• Nenhum resultado encontrado

4. A PLANIFICAÇÃO ECONÔMICA NO SÉCULO XX

4.9 Balanço Histórico do Modelo Soviético

A União Soviética representou uma das maiores experiências sociais da Humanidade, que tentou estruturalmente pela primeira vez abolir a opressão humana e acabar com as distinções de classe. Apesar de suas nobres intenções, a conjuntura material e geopolítica na qual estava inserida, assim como as condições técnicas e a formação ideológica de que dispunha, não permitiram a realização dessas metas. Entretanto, diversos direitos sociais fundamentais foram pela primeira vez elaborados e propostos de maneira enfática por um Estado, ainda que não sejam plenamente efetivados ao longo do seu desenvolvimento histórico pelas próprias contradições expressas acima. Alguns deles, por exemplo, se referem à igualdade incondicional de gênero, raça e nacionalidade, assim como o direito ao lazer e descanso, saúde, educação e aposentadoria – e influenciaram países nos dois lados do mundo bipolarizado.

No âmbito do desenvolvimento econômico, o desempenho material da economia soviética representou a mais rápida e intensa construção de capacidades produtivas já observada na história humana até então. Ainda que haja divergência sobre as cifras precisas, esse fato é inegável pelas realizações técnicas, materiais e militares que demonstrou ser capaz de realizar, principalmente em meados do século XX. Algumas comparações com a economia que era, então, líder mundial são reproduzidas por Wilczynski (1987, p. 71):

Num estudo mais recente, o PNB da URSS de 1976 foi calculado em 50% do PNB dos EUA usando os pesos dos preços soviéticos, e chegaria a 74% se a estrutura de preços dos EUA fosse aplicada. O economista soviético S. Strumilin, aplicando os preços mundiais padronizados para uma certa amostra de bens avaliou a renda nacional da URSS 1962 em 62,8% do total equivalente dos EUA.

Esse desempenho formidável tinha, porém, por contrapartida, uma qualidade de vida relativamente muito inferior para o mesmo nível de renda nacional, devido à quantidade de recursos que eram utilizados em investimentos e na produção de produtos intermediários e matérias-primas a fim de propiciar o crescimento acelerado das capacidades produtivas, de maneira que nunca houve uma transição adequada para que essas capacidades fossem utilizadas em maior proporção para o benefício direto do povo soviético. Essa questão, obviamente, se deve mais a uma hipermetropia temporal relacionada ao risco de invasão estrangeira a fim de encerrar a experiência socialista e também às necessidades de consolidar um sistema econômico que se apresenta como alternativa viável mundialmente, de maneira que requereria desempenhos espetaculares também como forma de propaganda internacional frente à competição global entre blocos econômicos durante a Guerra Fria.

Além disso, parte importante desse desempenho, em especial durante o seu período inicial, ocorreu mediante processos extremamente problemáticos e custosos em termos de vidas humanas, como a coletivização forçada e a intensificação excessiva do trabalho em algumas áreas e setores. As circunstâncias que levaram à adoção dessas políticas estão relacionadas a uma sucessão de erros políticos, mas também das próprias condições pelas quais se podia operar uma transformação tão radical na sociedade soviética a partir do passado imperial e semifeudal russo.

Sem a participação contundente da União Soviética e o heroísmo de seu povo, a Segunda Guerra Mundial seria definitivamente vencida pelos nazifascistas. A utilização da capacidade produtiva e industrial conquistada a duras penas e grandes sacrifícios humanos na década de 1930, foi um fator determinante na própria capacidade de defesa do povo soviético frente à agressão nazista. Sem que isso justifique os meios empregados para atingi-la, porém, destaca-se que a estratégia de industrialização pesada acelerada mostrou-se, mais de uma década após sua elaboração e desenvolvimento, correta em suas intenções de defesa nacional, ainda que seja praticamente impossível considerar os contrafactuais de um desenvolvimento industrial baseado na coletivização voluntária da agricultura.

Muitos dos problemas constatados no Modelo Soviético derivam de três aspectos principais que foram abordados extensamente neste capítulo:

A conjuntura material e geopolítica: como analisado, a União Soviética emerge num contexto de invasão estrangeira e guerra civil, suas relações estão grandemente militarizadas e há um cerco por todos os lados, as sabotagens e tentativas de minar seu desenvolvimento são constantes e variadas. A construção da União Soviética se dá a partir de um Império decadente e com limitado desenvolvimento tecnológico e industrial para a época, sendo considerado periférico no quadro europeu de nações, apesar de poderoso em termos territoriais e populacionais. Posteriormente, a ascensão do nazifascismo tentaria destruir totalmente a existência do Estado soviético e do pensamento comunista, através de um nacionalismo perverso e racista. Durante a Guerra Fria, as necessidades de disputa internacional contra-hegemônica deslocariam gigantescos recursos para uma corrida armamentista, que operou através de guerras proxy141, e uma corrida aeroespacial contra o

141

Em português: guerra por procuração. Fenômeno pelo qual duas potências se digladiam indiretamente através de terceiros, como ocorreu durante a Guerra Fria na península da Coréia, Vietnã, Angola, Moçambique e Afeganistão.

bloco hegemônico capitalista que possuía muito mais recursos e pessoas à sua disposição e exploração, incluídas aí as ditaduras latino-americanas apoiadas pelos EUA142.

As condições técnicas e a formação ideológica: a União Soviética nasce numa época em que não existiam computadores ou calculadoras, dependendo irremediavelmente de lápis, papel e ábacos para calcular seus projetos econômicos em suas primeiras décadas. O transporte e a rede de comunicações herdados do antigo Império Russo também eram precárias e atrasadas, de maneira que as formas de ordenação e supervisão, numa sociedade complexa de milhões de pessoas, tendiam pelas próprias condições técnicas à necessidade de rígidas hierarquias e verticalização. Adicionalmente, a formação ideológica bolchevique é gerada num amplo contexto de militarização e passa por transformações burocratizantes e autoritárias na medida em que se consolida uma forma de Estado altamente centralizado, a despeito das críticas e tentativas de abordar tal problemática em diversas conferências e congressos.

As limitações e dependências em relação ao sistema capitalista global: mesmo que tenha operado profundas transformações na sua estrutura e dinâmica econômica, ainda assim a URSS encontrava-se inserida no sistema capitalista global, dado que o mundo operava majoritariamente sob princípios e relações capitalistas. Sua estratégia de autossuficiência e relativo isolamento, associada à expansão gradual do socialismo a partir de países periféricos assolados pelo imperialismo143, não conseguiu superar historicamente as limitações exercidas pelo funcionamento do mercado mundial, do qual dependeu largamente para seu desenvolvimento industrial. As duas problemáticas referenciadas anteriormente também se articulam a tais limitações, de maneira que no próprio interior da União Soviética não foram superadas consistentemente contradições fundamentais constituintes do modo de produção capitalista no que se refere à dinâmica do valor capitalista, separação entre trabalho intelectual e manual, entre a cidade e o campo, entre outras.

Afinal, a análise do Modelo Soviético, assim como de outros modelos de planificação econômica socialista, é essencial para entender os limites e processos implicados na imensa tarefa de superação do capitalismo, de maneira que constituem inestimáveis fontes de lições e conhecimentos acerca das adversidades revolucionárias e de transição, nas suas dimensões econômicas e políticas. De igual importância é fazer jus ao esforço e intenções dos povos engajados em sua libertação da exploração imperialista e submissão ao capital, de maneira

142

Para uma síntese introdutória a respeito do apoio mútuo entre os Estados Unidos e as ditaduras anticomunistas na América Latina, ver Weeks (2015).

143

que suas experiências nesse campo, mesmo se fracassadas ou problemáticas, sejam estudadas a fim de realizar novas tentativas, mais robustas e conscientes, capazes de efetivamente atingir seus objetivos e metas.

Com tudo isso colocado e entendendo a importância da análise do Modelo Soviético, reforçamos a afirmação de Nove (1987b):

Sim, houve fatores específicos russos ou soviéticos; atraso, ‘desgoverno burocrático’. Mas há lições para aprender, referidas (por exemplo) à escala, a complexidades, os conflitos entre interesses parciais e gerais, os indicadores do cumprimento do plano, os critérios de investimento, os preços na teoria e na prática, os incentivos ao trabalho, as deseconomias de escala na agricultura, a influência das necessidades dos usuários nos planos e no output, o papel da política regional, etcétera. Se bem que as conquistas soviéticas na resolução desses e outros assuntos (incluindo a contaminação ambiental) pode deixar muito a desejar, seria tonto ignorar a experiência soviética a partir da decisão prévia de qualificá-la como “não socialista”. E aqui também estendemos o mesmo para liberais e defensores do capitalismo, que gostam de desqualificar ou ignorar completamente a experiência soviética pelo fato de não aderir aos seus princípios abstratos de uma liberdade negativa144, que sequer poderia ser aderente ao próprio funcionamento do modo de produção capitalista, apenas em sua idealização abstrata como um sistema perfeito de associações e trocas voluntárias, o que tem se mostrado impossível pelas necessidades coercitivas do capital para assegurar sua estabilidade e acesso a recursos, seja através das políticas internas do Estado capitalista ou do imperialismo deste em relação aos Estados capitalistas periféricos, seja através das suas tendências internas de concentração e centralização com vistas à crescente exploração do trabalho. Tais fenômenos concretos são analisados por essas linhas teóricas idealistas como “desvios corporativistas ou estatistas” desse modo de produção, numa argumentação que é ainda pior do que aquela empreendida por socialistas que ignoram os aspectos da tradição socialista vinculados à União Soviética como se fosse mera “deturpação da teoria socialista”.

Com base na experiência soviética145 que foi investigada acima é possível elaborar as seguintes conclusões e lições históricas para movimentos que se proponham a efetivamente superar o capitalismo mercadológico nas condições geopolíticas do século XX, mas que ainda podem ser observadas estruturalmente em 2019:

 O período de fundação e transição inicial possui uma tendência a ser bastante turbulento e sofrer com a ação de elementos desestabilizadores estrangeiros e internos, que procuram defender seus privilégios imperialistas e de classe. O que não implica, necessariamente, que tal turbulência sempre resulte em

144

No sentido de liberdade através da “não interferência” ou “contenção externa”, em oposição à liberdade

positiva defendida pelos socialistas de uma liberdade através do poder efetivo de realização das potencialidades e

escolhas, baseado em condições internas e materiais.

145

catástrofe como ocorreu no início dos Planos Quinquenais. Este fato pode ser observado em praticamente todas as experiências socialistas e anti- imperialistas até o momento.

 A experiência da União Soviética não superou o uso da unidade monetária ou dos mercados, ainda que tenha alterado substancialmente seu funcionamento. Todos os momentos em que houve supressão da moeda e mercados não houve a substituição para uma nova estrutura de sinalização econômica, apenas de simples racionamento geralmente relacionado a expedientes emergenciais (comunismo de guerra, crise agrícola durante o PPQ, etc).

 O horizonte temporal das transformações estruturais necessárias para uma transição plena em direção ao sistema alternativo é, em geral, subestimado no início da experiência revolucionária. O que não implica que é impossível corrigir de antemão as subestimações, considerando intervalos de segurança.  Medidas temporárias e excepcionais, em momento de transição e acirramento

da luta de classes, podem se tornar permanentes e comuns, não apenas no sentido prático de uma dependência do caminho (path dependence), mas também das construções teóricas associadas ao seu desenvolvimento.

 Os primeiros planos e metas estabelecidas tendem a sofrer superestimações do potencial e capacidade existente, até que se acumule experiência suficiente em relação aos ciclos, regularidades, procedimentos e coeficientes técnicos da produção.

 Arranjos políticos e econômicos extremamente centralizados tendem a criar fortes elementos ideológicos, assim como estatísticas e narrativas imprecisas com a finalidade de adequar a realidade aos objetivos almejados. O que é observado tanto em países autodenominados socialistas como em capitalistas 146 , especialmente quando polarizados politicamente ou militarmente.

 O mecanismo das metas de produção em unidades físicas é extremamente sensível à classificação da unidade de medida e demais características do produto, de maneira que podem gerar incentivos extremamente danosos à qualidade e produtividade quando não há um canal de retorno (feedback) eficaz para garantir a adequação da classificação.

146

Ao que se pode recuperar a experiência das economias de guerra ocidentais durante a Segunda Guerra Mundial e as ditaduras latino-americanas que se iniciaram na década de 1960 e 1970.

 O aumento da complexidade econômica e industrial prejudica o funcionamento eficiente dos mecanismos clássicos de planificação econômica, isto é, aqueles que foram plenamente desenvolvidos no Modelo Soviético e analisados ao longo desta seção. Ainda assim, tais mecanismos se mostraram bastante superiores aos mecanismos clássicos de mercado em termos de crescimento e desenvolvimento econômico no médio prazo a partir de bases industriais de menor complexidade.

5. MODELO INTEGRADO DE PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO EFICIENTE