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4. A PLANIFICAÇÃO ECONÔMICA NO SÉCULO XX

4.2 Fundação do Estado Socialista

O período histórico referente à fundação da União Soviética e sua transição baseada na Nova Política Econômica (NEP), que culminaria no sistema de Planos Quinquenais

característicos do Modelo Soviético, pode ser compreendido entre 1917, ano da revolução bolchevique, e 1928, ano de início do Primeiro Plano Quinquenal (PPQ) – ainda que o período de abandono da NEP só esteja realmente completo no início do Segundo Plano Quinquenal (SPQ), em 1933. Como explicado anteriormente, a análise se dará comparando o desenvolvimento histórico e prático ao teórico, de maneira que sejam conectadas diretamente às proposições de política e teoria econômica aos fatos concomitantes.

A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas89 (URSS) foi fundada apenas em 1922, ou seja, cinco anos após a Revolução de Outubro de 1917. Esse período inicial foi perpassado por um grande conflito armado entre o Exército Vermelho e suas forças aliadas contra o Exército Branco czarista-“legalista” com apoio direto e indireto de tropas e recursos estrangeiros de grandes potências capitalistas e pequenas monarquias e repúblicas conservadoras estrangeiras90.

Segundo Lenina Pomeranz (2018a), eminente sovietóloga e economista brasileira, esse primeiro momento91, entre outubro de 1917 e julho de 1918 é caracterizado pela tomada militar e política dos “postos-chave da economia”, assim como a ocupação militar das instituições reguladoras da economia, como o Banco Central. Cria-se também em 15 de dezembro de 1917 o primeiro órgão econômico de planejamento e gestão econômica socialista, o VSNKh (Conselho Superior da Economia Nacional), subordinado ao Sovnarkom (Conselho dos Comissários do Povo), entidade política máxima soviética.

Decreta-se, então, a supervisão operária das empresas, ainda que seja garantida inicialmente sua propriedade privada, através dos Comitês de Empresa, também se procede à nacionalização parcial de empresas industriais, em especial as que já eram estatais, e a nacionalização das terras agricultáveis e sua distribuição aos camponeses. Tais medidas são implementadas pela base nem sempre de acordo com as diretivas estabelecidas, resultando em distribuições de terra pelos próprios camponeses e a tomada da direção de diversas empresas pelos operários. Neste momento determinante, onde cada decisão poderia significar o fracasso imediato da revolução, há uma certa medida de cautela a fim de evitar que uma “greve geral

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As quatro primeiras repúblicas a ratificar a União foram: República Socialista Federativa Soviética da Rússia; República Socialista Soviética da Ucrânia; República Socialista Soviética da Bielorrússia; República Socialista Federativa Soviética Transcaucasiana.

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Nesta lista consta uma complexa relação de potências imperialistas como a Grã-bretanha, França, Estados Unidos, Alemanha e Japão. Assim como outros países menores do leste europeu e alguns movimentos pró- independência de regiões da Rússia Imperial. O apoio dado por cada um desses varia enormemente, sendo um interessante objeto de estudo tático-militar, uma vez que se trata de condições extremamente adversas de guerra civil mesclada com intervenção estrangeira em vários fronts.

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Os quatro parágrafos seguintes se baseiam em uma prévia de capítulo disponível online para o livro “Do socialismo soviético ao capitalismo russo” de Lenina Pomeranz, lançado ano passado (2018).

do capital” sufoque os esforços revolucionários, dessa forma Lênin e a maioria dos bolcheviques estabelecem acordos com capitalistas e recorrem aos especialistas burgueses, que são integrados ao VSNKh, para que no início do processo não haja uma quebra radical dos processos econômicos de produção. O ambiente caótico das nacionalizações operadas pela base (operária e camponesa) só é contido em abril de 1918, quando o VSNKh além de proibi-las sem prévia autorização, também ameaça retaliações financeiras caso descumprido.

O principal objetivo mais amplo neste primeiro momento refere-se à política externa, que visava a retirada da Rússia da Primeira Guerra Mundial. De início seu Decreto da Paz, no qual conclama os estados beligerantes e suas respectivas classes trabalhadoras a abandonar o conflito é recebido com hostilidade pelas forças aliadas do antigo Império Russo, a Grã- Bretanha e a França, que de imediato já enviam suporte material e financeiro às forças do Exército Branco. A paz em relação à guerra imperialista só é efetivamente estabelecida após o tratado de Brest-Litovsk, que acarretou a perda dos territórios ocidentais do antigo império russo e aumentou a influência alemã na região do Báltico e Ucrânia. Ainda assim, prossegue- se os confrontos militares relacionados à guerra civil e à intervenção estrangeira.

A seguir é apresentado um mapa, em inglês92, relacionado à situação inicial da guerra revolucionária, de maneira que é possível perceber a gravidade da situação militar marítima e terrestre, assim como os fronts e direções das invasões estrangeiras (setas verdes) e das forças do Exército Branco (setas cinza-azulado). Também se tem ideia das cidades onde ocorreram os levantes bolcheviques revolucionários e a sua estratégia de contra ataque.

Extraído de: Ruiz-díaz (2019), Russian Civil War.

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O primeiro modelo econômico estabelecido pelos soviéticos veio a ser conhecido como “comunismo de guerra” e não foi um modelo previsto, porém requisitado pela conjuntura material do conflito. Seu principal objetivo era garantir o suprimento às tropas do Exército Vermelho, para que este pudesse vencer as batalhas militares e assegurar os territórios e a ordem do que viria a constituir a URSS.

Neste primeiro momento, o foco da política econômica se trata de garantir o acesso e posse das terras cultiváveis à massa dos camponeses através de expropriações dos grandes proprietários rurais, do Estado (czarista) e da Igreja que detinham cerca de 40% de toda superfície considerada cultivável em 1916. A distribuição das terras, porém, ainda é baseada no cultivo individual, pois até então os bolcheviques não tinham muito sucesso ou experiência nas culturas coletivas (BETTELHEIM, 1976b, p. 195-196).

A preocupação de integrar as massas camponesas à revolução soviética é essencial para a vitória desta fase inicial na medida em que a tomada do poder se deu principalmente nas camadas sociais dos centros urbanos93, sendo eminentemente proletária. As políticas iniciais dos bolcheviques procuravam forjar o que viria a ser uma “aliança operário- camponesa”, neste estágio se tratava principalmente de garantir uma estrutura política própria aos camponeses, através dos chamados “comitês camponeses”, assim como integrar ativamente o campesinato ao esforço de guerra contra as forças reacionárias e imperialistas.

Se este início parece traumático o suficiente, na medida em que a guerra se desenvolvia e importantes vitórias94 eram conquistadas pelo Exército Vermelho, o cenário internacional rapidamente se deteriorava. As tentativas fracassadas de revolução na Alemanha em 1918 e 1919, assim como o fracasso na mobilização do operariado polonês e o avanço do fascismo na Itália, impuseram um isolamento internacional desde o início, prejudicando seriamente as perspectivas de uma rápida revolução mundial, o que resultou na consolidação de um cerco aos sovietes por todos os lados: ocidental-europeu, no oriente médio e no extremo-oriente (REIS FILHO, 1983, p. 10).

Do ponto de vista da gestão monetária e econômica, o comunismo de guerra foi um período de ampla desestruturação das relações mercantis e hiperinflação, tanto pela situação de guerra como da própria formação ideológica bolchevique, que neste período incipiente já propugnava uma passagem direta ao socialismo, dessa maneira os cálculos do setor estatal eram feitos diretamente em espécie e a política monetária era expansionista sem qualquer

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Em especial São Petesburgo, então capital do império russo, que sob o nome de Petrogrado seria a sede do principal soviete.

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lastro95, o dinheiro foi sendo substituído no pagamento de salários e soldos por rações e serviços gratuitos (NOVE, 1992, p. 58-60), relata-se que:

Quando se provou impossível estabilizar a moeda e uma economia centralizada de comunismo de guerra começou a ser estabelecida, as advertências anteriores sobre os perigos de uma rápida transição a um sistema sem dinheiro eram escutadas com menos frequência. Foram espalhadas notícias de que o sistema da guerra civil de completa propriedade estatal e a abolição do mercado era o socialismo completo de Marx e Engels, e que o dinheiro era, portanto, um anacronismo. Esta visão foi reforçada pela inflação que parecia, em qualquer caso, tornar inevitável a abolição do dinheiro. (NOVE, 1992, tradução nossa)

Nesse sentido, a fase do comunismo de guerra foi caracterizada pelas requisições forçadas de produtos alimentícios (Prodrazvyorstka). Essa política foi delimitada principalmente no VII Congresso do Partido Bolchevique, e estabelecia a necessidade de coleta dos excedentes agrícolas para a subsistência das tropas do Exército Vermelho. Essa política, porém, não era uma criação propriamente comunista, uma vez que havia sido estabelecida já sob o regime czarista russo em 1916 durante a Primeira Guerra Mundial sob o nome de Razvyorstka, instituída após a insuficiência da produção agrícola causada pelo envio numeroso de camponeses para a guerra imperialista.

Sendo a principal política de ordem econômica durante a mobilização militar do período, seu desenvolvimento determinou grandemente o início da economia soviética. Inicialmente, houve problemas nos controles e fiscalização dos excedentes, que acabavam sendo vendidos em mercados ilegais96 pelos produtores. O esforço de conscientização e propaganda empreendido pelos bolcheviques em relação aos camponeses não chegou a surtir efeito imediato, e ainda que se procurasse uma política de “passagem ao socialismo sem violência”97 foi logo substituída por medidas coercitivas típicas de situações de guerra98 (BETTELHEIM, 1976b, p. 206-207).

Em determinado momento em fins de 1919 e durante 1920 o poder soviético procurou elaborar planos de semeadura para contrapor a queda da produção agrícola99 provocada pelas requisições forçadas. Esses planos, porém, estavam fadados ao fracasso já que a estrutura de

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Como é típico em situações de guerra, especialmente civil.

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Ao longo da pesquisa será utilizado o termo mercado ilegal para aqueles mercados que operam sem respaldo legal e são objeto de repressão por parte do Estado, assim é contraposto o uso do termo derrogatório de mercado negro, que associa desnecessariamente uma cor com um fenômeno social considerado pejorativo.

97 Neste caso, obviamente se referindo às massas proletárias e camponesas, e não às forças repressivas czaristas e

imperialistas que procuravam aniquilar os sovietes.

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Destaca-se o “duplo tratamento” explicitado por Lênin nesta questão, ao tratar os camponeses (médios) por um lado como trabalhadores aliados das massas operárias, porém também com comportamentos especulativos e potencialmente exploradores quando em posse de excedentes.

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Segundo Bettelheim (1976b, p. 208): “a produção anual de cereais cai de 72,5 milhões de toneladas em 1909- 1913, a menos de 35 milhões de toneladas em 1920(...) o que representa uma redução catastrófica em relação à época anterior á guerra (cerca de 40%)”. As cifras são de Krijijanovski.

cultivos era individual, o que impossibilitava uma aplicação coordenada e a devida fiscalização (BETTELHEIM, 1976b).

Ainda assim, os esforços de guerra foram bem-sucedidos e já em fins de 1920 e início de 1921 a guerra estava praticamente definida, restando apenas fronts na Sibéria e extremo Oriente. A situação política interna da organização soviética, porém, estava seriamente abalada nas suas relações com porções consideráveis do campesinato, que era atacado em seus interesses materiais e também muitas vezes caluniado como exploradores e especuladores. Em decorrência dessa situação começam a estourar rebeliões e revoltas contra os bolcheviques, em especial nas áreas rurais. A fome também foi um grande problema neste período, efeito da queda da produção dado pela política de requisições e pela guerra civil, também associada a um ineficiente sistema ferroviário de distribuição herdado da era imperial e uma grande seca100 que acometeu a região do Volga em 1921.