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III. O TÓPICO DO SILÊNCIO: uma forma de atenção à palavra

16. Babel como solução

A mais comum interpretação do mito de Babel celebra-o como paradigma da justiça divina: Babel é um crime que Deus castiga exemplar e definitivamente. Perante tal punição, é todavia percetível esse contínuo desejo de um regresso ao Paraíso, essa ambição de se refugiar no silêncio da natureza, da compreensão, da escuta, para se afastar o mais possível do ruído, confusão e violência da cidade babélica condenada à impercetibilidade:

Eis aqui me alonguei fugindo, e permaneci na soledade. Ali aguardava àquele, que me salvou do abatimento de espírito, e da tempestade. Destrói, Senhor, confunde as línguas deles, porque tenho visto a injustiça e a contradição na cidade.580

effeito de qualquer luz: brilhar entre muitas luzes, he prerrogativa de Sol.» (Joseph Freire Monterroyo MASCARENHAS, «Oração», Obsequio Funebre…, p. 11).

578 Fernando GANDRA – O sossego como problema (peregrinatio ad loca utopica), p. 235. 579 Rafael BLUTEAU – Vocabulario Portuguez e Latino…, Tomo VIII, p. 12 (TABULA RASA). 580 (Sl 54, 8-10)

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A unidade pertencerá a Deus. A pluralidade surgirá como um castigo, ao qual, com exceção dos “abençoados”, nenhum homem poderá escapar.

Nos livros dos homens, ou naqueles que os escrevem, a verdade pode, muitas vezes, ficar em silêncio e a mentira em palavra gravada, para ser lida e depois lembrada. E também aqui se distingue a verdade do silêncio, singularidade de Deus, da mentira da palavra, especialidade do Homem.

Mas porque as admiraçoens saõ glorias instantaneas, sahiraõ os livros, para conservadores das memorias do passado. Porém quantas vezes as folhas, ou escritas, ou impressas perderaõ com a sua candura a sua fidelidade, adulterando verdades, e deixando em silencio successos dignos de huma eterna lembrança?581

Este fatal destino resultará da sua condição ruidosa, múltipla, em tudo semelhante à associação que Diderot estabelece entre uma cabeça repleta de ideias disparatadas e uma biblioteca cheia de livros desorganizados:

Uma cabeça povoada de um número muito grande de coisas disparatadas assemelha-se bastante a uma biblioteca de volumes desaparelhados. […] É como um comentário onde se encontra, amiúde, o que não se está procurando; raramente o que se procura; quase sempre, as coisas de que se necessita, mas perdidas na multidão de coisas inúteis. 582

Essa punição da pluralidade linguística é simbolicamente oposta às considerações de Leibniz, que «celebrara como positiva justamente essa confusio

linguarum que os outros autores, em contrapartida, tentavam eliminar»583; ou às do patriótico francês Pluche que, um século depois, afastaria a pluralidade de um sentido negativo, babélico, e a consideraria um fenómeno positivo:

[…] a multiplicação (que não é confusão) das línguas surge como um fenómeno, além de natural, socialmente positivo. […] Há aqui algo mais do que a celebração do género das línguas: trata-se de uma inversão de sinal na leitura do mito de Babel. 584

581 Rafael BLUTEAU – Prosas Portuguezas, vol. II, p. 4.

582 Denis DIDEROT – Carta sobre os surdos-mudos para uso dos que ouvem e falam, p. 41. 583 Umberto ECO – A procura da língua perfeita, p. 254.

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Celebrar a pluralidade linguística de Babel é uma heterodoxia religiosa, no século XVIII ou no século XIX. É por isso muito interessante constatar aqui a inovação heterodoxa de Bluteau, construída através da ortodoxia.

Para Bluteau, e tal como sucede hoje nas teorias dos fractais, o todo decompõe- se nas partes e cada parte contém um registo do todo; «Será essa característica da linguagem que permite a missionação da palavra de Cristo pelos seus discípulos. Babel não era um castigo, mas ainda uma dádiva divina.»585

De todas as Academias, que até agora houve nu Mundo, naõ sahio tanta, e taõ admiravel eloquencia […] quando sahiraõ os Apostolos, prègando a diversas naçoes em differentes linguas as verdades Evangelicas […] Foy esta eloquencia […] universalissima […] na locuçaõ, de todos entendida, [se manifestou] a sua universalidade. Senhor, em que palestra scientifica se vio taõ prodigiosa facundia? Semeastes linguas, para colher corações […] para enviar Missionarios a todas as partes do Mundo, por mil idiomas differentes derramastes no mesmo tempo a mesma doutrina […]586

Deus, como totalidade, constitui-se a partir da realidade das partes. A linguagem dos apóstolos, uma glossalalia de mil idiomas diferentes, traduz-se numa linguagem total/universal.

Também nesse sentido Bluteau, encavalitado cronologicamente entre o século XVII e o século XVIII, se revela um pensador que se projecta para a filosofia setecentista, em que a pluralidade passa a ser por muitos estimada. Inclusive a pluralidade linguística, e independentemente da pluralidade das nações.587

Tudo isto nos leva a sugerir que o nó da questão residirá na passagem do plural (finito) para o singular (infinito) ou vice-versa. Como afirma Levi Malho, a condição humana não é mais do que essa «combinatória entre o individual e social, sendo bem difíceis de estabelecer fronteiras nítidas entre estes dois conceitos.»588

585 Ana A. RAFAEL – «Utopia e Espiritualidade nas Prosas Portuguezas de Rafael Bluteau», Cadernos

de Literatura Comparada – 19, Utopia e Espiritualidade, p. 184.

586 Rafael BLUTEAU – Prosas Portuguezas, vol. I, pp. XVII-XVIII.

587 Ana A. RAFAEL – «Utopia e Espiritualidade nas Prosas Portuguezas de Rafael Bluteau», Cadernos

de Literatura Comparada – 19, Utopia e Espiritualidade, p. 184.

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E por isso nos parece significativo, sendo muito importante realçá-lo, que Bluteau se preocupa precisamente com esse nó da questão, essa combinatória entre o individual e o social, ou o particular e o universal. Quando Bluteau se debruça obsessivamente pelo silêncio, interessa-lhe ver no silêncio esse local de passagem589 do plural (finito) para o singular (infinito), ou vice-versa.

589 Esse «oceano do ser que, como é próprio dos oceanos, ao mesmo tempo une e separa.» (Fernando

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CONCLUSÃO

Em cada palavra há algo de silencioso, em cada silêncio há algo que fala. (Ione Marisa Menegolla, A linguagem do silêncio)