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II APRESENTAÇÃO DO ESTUDO

1. Balanço da problemática

As artes e comemorações tradicionais ocupam na cultura o papel de mostruários. Não apenas de um saber local, mas dum estilo de vida em constante mudança. Para estudar a relação de ajustamento entre a memória e o espaço, i. e., o lugar de memória, temos de ter em conta a sua natureza muito própria. O lugar de memória é o “locus com sentido”, que se transforma em referência de dada cultura desde que possua uma posição de destaque na paisagem ou no discurso. Ele refere-se às práticas diferenciadas e substantivas, aos espaços e às representações.

Para que o lugar de memória se apresente como um “lugar com sentido”, é necessário que o sentido lhe seja atribuído socialmente e que este seja tomado como socialmente possível, i.e, que seja passível de ser trabalhado pela mente e transformado numa espécie de quantum cultural (como se se tratasse de uma unidade mínima da cultura, ou representação). Ora, como vimos, as coisas são transformadas em representações após um primeiro tratamento social das suas características (que assim assumem o estatuto metonímico de signos, ou objectos mentais). Para serem constituídas como referências de identidade, devem aceder a um nível de formulação de destaque na gramática social rotineira, passando a representar algo, adquirindo, dessa maneira, o seu sentido entre outras

72 Em relação às representações artísticas relacionadas com o nível profundo da cultura, ver especialmente: Bastos, José Gabriel P. (1997), “O conceito de representação. Uma abordagem antropopsicanalítica”, Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 10, pp. 51-75; Lima, Mesquitela (1997), “Tentativa de construção de um modelo (teórico) para análises sócio-antropológicas em literatura oral, popular e tradicional”, id., ibid., pp. 201-231; Vieira, António Bracinha (1997), “Representação e símbolo na arte parietal paleolítica”, ibid., pp. 391-413; Rodrigues, Maria C. Monteiro (1997), “A representação do conhecimento no discurso arqueológico: exemplo de um baixo relevo mitraico”, id., pp. 451-463; Casal, A. Yañez (1994), “Arqueologia, Antropologia e Património”, Ethnologia, 1,2, pp. 11-22; Greenwood, Davyd (1989), “Uma perspectiva antropológica do turismo como mercadoria cultural”, In Smith, Valene (Org.) Hosts & Guests –The Anthropology of Tourism, pp. 171-185, Philadelphia, University of Pennsylvania Press (trad. nossa); Deitch, Lewis (1989), “O impacto do turismo nas artes e no artesanato dos índios do Sudoeste do Estados Unidos”, id., pp. 223-235 (trad. nossa). Em relação às comemorações, ver sobretudo os trabalhos da antropologia do turismo, que reconheceram a importância das mesmas como formas de apresentação da cultura autóctone (identidade cultural) aos turistas, especialmente os trabalhos de McKean, Philip F. (1989), “Para uma análise teórica do turismo: dualismo económico e involução cultural no Bali”, ibid., pp. 119-138 (trad. nossa); Crystal, Eric, “O Turismo em Toraja”, id., ibid., pp. 139-168 (trad. nossa).

coisas que possuem já sentido. Os lugares de memória adquirem, portanto, uma forma material e/ou mental e formalizam, em conjunto, temas e cenários de referência, sem os quais a cultura nem sequer é possível de ser concebida.73

Quaisquer que sejam os tipos de interacções implicados no processo de identificação que se estabelece primariamente entre o homem e o meio, eles parecem derivar do problema que se pôs logo no início desta introdução, a recordar, o da maior ou menor conformidade entre as coisas e as suas representações mentais. A primeira consequência da tentativa de saber que função desempenha o espaço na identidade cultural é a aceitação de que ele condiciona a maneira como a cultura é construída pelos grupos que, ao o ocuparem, classificam-no, distinguem-no e valorizam-no consoante a importância que ele adquire no seu dia a dia. O trabalho de classificação do espaço físico mediante critérios geológicos e topológicos74 foi mesmo o responsável original pelo usufruto

dos benefícios que certos sítios inicialmente ofereciam à vivência humana. Foi com base no proto- conhecimento dessas vantagens geográficas que o homem se distribuiu inicialmente pelo meio, quer reconhecendo a abundância de caça e frutos em determinados locais, no Paleolítico, quer considerando as vantagens dos terrenos férteis dos vales, no Neolítico. Assim sendo, o espaço e a mente sempre estiveram em conformidade, facto que está bem patente na própria hominização; quer esta derive da lenta adaptação a uma postura erecta para defesa dos animais predadores na savana africana, quer derive dum lento processo de adaptação às exigências dos meios aquáticos dos Grandes Lagos africanos, onde provavelmente o homem iria pescar, quer ainda proporcione uma maior resistência às temperaturas escaldantes, fazendo diminuir consideravelmente a superfície

73 Uma referência importante nas artes performativas é o teatro-memória de Goldoni. O cenário é feito com motivos dispersos de acordo com lógicas premeditadas pelos muros e painéis. Os actores associam falas, gestos, posturas e mímicas sugeridas pelos motivos que preenchem o cenário. A nossa imaginação, de acordo com Gianni Rodari (1993), funciona mais ou menos como um jogo de representações, umas sugeridas, outras inventadas, num processo de hiper-actividade da razão que selecciona as referências culturais como se a cultura se apresentasse como um conjunto de cenários.

74 Estes critérios são definidos pela Geografia Humana como determinantes do sítio (local original de implantação das cidades). As características geológicas englobavam a variedade dos elementos necessários à vida, tais como a água, o alimento (que deriva, como se sabe, das características físico-químicas do solo), a presença de minerais de várias espécies, etc.; enquanto as características topológicas referiam a configuração orogénica do terreno, bem como a variedade de elementos geográficos, tais como a consideração das vantagens climáticas de certos sítios em relação a outros.

corporal de exposição à luz solar nas zonas equatoriais.75

Assim como a hominização simboliza o lento processo de integração do homem no mundo, definindo-o como um animal diferente dos outros, não simbolizará também a cultura um lento processo de integração do homem, mas agora na humanidade, definindo-o como um homem diferente dos outros?

À parte estas questões filosóficas, mais próprias da ontologia, aquelas que directamente se relacionam com a finalidade deste trabalho devem, como vimos, dividir-se em dois grandes campos de análise: o estudo da formação do sentimento de pertença, em que se procurará descrever e analisar os elementos da sociabilidade, onde se incluem os modos de inserção social, as solidariedades territoriais e a variação das áreas de diferenças práticas, cujo objectivo é o de se definirem os espaços sociais concretos que compõem o espaço de integração global da aldeia e; a descrição e análise das representações da identidade, procurando-se discernir as modalidades de construção das referências culturais emblemáticas de Carlão, bem como estudar o conteúdo que concede sentido a essas imagens.