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O ESPAÇO SOCIAL

1. O espaço social: algumas considerações prévias

No capítulo anterior vimos como o espaço físico foi apropriado pela população. Vimos também que essa apropriação está directamente relacionada com a formação das instituições sociais, que devem a sua origem à repetição de comportamentos cujo objectivo primário é o suprimento das

necessidades comuns aos indivíduos directamente implicados nesse sentimento de falta.103 A

chamada economia da falta faz com que, por acordo mútuo, um grupo de pessoas, com uma existência sujeita ao mesmo tipo de constrangimentos e com um mínimo de isolamento em relação a

outros grupos, ou mesmo com inimigos comuns,104 defina projectos de acção que assumem a forma

institucional. Os constrangimentos que dificultam a vivência humana revertem, portanto, na noção

de “utilidade pública”105 (ou comum), que pressupõe a cooperação de todos num mesmo projecto,

nascendo assim a norma.

Ora, como acabámos de observar, a norma deriva da repetição, do que é costume acontecer

102 Descola, Philippe “Societies of nature and the nature of society” in Adam Kuper (ed.) Conceptualizing society, Routledge, London and New York 1992, pp. 107-126: 112.

103 Leroi-Gourhan, André “O Gesto e a palavra: memória e ritmos” (vol. 2), Edições 70, Lisboa 1987, pp. 117 e segs.

104 Hugues, Everett “Students culture and perspectives: Lectures on Medical and General Education”, Lawrence Kansas, University of Kansas Law School 1961, pp. 28-29.

(leia-se, o que é convencional). Por seu lado, o costume nada mais é do que uma prática habitual, o que, por lógica, confere ao espaço a dimensão de habitat, um lugar de convivência de indivíduos, que, por força da cristalização dos costumes em códigos de conduta, tornam o uso, por convenção, em lei, nascendo assim o Direito, que vai conferir a cada conjunto de funções um estatuto legislativo específico, atomizando-se assim a uniformidade normativa em especialidades funcionais, que associam determinados espaços físicos a certos grupos sociais especializados. Esta especialização funcional divide o habitat comum do grupo (tomado na sua totalidade) em habitats diferenciados entre si, de modo que os grupos sociais que se localizam nas diferentes secções do espaço adquirem estatutos próprios dentro do grupo social global. A diferenciação funcional leva assim à diferenciação social e faz com que o espaço inicialmente uniforme de torne matizado e internamente contrastivo.

O espaço, classificado de acordo com os princípios da organização social, adquire uma dimensão simbólica, sendo mais construído do que dado.106 Este é, aliás, o pressuposto de que partiu

Greimas para, pela primeira vez lançar a indagação sobre a “natureza” do espaço. Para ele, este é sobretudo uma construção simbólica, regida por uma espécie de semiótica tipológica, uma classificação de significados práticos (ideia corroborada por Pedrut, 1980).

A ideia da construção simbólica do espaço foi explorada por Jean Remy (1984), que lhe acrescentou a hipótese da existência de espaços-redes, “espaços” onde se efectivam relações sociais e se formam comunidades ideativas, assentes no tipo de divisão das actividades desenvolvidas pela comunidade no seu seio.107

Filomena Silvano desenvolve esta questão desmembrando o conceito de espaço até lhe encontrar uma lógica que permita abrir pistas sobre as relações de identidade entre a sociedade e o

106 Esta constatação não choca com a ideia anteriormente defendida segundo a qual o espaço molda o tipo de organização social, apresentando-se como um constrangimento à própria visão do mundo do grupo que o ocupa. A nossa ideia é que o espaço é dado como matéria-prima, sendo transformado pelo homem. Neste ponto, temos de acrescentar a esta dicotomia espaço físico (dado) – espaço social (construído) o elemento comutador corpo, que, ocupando ele também um espaço, é um receptor dos constrangimentos provocados pelo meio e é um emissor de estratégias de minimização desses mesmos constrangimentos. 107 Se as relações sociais tiverem um teor mais político do que económico, o espaço rede tende a ser exclusivo e a ter delimitações precisas do território; se pelo contrário, tiver mais teor económico do que político, os seus limites tendem a alargar-se e fomentar-se-ão aberturas com o exterior.

espaço físico.108 Partindo do pressuposto de que o espaço é construído, a autora defende que ele

pode assumir formas tão díspares umas das outras quanto os fins a que se destina. Para o nosso problema interessa sobretudo a noção de “espaço de pertença”, definido como o lugar onde as classificações se fazem ou por oposição ou por disfunção e que normalmente encerram laços afectivos estritos a uma causa que se tem de adoptar caso se deseje o ingresso, sendo, por isso, o espaço de identificação por excelência.

O “espaço de pertença” reveste-se assim de um carácter representacional, assumindo-se como um espaço figurado que diferencia as sociedades e que estas utilizam para fins práticos, sendo arrumado num esquema mental como um referente grupal de identidade. Podemos então acrescentar que entre os espaços socialmente construídos se delineiam interstícios que se apresentam como os limites do sentido social das práticas sociais verificadas nuns e noutros, admitindo-se deste modo que cada “universo prático” exige um espaço social específico. Assim como Silvano, consideramos o espaço de pertença como um referencial simbólico, verificando-se uma descontinuidade entre os significados das práticas que têm lugar em cada espaço concreto, significados esses que se reflectem na própria linguagerm, que representa as diferenças práticas de acordo com os espaços onde elas se efectivam. É a própria linguagem que se encarrega de definir os próprios limites de cada espaço social, conferindo-lhe um limite simbólico.109

Pierre Bourdieu define o espaço construído socialmente como o “lieu de la coexistence de positions sociales, de points mutuellement exclusifs”, (1997: 155). Para este autor, as posições são coordenadas verificáveis simultaneamente no espaço físico e no espaço social. À duplicidade do espaço corresponde a duplicidade do actor social. Este é, simultaneamente, um indivíduo e um sujeito, projectando-se, por força dessa desdobragem, num espaço físico e num espaço social. “Actor social” é, assim, uma categoria que envolve um ser abstracto e um agente real. O

108 Vide sobretudo “Mobilidade e Enraizamento: as transformações da identidade – um estudo das representações do espaço em Guimarães, Vizela e Santa Eulália”, Lisboa, UNL, 1994a (policopiado).

109 É facil descobrir os tipos de práticas sociais que decorrem em dado espaço social. A nomeação do espaço social relaciona este com o conjunto de práticas e experiências que se espera encontrar. Esta relação representacional entre o espaço e a prática é determinante para que os indivíduos estabeleçam itinerários de acordo com as experiências e práticas que eles querem ter ou executar.

envolvimento do actor social nestas duas dimensões de existência social tem implicações práticas. A prática, tal como foi estudada por Bourdieu, é sempre uma face visível do “habitus”. Ela reveste-se de uma história e reflecte propriedades incorporadas, o que faz com que a existência social do indivíduo passe pela necessidade de ele se aproximar das referências determinadas pelo colectivismo social. Ele é submetido a um processo de socialização em que a singularidade do “eu” é forjada nas e

para as relações sociais.110 Sob esta perspectiva, a socialização funciona como a construção

progressiva de um espaço social, um espaço que compreende de início a apropriação de um espaço físico – devido à necessidade de situar o corpo – e que é definido pela exclusão mútua ou distinção das posições que o constituem, de forma a este espaço representar uma estrutura de justaposição de várias posições sociais (que resultam da identificação do agente social no espaço físico). Segundo Bourdieu, é a partir da localização do corpo no espaço que podemos observar a posição relativa que os actores sociais têm, sendo então possível verificar as posições sociais que os vários agentes assumem em dado contexto social.

Por sua vez, estas posições reflectem os critérios de distinção social que foram sendo incorporados pelos agentes ao longo do processo de socialização que lhes conferiu os hábitos. Estes nada mais são do que os aspectos sociais do corpo, que se apresenta sancionado com regras de

localização social que implicam o conhecimento de certas regras de regência corporal.111 Para que este

processo de inserção dos campos sociais112 seja eficaz é preciso mais do que características e categorias

sociais incorporadas, é necessário compreender o espaço social de forma a desenvolver estratégias de comportamento que resultem em manifestações ou apresentações materiais e imateriais (físicas, sociais e culturais). Segundo Bourdieu o “habitus” em relação com o campo de significação social,

110 (Op. cit.: 161).

111 Este conhecimento resulta de um processo de aprendizagem que reflecte as estruturas sociais e cria no agente o sentimento de inserção num quadro de comportamentos socialmente reconhecido. Jorge Crespo comprovou que as técnicas de regência do corpo evoluem num campo de referências sociais que determinam os comportamentos que são socialmente bons. A força deste campo de referências é sancionado por instrumentos definidos – como as corporações policiais, cujo objectivo fundamental é a orientação do corpo social dentro de trâmites consagrados pelas necessidades de regulação social. A regência do corpo implica, portanto, que os agentes sociais se enquadrem num modelo de organização social que, mais do que simplesmente direccionar os comportamentos de acordo com uma ideologia vigente, determinam a posição dos grupos social dentro do todo social, através da atribuição de insígnias, modos de vestir e de ser que caminham a par com a necessidade de tornar os comportamentos e a localização social como duas faces da mesma moeda (“História do Corpo”, Difel, Lisboa 1990).

emite um sens pratique, uma aptência para a função a desempenhar, resultante da incorporação das estruturas do mundo e dos seus significados.

Face ao que temos vindo a apresentar, podemos concluir que o espaço social (e não apenas o físico) é decisivo na formação da identidade. A sua importância deve-se precisamente aos problemas de localização que provoca ao agente social. Este vai ter de recordar, à medida que se envolve no espaço, o que acumulou na forma de hábito, opondo e comparando a sua experiência com as vicissitudes a que estará sujeito, confrontando a sua arbitrariedade com os espartilhos culturais que se encontram sedimentados nos critérios de localização no espaço social. Estes constrangimentos iniciais de adaptação do agente social ao espaço social, residem num campo de significado, um campo de jogo, - onde se fazem interacções simbólicas de significados - que o agente tem de compreender para então se comportar mediante as suas regras. A esta compreensão Bourdieu chama illusio, uma estratégia simbólica adquirida pelo agente que permite a partilha de significados com os outros agentes sociais; uma sensação de pertença e de partilha com o mundo social que o envolve, um estar

dentro do mundo.113 A localização no espaço social é a construção, pelo corpo, de formas de recordação

das regularidades cristalizadas culturalmente, de modo a proporcionar ao agente a capacidade de antecipação às situações; este trabalho de adequação assenta no uso da memória em sentido projectivo, tornando-a prática (e não apenas contemplativa e regressiva, como defendia Halbwachs). Esta compreensão prática do mundo é resultado da connaissance par corps, portanto do habitus. E é precisamente...

“(…) la notion d’habitus qui restitue à l’agent un pouvoir générateur et unificateur, constructeur et classificateur, tout en rappelant que cette capacité de construire la réalité sociale, elle-même socialement construite, n’est pas celle d’un sujet transcendental, mais celle d’un corps socialisé, investissant dans la pratique des principes organisateurs socialemente construits et acquis au cours d’une expérience sociale située et datée.”114

113 Idem: 163. 114 Ibid.: 164.

Este enquadramento institucional da acção do actor social (ou agente social) no campo do arbitrário individual, valoriza as emoções e desvaloriza a formalidade. Ao contrário da mecanicidade do corpo, existe uma regência do corpo, uma forma-tipo de comportamento mas que admite as personalizações da linguagem institucional, de tal forma que a construção desta deve mais à criação, à invenção, ao desvio, ao esquecimento e improviso, do que ao código, à rigidez e ao formalismo das mensagens institucionais. Por isso, a posição do agente social não depende apenas do quadro e dos agentes exclusivos mas também da sua inteligência, da sua procura das regras do jogo e da sua compreensão (que é uma actividade que compreende um misto de razão “revisionista” com emoção “pulsional”). Sendo assim, illusio e posição social são ambos componentes do espaço social e são uma mistura de comportamento orientado com comportamento arbitrário. Deste modo, a afectividade funciona como um vínculo institucional por excelência, resultando disso aspectos técnicos que também são incluídos como formas significativas de arrumar o espaço e de o orientar.