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III. O TÓPICO DO SILÊNCIO: uma forma de atenção à palavra

2. Ler Bluteau entre as vozes mudas

Assim como a palavra é indissociável do silêncio, também a leitura não pode ser concebida sem a escrita. A célebre imagem de Michel de Certeau contrapõe o escritor (o construtor de um lugar próprio) ao leitor (o viajante, o nómada), assim como paralelamente a escrita, ato duradouro mas fixo, é contraponto da leitura, ato efémero mas livre:

Bien loin d’être des écrivains, fondateurs d’un lieu propre, héritiers des laboureurs d’antan mais sur le sol du langage, creuseurs de puits et constructeurs de maisons, les lecteurs sont des voyageurs ; ils circulent sur les terres d’autrui, nomades braconnant à travers les champs qu’ils n’ont pas écrits, ravissant les biens d’Egypte pour en jouir. L’écriture accumule, stocke, résiste au temps par l’établissement d’un lieu et multiplie sa production par l’expansionnisme de la reproduction. La lecture ne se garantit pas contre l’usure du temps (on s’oublie et l’on oublie), elle ne conserve pas ou mal son acquis, et chacun des lieux où elle passe est répétition du paradis perdu.625

Nesta contraposição há uma teoria subliminar de complementaridade. Se a leitura não acontece sem a escrita, também esta perde todo o seu fundamento sem a primeira, pois um texto só ganha existência, se houver um leitor para lhe “dar vida”. Por isso acrescenta:

Qu’il s’agisse du journal ou de Proust, le texte n’a de signification que par ses lecteurs; il change avec eux; il s’ordonne selon des codes de perception qui lui échappent. Il ne

624 Rafael BLUTEAU – «Vocabulario de Synonimos, e Phrases…», Vocabulario Portuguez e Latino…,

Supp. II, p. 365.

191 devient texte que dans sa relation à l’extériorité du lecteur, par un jeu d’implications et de ruses entre deux sortes d’«atente» combinées: celle qui organise un espace lisible (une littéralité), et celle qui organise une démarche nécessaire à l’effectuation de l’oeuvre (une lecture).626

Ana Hatherly também confirma essa necessária função do leitor na dialética da escrita/leitura (singular/plural): «O leitor tem de preencher as lacunas, os vazios, as omissões, tem de ver o invisível sob o visível, ouvir o som mudo, receber a mensagem não dita, atingir o significado sob o significado.»627 Mais ainda, escrita e leitura complementam-se, interligam-se, através da partilha de um mesmo universo, o da imaginação simbólica:

A escrita é fala muda, uma forma de materialização do imaginário que requer uma particular forma de leitura, uma forma de descodificação apropriada às suas próprias regras e exigências de comunicação. Escritor e leitor têm de se apoiar nas forças da imaginação porque, na escrita como na leitura, opera a função simbólica. Como vários pedagogos há muito verificaram, ler é apelar para o imaginário, pois a verdadeira leitura começa quando a presença do texto como que desaparece diante dos olhos, do mesmo modo que o autor desaparece na obra.628

A escrita é fala muda, sublinhe-se, uma metáfora intertextual ao registo de

Rafael Bluteau, quando sobre a «Penna de Escritor» afirma: «Lingua, que tacitamente fala […]»629

Se a escrita é muda, a leitura assume muitas vozes, de diferentes tons/intensidades e de distintos modos. Nas práticas de leitura, ou na ligação entre o texto e a voz, é muito comum a variação entre uma leitura silenciosa (visão) e uma leitura oral (visão e audição). Para Michel de Certeau, a leitura silenciosa é um vício da atualidade, um hábito que consequentemente afasta o leitor do texto. A anterior intimidade recriadora da leitura oral dá lugar à frieza autónoma da leitura silenciosa, que

626 Michel de CERTEAU – L’invention du quotidien, p. 247. 627

Ana HATHERLY – A casa das musas: uma releitura crítica da tradição, Lisboa: Editorial Estampa, 1995, p. 197.

628 Ana HATHERLY – A casa das musas: uma releitura crítica da tradição, p. 195.

629 Rafael BLUTEAU – «Vocabulario de Synonimos, e Phrases…», Vocabulario Portuguez e Latino…,

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produz leitores incapazes de reviver mais sensorialmente a magia da intemporalidade da escrita:

[…] la lecture est devenue depuis trois siècles une geste de l’oeil. Elle n’est plus accompagnée, comme auparavant, par la rumeur d’une articulation vocale ni par le mouvement d’une manducation musculaire. Lire sans prononcer à haute ou à mi-voix, c’est une expérience «moderne», inconnue pendant des millénaires. Autrefois, le lecteur intériorisait le texte; il faisait de sa voix le corps de l’autre; il en était l’acteur. Aujourd’hui le texte n’impose plus son rythme au sujet, il ne se manifeste plus par la voix du lecteur. Ce retrait du corps, condition de son autonomie, est une mise à distance du texte. Il est pour le lecteur son habeas corpus.630

De facto, a história da leitura evidencia determinadas oscilações que acentuam as diferenças entre uma leitura concentrada (poucos livros, valorizada) e uma leitura dispersa (muitos livros, dessacralizada); uma leitura íntima (solitária) e uma leitura pública (coletiva); ou a referida variação entre uma leitura em silêncio (menos sensorial) e uma leitura em voz alta (mais sensorial).

O modo de ler em silêncio será uma prática relativamente recente, incentivada pelos níveis de alfabetização e a proliferação de textos impressos. Mas não será por sinal tão distante do carácter silencioso das leituras místicas do eremita ou das leituras praticadas pelas ordens monásticas. S. Agostinho recomendava-a.631 Mas em relação ao período entendido entre os séculos XVI e XVII, confirma Roger Chartier:

Nos séculos XVI e XVII, ainda com frequência, a leitura implícita do texto, literário ou não, constrói-se como uma oralização, e o seu «leitor» como o auditor de uma palavra leitora. Dirigida assim tanto ao ouvido como ao olho, a obra joga com formas e processos aptos para submeter a escrita às exigências próprias da performance oral.632

Nesta progressiva «‘produção silenciosa’ que é a ‘actividade leitora’»633, o desafio joga-se entre o silêncio e a palavra, entre o olhar e o ouvido. Um dualismo que permite uma partilha, um modo de socializar, mesmo em contexto privado, e sobretudo

630

Michel de CERTEAU – L’invention du quotidien, pp. 253-4.

631 Leia-se sobre este assunto Alberto Manguel – «Os leitores silenciosos», Uma História da Leitura, trad.

Ana Saldanha, Lisboa: Editorial Presença, 1998, pp. 53-66.

632 Roger CHARTIER – A ordem dos livros, p. 21. 633 Roger CHARTIER – A ordem dos livros, p. 41.

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desvendar a mensagem a quem não for capaz de a entender. Até porque, como adianta Roger Chartier, «um grande número de ‘leitores’ só apreende os textos graças à mediação de uma voz que os lê.»634

Nesta época, ainda entra a cultura escrita e uma persistente cultura oral, não será por acaso que Bluteau dedica, no prólogo do Vocabulario, extensivas páginas a diversos tipos de leitores, aos quais se dirige: benévolo, malévolo, impaciente, douto, indouto,

pseudocrítico, impertinente, mofino, português ou estrangeiro. Também ele saberá a

importância do leitor na escrita. O problema da receção do discurso, por parte do leitor silencioso ou do ouvinte, merecerá decerto alguma reflexão, por parte do escritor ou do leitor-ator. Mas tal problemática não é novidade, havia já sido debatida, por exemplo, no âmbito da filosofia clássica. Encontrámo-la no Fedro635 de Platão ou na Arte

Retórica636 de Aristóteles. Como afirma Maria Luísa Malato Borralho, no contexto

teatral, o ator «Recriará o silêncio, através do gesto, das expressões faciais, das entoações, das palavras cortadas a meio, pois sabe que com o indizível emocionará o público.»637

A consolidação da escrita dá-se a partir da leitura. Neste processo, esta adquire um estatuto demasiado complexo para ser desvalorizado. Como nos diz Pierre Macherey: «Analysis is a repetition, another way of saying what has already been said; reading complements writing.»638 É no contexto da perfeição da escrita concisa, ou do escritor conciso, enquanto mestre da escrita, que Juan Rof Carballo retrata o leitor ideal. Mas é na arte de preencher espaços, silêncios entre as palavras, que identifica o leitor eficaz:

En la segunda vertiente de la vida, al alcanzar la maestría, el escritor o el poeta suelen reducir, en grado considerable, sus recursos expresivos. Alcanza en ellos entonces el lenguaje su máxima concisión. La expresión se vuelve sobria, concentrada, escueta. […] Las palabras, al reducir su número, al volverse sencillas, menos pretenciosas, dejan entre ellas claros huecos por los que el lector, sin darse bien cuenta de ello, atisba las

634 Roger CHARTIER – A ordem dos livros, p. 38.

635 PLATO – Phaedrus, trans. Benjamim Jowett, [s/l]: Forgotten Books, 2008. Obra valorizada por

Bluteau nas suas Prosas…, v. vol. I, p. 209.

636 Leia-se ARISTÓTELES, L’art de la Rhétorique, trad. C. Minoïde Mynas, Paris: Chez l’Éditeur…,

1837, especialmente o terceiro livro, pp. 282-391.

637 Maria Luísa Malato BORRALHO – A Retórica do Silêncio na Literatura Setecentista, pp. 159-60. 638 Pierre MACHEREY – A theory of literary production, p. 143.

194 profundidades, esto es el curso secreto de las aguas que antes la algarabía del lenguaje no le dejaba percibir. En vez de verse arrastrado por la frase, el lector, ahora, se ha convertido de pronto, quiéralo o no, en alguien que escucha lo que ocurre en los intersticios de la misma. […] a este propósito una frase del Libro de los Proverbios: «El hombre que escucha, habla a perpetuidad.» Lo que a perpetuidad habla en el fondo de la lengua es menester poder escucharlo y para ello que las palabras se espacien dejando entre ellas huecos silenciosos. Don al que sólo se accede en la cima más alta del arte de escribir.639

Na articulação entre a escrita e a leitura, a interpretação do silêncio é certamente valorizada. O empenho ou a arte do escritor que semeia os silêncios na escrita reclama alguém que os colha, os oiça, os contemple ou os deguste. A exigência imposta ao leitor aumenta consoante a mestria da escrita. Quantos mais “silêncios” esta apresentar, mais ele terá de apurar a sua perceção auditiva/visual e interpretativa/simbólica.

Em The persecution and the art of writing, Leo Strauss retrata um tipo de literatura que requer um determinado tipo de leitor, aquele que consegue ler nas entre linhas de um discurso oprimido, perseguido. Neste género de escrita, ele terá de ser inteligente o suficiente para decifrar as limitações impostas ao escritor, quer sejam de ordem política, religiosa ou social. Um pouco como entre os pitagóricos, subentende-se um formato elitista, em que só os escolhidos manifestam potencialidades para decifrar as palavras do mestre.

Persecution, then, gives rise to a peculiar technique oh writing, and therewith to a peculiar type of literature, in which the truth about all crucial things is presented exclusively between the lines. That literature is addressed, not to all readers, but to trustworthy and intelligent readers only. […] The fact which makes this literature possible can be expressed in the axiom that thoughtless men are careless readers, and only thoughtful men are careful readers. Therefore an author who wishes to address only thoughtful men has but to write in such a way that only a very careful reader can detect the meaning of his book.640

639 Juan Rof CARBALLO – Entre el silencio e la palabra, p. 51.

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Segundo Roger Dragonetti, «Ainsi, toute la tâche de l’interpète des textes de littérature pourrait se résumer dans cette seule règle: non impedias musicam.»641 A frase latina é do Eclesiástico (32, 5), não impedir a música implicará decerto um “ouvir em silêncio”642. Não perturbar a música, a harmonia do texto, é ser capaz de entrar, simultaneamente, em sintonia com ele. Mas nem todos estarão preparados para, sem perturbar o sentido, interpretar tamanha sonoridade, uma vez mais.

É significativa a metáfora que vê no mundo um livro. Comummente divulgada na Idade Média, também ela entrará nas considerações de Rafael Bluteau:

[…] o Ceo he hum grande livro, composto por Deos, e aberto aos idiotas igualmente, que aos entendidos […] ao que accrescento eu, que naõ só o Ceo, mas o Mundo todo he livro; com esta differença, que os idiotas olhaõ para elle, e naõ o lem; os Filosofos o lem, e o naõ entendem; os ricos se contentaõ de o folhear; os pobres buscaõ nelle remedios para o sustento; outros o estudaõ por outro genero de livros.643

Baseado em São Crisóstomo, ele fala do universo, o livro que traduz a pluralidade da Natureza e a subliminar necessidade de ser lido e decifrado. Um livro acessível a todos, agora, ainda que por todos incompreendido. Subjacente estará um sentido sempre ignoto, cifrado, codificado.

641 Roger DRAGONETTI – Le mirage des sources: l’art du faux dans le roman médiéval, Paris: Seuil,

1987, p. 8.

642 Cf. (Eclo 32,9)

643 Rafael BLUTEAU – Prosas Portuguezas…, vol. II, p. 175. Com Galileu a metáfora mantém-se, porém

o mundo é substituído pelo universo. Os requisitos singulares, do leitor apropriado para interpretar este livro, intensificam-se, como nos adianta Selma Pousão-Smith: «Com Galileu o exclusivismo instala-se […] para Galileu o universo continua a ser “um livro que é preciso ler e interpretar” só que, para realizar esta decifração e esta leitura, poucos apenas se encontram aptos.» (Selma POUSÃO-SMITH, Rodrigues Lobo, os Vila Real e a Estratégia da Dissimulatio, vol. 1, p. 482).

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