mas se deixam corromper por falsos ideais de honra e de glória: conquistas na guerra, orgulho de uma falsa polidez, vida corrompida pelo luxo e pelo ócio. Essa crítica aos costumes dos homens de corte encontra-se formulada alegoricamente na fala dos Mandurianos, povo que demonstra satisfação de ser considerado bárbaro e selvagem diante dos “costumes delicados” levados a Hespéria por Idomeneu:

La paix est plus douce que tous ces fruits: c’est pour elle que nous nous sommes retirés dans ces hautes montagnes toujours couvertes de glace et de neige, où l’on ne voit jamais ni

les fleurs du printemps, ni les riches fruits de l’automne. Nous avons horreur de cette brutalité, qui, sous de beaux noms d’ambition et de gloire, va follement ravager les provinces et répand le sang des hommes, qui sont tous frères. Si cette fausse gloire te touche, nous n’avons garde de te l’envier: nous te plaignons et nous prions les dieux de nous préserver d’une fureur semblable. Si les sciences que les Grecs apprennent avec tant de soin et si la politesse dont ils se piquent ne leur inspirent que cette détestable injustice, nous nous croyons trop heureux de n’avoir point ces avantages. Nous ferons gloire d’être toujours ignorants et barbares, mais justes, humains, fidèles, désintéressés, accoutumés à nous contenter de peu et à mépriser la vaine délicatesse qui fait qu’on a besoin d’avoir beaucoup. Ce que nous estimons, c’est la santé, la frugalité, la liberté, la vigueur de corps et d’esprit; c’est l’amour de la vertu, la crainte des dieux, le bon naturel pour nos proches, l’attachement à nos amis, la fidélité pour tout le monde, la modération dans la prospérité, la fermeté dans les malheurs, le courage pour dire toujours hardiment la vérité, l’horreur de la flatterie (FÉNELON, 1920, L. IX, p. 215-216).

Os mandurianos representam duas vezes o avesso de uma sociedade corrompida por maus costumes. No plano narrativo, eles se opõem ao modelo de vida instaurado por Idomeneu em Salento. Ora, a Salento antes da reforma de Mentor deixa entrever uma imagem da corte de Luís XIV. As representações fenelonianas da sociedade de corte raramente produzem simpatia. Mesmo demonstrando perfeita consciência histórica do declínio social de sua ordem de origem, Fénelon não deixa de denunciar as falsas virtudes cultivadas pela nobreza. O autor do Telêmaco repete os clichês dos moralistas nas críticas ao cortesão. Como padre e como aristocrata, Fénelon sofre com aquilo que considera uma degeneração dos costumes no culto do luxo e na devassidão. A virtude cristã da moderação se transforma, sob a pena do autor, no remédio com que pretende curar uma “sociedade doente”, como podemos ler no artigo 12 do Examen:

N’avez-vous point souffert que les personnes les plus vaines et les plus prodigues aient inventé de nouvelles modes pour augmenter les dépenses? N’avez-vous pas vous- même contribué à un si grand mal par une magnificence excessive? Quoique vous soyez roi, vous devez éviter tout ce qui coûte beaucoup, et que d’autres voudraient avoir comme vous. Il est inutile d’alléguer que nul de vos sujets ne doit se permettre

un extérieur qui ne convient qu’à vous. Les princes qui vous touchent de près voudront faire à peu près ce que vous ferez; les grands seigneurs se piqueront d’imiter les princes; les gentilshommes voudront être comme les seigneurs; les financiers surpasseront les seigneurs mêmes; tous les bourgeois voudront marcher sur les traces des financiers, qu’ils ont vus sortir de la boue. Personne ne se mesure et ne se fait justice. De proche en proche, le luxe passe, comme par une nuance imperceptible, de la plus haute condition à la lie du peuple. [...] L’exemple seul peut redresser les mœurs de toute la nation. Nous voyons même que la folie de nos modes est contagieuse chez tous nos voisins. Toute l’Europe, si jalouse de la France, ne peut s’empêcher de se soumettre sérieusement à nos lois dans ce que nous avons de plus frivole et de plus pernicieux. Encore une fois, telle est la force de l’exemple du prince: lui seul peut, par sa modération, ramener au bon sens ses propres peuples et les peuples voisins ; puisqu' il le peut, il le doit sans doute: l’avez- vous fait? (FÉNELON, 1983, v2, p. 980)

Fénelon não ignora que a moderação esteve presente nos tratados de Honnêteté produzidos em seu tempo como um traço moral característico daquele que conhece seu lugar social. O significado da moderação, para Fénelon, contudo, desliza da “teoria da honestidade” para seu universo cristão, valorizando a capacidade do homem de lutar contra si mesmo, de combater suas paixões e vícios com o objetivo de tornar-se sóbrio e puro.

Com a defesa de uma moderação cristã, Fénelon direcionava suas críticas à banalização da moral do “homem honesto” que, a partir da segunda metade do século XVII, passou a ter dois sentidos bem distintos. O primeiro desses sentidos era aristocrático, combina Montaigne e Erasmo, e possuía caráter essencialmente hedonista. A fonte encontra-se no tratado do Cavaleiro de Méré (1677), para quem “a honestidade nasce de uma feliz disposição de espírito confirmada por uma longa experiência”. Inspirado em Montaigne, Méré afirmava que o homem honesto mundano saberia julgar usando a razão. Ele seria capaz de dominar a si mesmo – suas paixões, seu corpo e nisto estaria a herança erasmiana. Mas a prática da virtude seria uma escolha racional, pois a sabedoria humana seria independente da sabedoria divina. Assim, o princípio dessa honestidade estaria na probidade: o homem honesto aristocrata deve-se tudo a si mesmo.

O segundo sentido fundamentava-se no cristianismo e no princípio da caridade. O honnête homme cristão destacava-se pelo mérito pessoal da virtude, que advém da sabedoria divina. Ao longo do século XVII, essa honestidade seria distinta da outra, tanto que o homem honesto cristão preferiria ser reconhecido como Homme de Bien. A princípio, a honnêteté caracterizava o homem sábio à moda da Antiguidade clássica. Na medida em que os valores morais cristãos tornaram-se mais definidos, surgiu a expressão homme de bien para indicar o homem honesto de caráter religioso294. Essa dualidade deve ser compreendida no processo que se desenvolve e se aprofunda com a centralização do poder sob Luís XIV. O sentido aristocrático predominará, graças às relações de dependência estabelecidas entre o cortesão e seu rei. Segundo Nobert Elias, uma vez sem função econômica ou militar, o cortesão, fosse ele nobre de linhagem, de título comprado ou membro da alta burguesia, precisou desenvolver “uma sensibilidade apuradíssima para as atitudes, manifestações e atos que favoreciam ou prejudicavam o seu prestígio social”295. Para diferenciar-se dos arrivistas que ganhavam a confiança do rei, a nobreza complicou a arte de viver, impondo um complexo código que servia de critério para a distinção social. Esse ritualismo, objeto dos tratados de honestidade, pretendia preservar o que restava de prestígio para os aristocratas.

Fénelon ressentia-se da inutilidade da nobreza em seu tempo, mas discordava do sentido hedonista que a honnêteté desenvolveu ao longo do século XVII. Seria o caso de encontrar novas funções para a nobreza e de valorizar o ideal do “Homem de bem” – aquele que pratica o desinteresse, que fala de forma eloquente e sublime apenas para inspirar virtudes, que nunca age de forma vil para ganhar qualquer tipo de benefício. Assim, a utilidade passa a ser defendida por Fénelon como uma obrigação moral e social. No horizonte cristão do autor, a utilidade relaciona-se diretamente com o estilo de vida moderado que fortalece o corpo e o espírito do homem que deseja viver segundo as leis sagradas e realizar os desígnios divinos. Na verdade, esse é o principal trabalho a que Mentor se dedica antes mesmo de reformar Salento: educar seu rei na moderação. Do micro para o macro, presenciamos a prática individual da virtude como possibilidade de criação de um desejo de reforma maior e mais ampla.

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LEVÊQUE, A. “L’honnête homme et l’homme de bien au XVIIe siècle” in: PMLA, v.72, n.4, set. 1957, p. 620-632. Jstor: http://www.jstor.org/stable/460173. Acesso: 08/04/2009.

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A multiplicação desses comportamentos moderados levaria a uma sociedade bem regrada e feliz. Trata-se de um projeto social e coletivo que parte do exemplo do príncipe para a instauração de uma política de costumes baseados na simplicidade exemplar dos povos antigos – tanto dos gregos da Idade de Ouro quanto dos cristãos das catacumbas.