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III. O TÓPICO DO SILÊNCIO: uma forma de atenção à palavra

15. O silêncio da infância

Indelével distância ou utópica aspiração de aproximação, a diferença entre Deus e o Homem será comummente sentida. Sobretudo no que concerne ao discurso:

[…] inferem os Theologos, que os artigos da nossa Santa Fé de mais difficil comprehensão, são absolutamente mais certos, que as mais evidentes conclusoens de todas as Sciencias; porque estas fundaõ a sua verdade no discurso humano, que he fallivel; e os Artigos da Fé manaõ das revelaçoens Divinas, que saõ necessariamente infalliveis.557

Por ser falível, o discurso humano aproximar-se-á do fenómeno negativo da pluralidade, entendida como confusio linguarum. Por ser infalível, o discurso divino também terá as suas analogias com uma língua universal, monogenética. Seria essa a língua perfeita, para este admirador de Lúlio:

Da Creaçaõ do Mundo até aos temerarios, e mal logrados principios da famosa Torre de Babel, pelo espaço de mais de mil e setecentos annos correraõ as palavras todas irmans, e filhas da primeira, e unica lingua do Mundo, com tanta uniformidade, e confiança, que nunca entre ellas houve, outra diferença, que a que era precisa para a harmonia do discurso. […] Estes, e todos os mais nomes daquele tempo, eraõ palavras da lingua farta, que naquelles primeiros séculos reynavaõ no Mundo; quando finalmente com o castigo da confusaõ das linguas na Torre de Babylonia, entrou a desconfiança nos homens, e nas palavras, desconfiavaõ os homens dos seus mayores amigos, porque naõ se entendiaõ; e a falta da intelligencia cruelmente trocava em injurias os beneficios, e os obsequios em afrontas.558

557 Rafael BLUTEAU – Prosas Portuguezas, vol. I, p. 224.

558 Rafael BLUTEAU – Prosas Portuguezas, vol. I, p. 7. Leia-se sobre o assunto, Umberto ECO, «A

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No artigo BABEL559, do Vocabulário, também é notória esta influência da tradição bíblica, nas questões em torno da linguagem:

Despois de chegada a obra a certa altura, confundio Deos os espiritos, & as lingoas, & desta confusam lhe veyo o nome de Babel, que quer dizer confusam. 560

Na Dedicatória, Bluteau evoca o Éden e recorre à figura de Adão para evidenciar a superioridade do verbo. As palavras são a etapa que se segue ao humano e natural

Silêncio da Infância. Adão, consignado por Deus para nomear a criação, detém a

harmonia do discurso – essa perfeição monogenética, derrubada pela confusio

linguarum.

Escolher vozes, & acommodar palavras, naõ he improprio à Magestade. A primeyra occupaçaõ do primeyro Rey do mundo foy ver, & considerar, que nomes havia de por ás criaturas. Nesta curiosa nomenclatura gastou Adaõ as primeyras horas do seu governo, Legislador de vocabulos no preludio da vida, compositor do primeyro Diccionario, e neste nobilissimo exercicio, superior a todos os Potentados, seus successores, porque nascendo os Reys na abundancia dos bens da terra, jazem no berço faltos de palavras, & por ley da natureza, obrigados ao Silencio da Infancia. 561

Usar da palavra, nomear, é usar a bondade de Deus que para tal incentivou Adão. O verbo, transmitido pelo académico ao rei, não é adâmico, mas reveste-se da humildade e da perfeição de Deus, agora em movimento inverso, de baixo para cima, do vassalo ao Rei, como do Homem a Deus:

Providencia de Deus chamo eu a esta falta, para que tivessem os pobres, que offerecer aos Princepes. Estava V. M. nas mantilhas da silenciosa idade, quando nos primeyros

559 Note-se sobre este assunto, a influência do jesuíta A. Kircher e da sua obra Turris Babel,

frequentemente citados por Bluteau nas Prosas Portuguezas (leiam-se por exemplo, no vol. I, as pp. 70 e 339) e no Vocabulario (leia-se por exemplo o artigo «Babel», Tomo II, p. 5). Leiam-se ainda outra referências, nas Prosas, sobre o Mundos Subterraneus, v. vol. I, pp. 127 e 136, sobre Musurgia Universalis, v. vol. I, p. 164 e vol. II, p. 174, sobre Kircher no geral, v. vol. I, pp. 70 e 339.

560 Rafael BLUTEAU – Vocabulario portuguez, e latino…, Tomo II, p. 5 (BABEL).

561 Rafael BLUTEAU – «Dedicatória», Vocabulario portuguez, e latino…, Tomo I, p. III. Cf. a passagem

173 tomos deste Vocabulario, ajuntava a minha curiosidade palavras, que na bocca de V. M. se haviaõ de converter em oraculos […]562

No princípio é o verbo, seja ele «imanente», seja ele «proferido».563 O primeiro é eterno, divino. O segundo é emitido, humano, representa o diálogo cíclico da criação. Ambos, quer o verbo gerador quer o verbo gerado, são originados pelo silêncio.

[…] (e o mesmo acontece com o mito bíblico da génese), é sempre através do pensamento sem palavras, isto é, do silêncio enquanto força cosmogónica primordial (matricial) que todas as coisas são criadas. 564

A palavra divina565 (perfeita) e a palavra adâmica (idílica) ainda dialogam com o silêncio. É somente a partir da rutura da palavra com o silêncio que se processa a Queda. Ao parafrasear Plíneo, Rafael Bluteau anuncia esta pós-“Idade dourada”, marcada pela mentira, comparada significativamente a um erro cirúrgico, um corte da veia da verdade, o canal de ligação entre o coração e a língua:

MENTIRA. […] * Vicio, cruelmente introduzido no Mundo pela conveniencia; segundo escreve Plinio, do coraçaõ para a lingua, fez a natureza passar huma vea, para que em favor da verdade estas duas partes se unissem. Passada a Idade dourada, o Interesse, pessimo Cirurgiaõ, cortou esta vea, e acabou a correspondencia do coraçaõ com a lingua.566

Assim nasce a palavra falsa, projeção da realidade ruidosa. Para trás fica a palavra verdadeira, num tempo perdido, mas fiel ao silêncio inicial: «La parole véridique est enchâssée dans le silence, son sens est recueilli d’un silence originel dont

562 Rafael BLUTEAU – «Dedicatória», Vocabulario portuguez, e latino…, Tomo I, pp. III-IV.

563 Segundo Teófilo de Antióquia. Ver sobre este assunto, Léon-Dufour, 1988, p. 48 (apud Ione Marisa

MENEGOLLA, A Linguagem do Silêncio, p. 25).

564 Carlos Fonseca Clamote CARRETO – Figuras do Silêncio: Do Inter/Dito à Emergência da Palavra

no Texto Medieval, p. 279.

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Representada na Sagrada Escritura: «…é uma Obra Inspirada, denominada canônica. Ela é sagrada, perfeita, por ter sido dita pelo Verbo de Deus». (Ione Marisa MENEGOLLA, A Linguagem do Silêncio, p. 53).

566 Rafael BLUTEAU – «Vocabulario de Synonimos, e Phrases…», Vocabulario Portuguez e Latino…,

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elle n’est que l’interprète.» 567

Essa palavra verdadeira, e para sempre perdida, é substituída pela palavra falsa que resulta da mentira de Adão e do fracasso de Babel. Babel representará assim uma espécie de “pecado original” da palavra.568

Na tradição bíblica, a alternância da palavra, símbolo da imperfeição humana, é desde logo sentida no episódio da nomeação, como ato perfeito que logo se precipita para a queda. Para Carlos Carreto a nomeação de Adão traduz-se numa espada de Dâmocles (palavra/silêncio) que o homem, para sempre caído, imperfeito, terá de reequilibrar da melhor forma possível:

Este apagamento da palavra […] não é evidentemente a marca de uma deficiência da linguagem, mas o signo inatingível da sabedoria, da proximidade a Deus e de um saber transcendental. Neste sentido, o privilégio concedido ao primeiro homem transforma-se numa espécie de espada de Dâmocles: permite, decerto, o conhecimento, mas este conhecimento ficará doravante dependente das contingências dos seus significantes. […] Na alternância palavra/silêncio no seio da linguagem, pode agora ler-se o signo da imperfeição, que o homem, na impossibilidade de regressar às origens absolutas, deverá gerir da forma mais equilibrada e harmoniosa possível.569

Também para Bluteau a palavra divina, completa e perfeita, incentiva, por completude e antagonismo, o que é incompleto/imperfeito: a palavra do homem, ao mesmo tempo que a critica:

[…] à nossa indiscreta curiosidade devemos attribuir a ignorancia, em que estamos das infinitas elegancias, argucias, delicadezas, harmonias, e consonancias da palavra Divina no texto, e versoens da Biblia, porque naõ cançamos o juizo na investigaçaõ dellas, e só em frivolas especulaçoens empregamos a nossa perspicacia […]570

567 Joseph RASSAM – Le silence comme introduction a la métaphysique, p. 33. 568 Cf. (Gn 3, 6).

569 Carlos Fonseca Clamote CARRETO – Figuras do Silêncio: Do Inter/Dito à Emergência da Palavra

no Texto Medieval, pp. 438-9.

570 Rafael BLUTEAU – Prosas Portuguezas, vol. I, pp. 376-7. Como afirma o jesuíta Marc Bonnyers,

«l’alliage de la parole et du silence est typique de l’homme et manifeste un esprit imparfait», reforçando assim a união imperfeita do verbo humano. (Marc BONNYERS, “Le silence”, Revue ascétique et mystique, (Outubro, 1950), p. 290). Por sua vez, o verbo divino manifesta a união perfeita entre o silêncio e palavra, como refere Louis Lavelle: «la Parole de Dieu à laquelle il ne manque rien et qui est une révélation totale, ne se distingue-t-elle pas du parfait silence» (Louis LAVELLE – La parole et l’écriture, p. 130).

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Em suma, o silêncio divino gera a palavra humana. Isto é, existe uma palavra capaz de originar todos os livros do mundo e por isso envolta numa dinâmica entre unidade e pluralidade, gramaticalmente visível na alternância singular/plural.

Em hum só livro deu esta palavra materia para todos os livros. Este livro he o Mundo, em cuja consideraçaõ, e liçaõ fundaraõ os Authores tudo o que escreveraõ dos Ceos, dos Astros, dos elementos, dos mixtos, das creaturas, que caminhaõ, nadaõ, voaõ, e andaõ de rojo; e como neste mesmo livro ha principios fundamentaes de todas as Sciencias. […] Fysica […] Metaphysica […] Geometria […] Musica […] Optica […] Medicina […] Arithemetica na creaçaõ do Mundo […]571

O verbo criador, o espírito puro de Deus, é a palavra perfeita. A esta corresponde um silêncio perfeito, porque ao contrário do que acontece na palavra do homem, este não tem limites, apenas luz e verdade. Para Joseph Rassam, este género de silêncio iluminante representa o mistério da palavra, uma luz/fonte inesgotável, mas cuja explicação/nascente permanece inacessível ao homem: «le silence est ce mystère de l’être où toute parole puise sa lumière, mais qu’aucune parole humaine ne peut épuiser».572 Tudo porque esta luminosidade misteriosa, esse silêncio interior da cada palavra, pertence ao verbo divino, ao transcendente. Só este silêncio se comporta como um astro iluminante, capaz de brilhar com a sua luz própria, contrário ao silêncio da palavra do homem, o astro iluminado, lembrando Bluteau que, estas «e outras representaçoens saõ da sua ineffavel perfeiçaõ imperfeitos reflexos»573. Como acrescenta Joseph Rassam, o homem «n’est pas à lui-même sa propre lumière, comme sa parole n’est pas à elle-même son propre fondement».574

Essa luz que ambos, homem e palavra, buscam no interior de si mesmos, conserva-se afinal no carácter inefável da palavra, no que não pode ser dito e queremos dizer:

571 Rafael BLUTEAU – Prosas Portuguezas, vol. I, p. XII. A inferioridade ou insuficiência da palavra do

homem distancia-o e aproxima-o da palavra de Deus, detentora do conhecimento total (enciclopédico): «A vós, infinitamente prodigiosa palavra, convem, que se dediquem todos os livros, e todas as palavras, porque sois palavra, em que toda a sabedoria se encerra.» (Rafael BLUTEAU, Prosas Portuguezas, vol. I, p. IX).

572 Joseph RASSAM – Le silence comme introduction a la métaphysique, pp. 35-6. 573 Rafael BLUTEAU – Prosas Portuguezas, vol. I, pp. 221-2.

176 […] la parole retrouve, en même temps que sa limite, le principe même de sa lumière. Ainsi l’unité du silence et de la parole exprime le sens du mystère qui définit l’homme. 575

Porém, se maioritariamente estamos perante um Bluteau que baseia as suas explicações na tradição bíblica, nem tudo é para ele resultado da intervenção divina. É o caso, por exemplo, da diversidade linguística, vista como um processo gradativo, em constante movimento, influenciado por fatores históricos, culturais e religiosos. Bluteau sabe que a hipótese da divisão em 72 línguas após Babel é estática e insustentável cientificamente, pela experiência documental:

Na minha opiniaõ ninguem até agora soube quantas linguas ha no Mundo; nem creyo, que daqui em diante se saberá o numero dellas, principalmente depois que pelas noticias do Brasil, dadas à luz pelo Padre Simaõ de Vasconcellos, da Companhia de Jesus, sabemos que só nas prayas do Rio Amazonas, se fallaõ mais cento e cincoenta differentes linguagens, e essas (segunda affirma o Padre António Vieira) taõ diversas entre si, como a nossa, e a Grega. 576

Com efeito Bluteau, mais do que uma interpretação literal da Bíblia, busca interpretação metafórica e analógica em que cada momento e cada noção parecem reviver o discurso mítico-religioso: do Éden ao Apocalipse, do Apocalipse ao novo Éden. Da perfeição inconsciente à imperfeição consciente e desta à busca daquela.

No caso, Bluteau parece seguir um percurso idêntico, desde logo intelectual e político, da imperfeição para a perfeição. O rei, nascido nessa silenciosa idade, ou num estado imperfeito, terá o dever de se aperfeiçoar através da palavra. Este caminho revela-se por isso contrário ao momento idílico da criação (verbo perfeito) que termina no episódio babélico (verbo imperfeito). Ou não fosse a infância definida, por Bluteau, como a «Idade, assim chamada do Latim Infans, porque no principio della naõ tem a criança uso de fallar.»577

575 Joseph RASSAM – Le silence comme introduction a la métaphysique, p. 15. 576 Rafael BLUTEAU – Prosas Portuguezas, vol. I, p. 379.

577

Rafael BLUTEAU – «Vocabulario de Synonimos, e Phrases…», Vocabulario Portuguez e Latino…, Supp. II, p. 212 (INFANCIA). Confunde-se por vezes o efeito renovador do Vocabulario com o seu autor. Monterroio Mascarenhas compara Bluteau a um tempo do amanhecer, momento de luta entre luz e sombra: «Quem nam dirá, que foy reputado por Sol entre tanto Astro brilhante daquella esféra literária? He o Sol entre tanto Astro o que he só capaz de decipar os horrores das trevas. Brilhar na escuridam, he

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Contudo, convém sublinhar que esse silêncio, apenas inicial, da infância, apesar de (im)perfeito, pela ausência da palavra, não deixará nunca de ser «essa utópica "tábua rasa", límpida e profunda, onde tudo pode e deve ser inscrito.» 578 Na imagem de Rafael Bluteau, o ignorante, o tabula rasa, necessita tanto de ideias e conhecimentos, como a tábua do pintor precisa das cores/tintas:

TABULA RASA. Da sentença latina, que diz, Homo nascitur, tanquam Tabula rasa, in qua nihil est depictum, se originou o dizermos de hum ignorante, he hum Tabula rasa; porque assim como na taboa do Pintor, antes de aparelhada, & se assentarem as cores, não ha nada que ver, assim na cabeça do ignorante não ha idéas, nem noticias de sciencia algua.579