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O ESPAÇO SOCIAL

2. Os espaços de diferenças práticas e as solidariedades territoriais em Carlão

2.1. O espaço irradiante: perspectiva estática

A percepção do espaço segundo um critério de distância serviu de ponto de apoio para várias investigações levadas a cabo por antropólogos estruturalistas. Estes trabalhos procuravam encontrar a lógica de correspondência existente entre o espaço socialmente concebido e as categorias simbólicas que regiam a racionalidade dos povos que o ocupavam. Esta perspectiva regionalista da cultura entendia o espaço social como um reflexo da matriz conceptual dos grupos sociais, encarando a distinção do mesmo como uma categorização operada da mesma forma que a interpretação dos fenómenos. Com base nestes pressupostos, o espaço de pertença era sobretudo uma construção simbólica, em que aos limites da cultura correspondiam limites de sentido:

“The actor participates in a series of divergent networks, guided not by culturally set values but by “flows of meaning” through various networks of relationships.”118

Este tipo de perspectiva de análise da cultura resulta naquilo a que Maurice Bloch e Philippe Descola denominam sistemas sócio-cósmicos, ou sistemas anímicos (Descola). Um tema central partilhado por ambos, segundo Kuper, é o facto de os...

“(...) folk models integrate conceptions of social relations and conceptions of nature. They [Bloch e Descola] describe folk models which bring together human beings and natural objects

within a single conceptual space.”119

A consideração da existência de uma similaridade na forma de construção da realidade física e da realidade social pode ser demonstrada através dos dois tipos de atitudes humanas perante a natureza e que espelham os tipos de atitudes que o grupo social concreto tem em relação aos seus constituintes, verificando-se, naquelas atitudes, as tensões sociais manifestadas no interior do grupo. Estes dois tipos de atitudes são, assim, metáforas das relações de poder, como referia Handricourt.120

Descola vai mais longe, ao defender que existe uma concordância entre as ideias e as práticas relacionadas com o “eu” e o “Outro” e as ideias e as práticas relacionadas com a natureza. A natureza, i.e., a dimensão não humana da realidade, é tomada como se fosse o “Outro”, sobre o qual são projectados os medos de insegurança sentidos no interior do grupo social.

Estes pressupostos, como referimos, deram origem a trabalhos regionalistas que assentavam na ideia da concordância entre a representação da realidade social e a representação da realidade natural. As implicações de muitos desses trabalhos continuam a propagar-se no campo das análises

da cultura, pelo que achamos conveniente não os ignorar.121 Alguns apontamentos sobre o espaço

carlonense, estudado neste ponto sob a perspectiva regionalista da cultura, conferem, sobretudo, com a ideia da existência de uma consonância entre os limites do espaço aldeão (aí englobado todo o espaço humanizado pelo carlonense) e os limites da representação da identidade.

Assim, a fim de podermos verificar essa consonância (relativa, bem entendido), apresentaremos a divisão social do espaço a partir dos limites do seu termo,122 que, evidentemente,

119 Idem: 11.

120 Handricourt (1962) referia que o homem tinha sobre o meio a) uma acção indirecta negativa (em que se verifica um tratamento brutal das plantas com o objectivo de se dar o lugar a outras) e b) uma acção directa positiva (visível sobretudo em relação aos animais dos quais depende a sobrevivência económica do grupo, criando-se, entre o homem e esses animais um laço de afectividade). Estas atitudes seriam semelhantes às que se têm perante os elementos sociais que impedem a manutenção da estabilidade do grupo e perante os elementos que, ao contrário, são os garantes dessa estabilidade.

121 Ver nota 30, supra.

122 Por “termo” entendemos toda a área cuja exploração é feita directamente pela população da aldeia. Esta área acaba, como é óbvio quando começam a predominar terrenos que pertencem às aldeias que confrontam imediatamente com Carlão. “Predominar”, porque não é objectivamente possível determinar um limite rigoroso de posses territoriais, isto porque alguns terrenos são adquiridos pela aldeia vizinha (por compra ou herança) ou pertencem às duas aldeias (quando se dá o caso dos proprietários serem cônjuges originários de ambas as aldeias. Um trabalho mais profundo sobre a posse da terra seria aqui muito útil, mas, este assunto não é de importância fundamental para a problemática que estamos a debater.

não coincidem com os da freguesia. Além do enquadramento do estudo do termo carlonense nas premissas dos estudos regionalistas da cultura, pretendemos que o mesmo seja analisado sob a perspectiva das divisões funcionais apresentadas no estudo de Brian O’Neill. Esta assimilação metodológica deriva do facto de considerarmos que uma classificação do espaço em zonas concêntricas perfeitamente definidas – tal como foram apresentadas nos estudos clássicos da regionalização cultural – é irreal, não correspondendo à configuração da aldeia. Entendemos, pois, que, ao invés de encontrarmos zonas funcionais concêntricas, encontramos sim uma composição tentacular do espaço, em que a referência acaba por ser principalmente a orientação dos eixos viários, que facilitam o acesso aos terrenos e, por isso, funcionam como conferidores de valor funcional. O espaço social é, portanto, relativamente estático, visto que, a sua utilização de acordo com a referência dos eixos viários combina a sua estaticidade com a mobilidade. Vejamos então como se organiza o espaço social carlonense.

2.1.1. O espaço social: principais configurações, classes e tipos

A diferenciação do espaço da aldeia deve hoje ser entendida com base na definição política

do mesmo.123 Apesar desta nova formalização do espaço, que data dos meados da década de 90,

continua a ser possível definir tipos de espaços, como, aliás, o confirma a existência de tais documentos.

123 Com a introdução dos Planos Directores Municipais, concretamente com a estipulação de Plantas de Ordenamento, o espaço social (e mesmo o natural) é hoje, mais do que nunca, uma construção política – e, por consequência, simbólica, pois que a sua classificação faz-se de acordo com critérios de valorização que confrontam dois tipos de racionalidade: a local e a nacional ou mesmo comunitária. Este aspecto leva-nos a ter de considerar a efectiva importância das políticas culturais (Machaqueiro, 2002), que, ao determinar os critérios de divisão funcional do espaço, estão a condicionar todo um modelo de organização, que tanto pode ser tomado no sentido conservador (como instrumentos de manutenção da arquitectura e organização espacial tradicionais) como no sentido reformista (como instrumentos que impedem a assunção de novas formas de exploração e de ocupação do espaço, o que, afinal, faz parte da evolução “natural” dos modos de organização social). A conservação e a mudança apresentam-se, então, como termos de uma tensionalidade que gera, muitas da vezes, problemas de expansão social (como é o caso dos impedimentos de construção de habitações em terrenos situados fora da aldeia que não possuam 4000 m² – nas áreas que não fazem parte da Reserva Agrícola Nacional –, ou 25000m² – nas Zonas Verdes.

Sendo assim, e utilizando uma nomenclatura que não é conforme à determinada pelos PDM’s, é possível distinguir cinco tipos de espaço consoante a sua utilização (uso diferencial do espaço): o espaço privado, o espaço público, o espaço colectivo, o espaço ritual e o espaço doméstico. Estes cinco tipos de espaço podem ser agrupados em duas configurações principais: a urbana e a rural. Por seguimento, e visto que consideramos como critério de distinção do espaço social as relações problemáticas (ou tensionais – o pathos social) que se organizam em processos de identificação com formas de participação social específicas, dividimos essas configurações em três classes maiores, a saber, o espaço económico, o espaço político e o espaço simbólico. Esta classificação segue as reflexões apresentadas na introdução deste trabalho (pág. 24, supra), segundo as quais os espaços tendem a ser classificados de acordo com a predominância de determinada função, substituindo-se assim a sua fixidez física pela flexibilidade problemática que se engendra no seu seio.

Para correspondermos os tipos de espaço às possibilidades sociais da sua problematização, resolvemos associá-los tendo em referência esta especialização funcional. Assim, a classe de espaços predominantemente económicos agrupa os tipos de espaço privado, colectivo e doméstico; a classe de espaços predominantemente políticos engloba os tipos de espaço público, colectivo e doméstico e; a classe de espaços predominantemente simbólicos é composta pelos tipos colectivo, ritual e doméstico.

Uma das peculiaridades deste modelo é considerar o espaço doméstico como o comutador das ligações entre as manifestações verificadas nos restantes; visto que este, ao funcionar como um espaço de socialização de excelência, condensa as modalidades de manifestações sociais possíveis.

Para melhor se compreender a nossa proposta de análise, apresentamos um diagrama que procura sistematizar as configurações do espaço social, as suas classes e os seus tipos: