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3 FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA O ESTUDO DA INTERTEXTUALIDADE E

3.2 A Intertextualidade

3.2.1 Bakhtin: palavra, dialogismo e discurso alheio

Inserida em algum contexto sociocultural, a palavra21 é texto, enunciado a

serviço da interação social. Com essa convicção, Bakhtin sobrelevou o prestígio do conceito de texto, sem o qual não haveria as misturas intertextuais. Em forma de apontamento, Bakhtin (2011, p. 307) fala sobre “O texto ‘subentendido’”; por outros termos, sob a superfície do texto, outros textos, outros discursos disputam espaço. É palavra-enunciado ou a própria dinâmica das relações dialógicas da linguagem de que jamais alcançamos o limite:

A palavra não é um objeto, mas um meio constantemente ativo, constantemente mutável de comunicação dialógica. Ela nunca basta a uma consciência, a uma voz. Sua vida está na passagem de boca em boca, de um contexto para outro, de um grupo social para outro, de uma geração para outra. Nesse processo ela não perde o seu caminho nem pode libertar-se até o fim do poder daqueles contextos concretos que integrou. (BAKHTIN, 2018, p. 232).

O dialogismo, premissa máxima do pensamento bakhtiniano, é inerente a toda atividade com a linguagem humana, pois tudo o que se diz implica, em alguma medida, o outro. Potencialmente, esse outro é solicitado a manifestar-se diante do enunciado de um locutor igualmente dialógico, pois “[...] toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante”. (BAKHTIN, 2011, p. 271).

Essa “posição responsiva” é que constrói o texto-enunciado. Não se pode escapar dos efeitos da palavra em ação. Nessa dinamicidade, a dialética revolve os propósitos latentes nos enunciados, porque nestes se enfrentam seres inscritos no fazer histórico, satisfeitos ou insatisfeitos com o ponto de vista alheio. Este embate da palavra nos recorda outra passagem bakhtiniana, definitiva para o entendimento do conceito de texto, por consequência, de intertextualidade: “[...] São pensamentos

20 As autorias relativas ao Círculo de Bakhtin serão tratadas da seguinte forma: usamos “Bakhtin”,

quando citamos Problemas da poética de Dostoiévski, Os gêneros do discurso e Estética da Criação

verbal; “Volóchinov”, quando citamos Marxismo e filosofia da linguagem.

21 “Palavra [...] tem um significado amplo, que compreende desde a unidade lexical até a ‘linguagem

sobre pensamentos, vivências das vivências, palavras sobre palavras, textos sobre textos”. (BAKHTIN, 2011, p. 307).

Se o texto constitui esse potencial de sobreposições (“palavras sobre palavras, textos sobre textos”), cabe ao analista investigar quais ideias, quais vivências, quais palavras ou textos (materialmente falando) foram arregimentados para a construção do texto autoral tendendo a certos efeitos. A quem pertencem as palavras e que papéis assumem no novo ambiente? Isso é intertextualidade.

As relações (materiais) entre enunciados constituem vozes em ação no texto- enunciado. Para justificar os pontos de vista, essa ação envolve questões de memória: defendido em alguma esfera do saber, um discurso é materialmente retomado na formação de outro discurso. Essa dinâmica eleva o conceito de intertextualidade22 ao

status de uma relação dialógica materializada nos textos. Noutros termos, é interdiscursiva a relação dialógica entendida como relação de sentidos, reservando- se o termo intertextualidade “[...] apenas para os casos em que a relação discursiva é materializada em textos” (FIORIN, 2006, p. 181). Dito isso, é oportuno lembrar que Charaudeau converge para Bakhtin quanto à força dialógica da voz situada:

A situação da comunicação é a situação na qual os atores (pelo menos dois) se comunicam, ou seja, eles trocam propósitos com o interesse de alcançar um certo entendimento, e cujo significado depende, por um lado, das condições em que a troca ocorre. (CHARAUDEAU, 2006, p. 2, tradução nossa).23

Outro ponto alto do dialogismo bakhtiniano é o discurso alheio. Sabemos que a palavra em uso nos chega manipulada pelos diversos pontos de vista circulantes nas diferentes esferas e culturas no decorrer no tempo. Certamente essa palavra é, simultaneamente, nossa e da coletividade e esse intercâmbio se materializa com muita força na reprodução do discurso relatado:

O discurso alheio é concebido pelo falante como um enunciado de outro sujeito, em princípio totalmente autônomo, finalizado do ponto de vista da construção e fora do contexto em questão. É justamente dessa existência independente que o discurso alheio é transferido para o contexto autoral, mantendo ao mesmo tempo o seu conteúdo objetivo e ao menos rudimentos

22 O conceito de intertextualidade foi criado e divulgado pela filósofa e crítica literária francesa Julia

Kristeva. Sobre o assunto confira o capítulo 7 de “Introdução à semanálise”, A palavra, o Diálogo e

o Romance (KRISTEVA, 2012, p. 139).

23 “La situación de comunicación es la situación en la cual se encuentran los actores (dos al menos)

que comunican, es decir que intercambian propósitos con el interés de lograr una cierta inter comprensión, y cuyo sentido depende, por una parte, de las condiciones en las cuales se realiza el intercambio”.

da sua integridade linguística e da independência construtiva inicial. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 250).

Mais adiante, Volóchinov (2017) discorre sobre a percepção avaliativa do enunciado alheio enfatizando o contato do discurso interior com o discurso exterior:

Tudo que há de essencial na percepção avaliativa do enunciado alheio, tudo que pode ter alguma significação ideológica se expressa no material do discurso interior. O enunciado alheio é percebido não por um ser mudo, que não sabe falar, mas por um ser humano repleto de palavras interiores. Todas as suas vivências – o assim chamado fundo de apercepção – são dadas na linguagem do seu discurso interior e é apenas assim que elas entram em contato com o discurso exterior percebido. É no contexto desse discurso interior que ocorre a percepção do enunciado alheio, a sua compreensão e avaliação, isto é, a orientação ativa do falante. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 254). Na primeira citação, Volóchinov faz ver como é construído o discurso autoral: há sempre uma referência, o enunciado do outro, espécie de “combustível” com o qual é possível pôr a língua em novo curso. São outras vozes à espera de uma voz que delas lançam mão para revigorar o enunciado atual. Como falantes socialmente situados, nos favorecemos da linguagem, mas uma linguagem incompleta; o outro é a “completude” da nossa voz. Por exemplo, o outro está presente em um enunciado como o que segue, cujo ponto de vista dialoga com o ponto de vista do produtor do texto em que aparece e outros pontos de vista registrados na história sobre o mesmo assunto:

‘Gerações inteiras nos Estados Unidos e em muitos outros lugares do mundo não viram nem nunca verão a Via Láctea. É triste, porque grande parte de nossa conexão com o Cosmo foi perdida’, lastima Chris Elvidge, um dos coautores do atlas e pesquisador Centro Nacional de Informações Ambientais da Administração Nacional para Oceanos e Atmosfera dos EUA (NOAA). (anexo b – 5-6).

Em termos bakhtinianos, este fragmento é obra de outra autoria, o que lhe dá o tom de autonomia. Mas no texto em que está inserido torna-se parte dele para servir às urgências do contexto autoral. O enunciado transposto se desgarra de sua “originalidade” e se agrega a uma realidade em andamento, devendo adaptar-se ao projeto proposto de antemão.

Na segunda citação, Volóchinov molda o olhar de quem busca o outro numa dinâmica dialógica do discurso. Assim, ao dirigir-se à palavra alheia, as pessoas não o fazem de forma neutra, não a transmutam para o seu discurso ingenuamente, mas

sempre munidas de suas próprias experiências, o que quer dizer que nós construímos as palavras e por elas somos construídos.

No excerto da notícia, as vozes também são forjadas no discurso interior com discursos anteriormente produzidos, numa avaliação constante. Por consequência, astrônomos, cientistas, poetas e pintores se manifestam sobre a Via Láctea, mas a experiência os faz sentir diferentemente o mesmo fenômeno.

É o que também aconteceu quando o jornalista retomou informações colhidas em outra fonte, como a que segue, avaliada como verdadeira, correta e importante para o leitor formar sua opinião, já que resultados estatísticos24 são recursos bem

aceitos pelo leitor de divulgação midiática:

O estudo publicado com o atlas também mostrou que mais de 80% da humanidade está exposto a um nível relativamente alto de poluição luminosa. Cerca de 14% das pessoas vivem em cidades extremamente iluminadas — com brilho do céu equivalente ou acima de 3 mil mcd/m² (microcandela por metro quadrado) —, que, ao longo dos anos, seus olhos perdem a visão escotópica, que é, basicamente, a ‘habilidade’ de enxergar no escuro. (anexo b - 15-16).

Ao final da notícia, o autor avaliou, de forma pessimista, o que acabara de informar:

Logo, para aqueles que sonham em observar as estrelas a olho nu, as notícias não são nada boas. (anexo b – 18).

Essa informação é cabível à medida que em DCM a construção do texto se serve sobejamente dos enunciados alheios explícitos. E a nossa pesquisa leva em conta essa “montagem” de discursos, o que nos obriga a retomar, em tom de desfecho, a voz de um estudioso de Bakhtin, Ponzio (2012), para nos servir de prova e estímulo do trabalho da intertextualidade:

Falar, tanto na sua forma escrita como na oral, significa empregar peças que se obtêm desmontando discursos alheios, e essas peças não são as mesmas da dupla articulação da linguagem (fonemas e morfemas), não pertencem à língua como sistema abstrato, mas a discursos concretos, ligados a contextos situacionais e linguísticos concretos. São materiais já manipulados, e, como tais, no plano semântico não são somente semantemas25, mas também

24 Referimo-nos à restrição de seriedade. (CHARAUDEAU, 2016, p. 555). 25Semantema... (2020).

ideologemas26; não têm só um significado geral, mas também um sentido

ideológico preciso. (PONZIO, 2012, p. 102, grifo do autor). E mais adiante,

Todo texto, escrito ou oral, está conectado dialogicamente com outros textos. Está pensado em consideração a outros possíveis textos que este pode produzir; antecipa possíveis respostas, objeções, e se orienta em direção a textos anteriormente produzidos, aos que aludem, replicam, refutam ou buscam apoio, aos que congregam, analisam etc. (PONZIO, 2012, p. 102). Em conformidade com Ponzio, este trabalho vincula-se ao “desmonte” dos discursos alheios, concretos e situados, como a divulgação midiática da Revista Galileu online.

Após essa passagem pelo dialogismo bakhtiniano, convém apresentar o conceito de textualidade.