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1. Como e por que ler Telêmaco hoje

2.4 Um Roman à clef

2.4.3 A chave do Quietismo

Os princípios quietistas do “Puro Amor” surgem com mais força na descida de Telêmaco ao Hades178. Refazendo o caminho de Orfeu, de Ulisses, de Enéias e de Dante, o príncipe vai “levado pelo amor piedoso que um filho deve a seu pai”. A viagem divide-se em duas etapas: num primeiro momento, Telêmaco atravessa sozinho o Tártaro, onde conhece o flagelo daqueles que, por diferentes razões, tornaram-se inimigos dos deuses; depois, conduzido por seu bisavô Arcésius, percorre os campos Elísios, lugar em que as almas vivem em perfeita união com o sagrado. A espiritualidade do “Puro Amor” reúne e plasma as ideias políticas e morais de Fénelon neste livro. No inferno, destacam-se os reis que, tomados de amor próprio, descuidaram de seu povo, abusaram do poder, negligenciaram suas responsabilidades e ainda se deixaram dominar por conselheiros ardilosos. Todos os exemplos vistos por Telêmaco evocam suas experiências anteriores – Pigmalião, Bochoris e até mesmo Idomeneu. Esses homens recebem o castigo da própria consciência, em alerta constante, acusando- se sem cessar. Imagens variadas – um está condenado a olhar-se no espelho, outro é atormentado pelas cruéis suspeitas – são usadas para mostrar a impossibilidade de se escapar da própria natureza.

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No paraíso não há consciência de si, pois o amor puro e desinteressado leva à dissolução do eu no sagrado, como podemos ler no artigo XXXIV das Maximes:

La mort spirituelle dont tant de saints mystiques ont parlé après l’apôtre […] n’est que l’entière purification ou désintéressement de l’amour; en sorte que les inquiétudes et les empressements qui viennent d’un motif interessé n’affloiblissement pas l’opération de la grâce et que la grâce agit d’une manière entièrement libre. La résurrection spirituelle n’est que l’état habituel du pur amour, auquel on parvient d’ordinaire les épreuves detinées à le purifier (FÉNELON, 1983, v1, p. 1081)

Arcésius apresenta os reis que alcançaram a felicidade plena, distinguindo sempre seus grandes feitos. Telêmaco não se surpreende ao ouvir, repetidas, as palavras sábias de Mentor na boca de seu antepassado. Aqueles bons reis souberam incentivar o trabalho e cultivar boas leis. Eles circulam pelos campos Elísios completamente alheios a tudo que se passa a sua volta e em si mesmos. Estão inebriados da verdadeira vida – um estado de êxtase que lembra muito a oração passiva do Quietismo. A visita de Telêmaco à casa dos mortos tranquiliza seu coração, pois comprova que seu pai vive. Além disso, ele pode observar a concretização do valor de todas as lições dadas por Mentor.

A experiência espiritual vivida por Telêmaco no Hades orienta-o em suas decisões. Já no livro XV, o filho de Ulisses demonstra pleno domínio de si e cuidado com o outro por temor e amor aos deuses. Em assembleia, ele fala sábia e francamente aos reis aliados, apontando seus equívocos. Era como se o próprio Mentor falasse por ele. Aproximando-se do fim, as Aventuras mostraam-nos, como bem observou Hillenaar, que o objetivo não era tanto que o jovem Telêmaco se transformasse em um homem maduro, mas que se tornasse um segundo Mentor, ou seja, um sábio179. Na referida assembleia, três questões são apresentadas para discussão: 1) Um cidadão de Venúsia, cidade usada por Adrasto como depósito de víveres para seu exército, oferece ajuda para franquear seus portões durante a noite. A ação parecia a estratégia acertada para enfraquecer as tropas inimigas; 2) Adrasto infiltrou um traidor para envenenar os chefes aliados. Era preciso matá-lo para manter a segurança no acampamento; 3) Um

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dáunio procurou os aliados e ofereceu seus serviços para acabar com a vida de Adrasto em sua tenda. Telêmaco recusa todas essas propostas, por entender que elas desagradam os deuses e que seus fins não justificariam os meios. O anti-maquiavelismo de Fénelon fazia-se notar.

O potencial figurativo da linguagem sequestra o texto das intenções de seu autor. Ainda que Fénelon não tivesse a intenção de satirizar a corte de Luís XIV e o próprio rei como ele próprio afirma, deu-se que seu público estava pronto, em termos de formação alegórica, para ler As aventuras de Telêmaco como sátira. Do mesmo modo, havia leitores dispostos a interpretar o livro de Fénelon com a chave edificante do Cristianismo.

Tu verras dans le fils d’Ulysse

Du charme des plaisirs un jeune Coeur touché N’éviter le penchant du vice

Qu’autant que par Mentor il en est arraché. Reconnais sous cette figure

Dans les tentations les perils que tu cours, Si tu ne vois à la nature

La Grâce triomphante apporter son secours. Mentor soutenant Télémaque

Des plus rudes combats le fait sortir vainqueur: Vainement l’Enfer nous attaque,

S’il plait à Jésus-Christ d’animer notre Coeur […]

(apud HAILLANT, 1982, p. 465)

Esse poema, intitulado “La clef de Télémaque”, foi inserido no final do segundo volume de uma das inúmeras edições das Aventuras publicadas ainda em 1699. Seus últimos versos solicitam ao leitor que leia o livro de Fénelon sem qualquer intenção satírica, que se procure a sabedoria cristã em suas imagens. Esse apelo seria ouvido pela crítica apenas no século XX. No século seguinte, inseridas em um ambiente de ideias revolucionárias As aventuras obteriam nova recepção, valorativa de seu caráter transformador e social. O processo de figurativização utilizado por Fénelon permitiu que a alegoria transformasse diferentes experiências concretas de momentos históricos distintos em conteúdos legíveis.