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3 AMEAÇA EXTERNA E CAPACIDADE ESTATAL (1991-2001)

3.3 BALANCEAMENTO INTERNO

O que se pretende analisar na presente seção são as principais mudanças e continuidades no quesito das tecnologias militares e estruturas organizacionais das Forças Armadas da Rússia ao longo dos anos de 1990. Isso porque tal análise, juntamente com a do nível de ameaça externa e de capacidade estatal, permitem compreender a estratégia de balanceamento interno da Rússia no período em questão.

Como observado anteriormente, a partir da década de 1960, nem os Estados Unidos e nem a União Soviética poderiam destruir completamente a força retaliatória do outro através de um primeiro ataque (first-strike) - mesmo com um ataque surpresa. Isso gerava uma situação de destruição mútua assegurada (LIEBER; PRESS, 2006b, p. 42). Na década de 1990, por sua vez, as forças nucleares da Rússia se tornaram um multiplicador para compensar a inferioridade e a capacidade decrescente de suas forças convencionais (BRUUSGAARD, 2016, p. 9; DEFENSE INTELIGENCE AGENCY, 2017, p. 46; MOSHER et al., 2003, p. 4, 8; NICHOL, 2011, p. 1; SAFRANCHUK, 2006, p. 97; UMBACH, 2003, p. 72). Assim, as armas nucleares continuaram sendo o dissuasor final a ataques nucleares contra a Rússia143.

Com isso, a presença de uma dissuasão nuclear144 robusta dissuadia potenciais agressores de atacarem diretamente a Federação da Rússia – o que garantia, ainda, a destruição mútua assegurada e a estabilidade estratégica. Todavia, o principal argumento, à época, era de que as forças nucleares russas continuavam incapazes de lidar com as contingências militares mais prementes, a saber, as guerras limitadas e os conflitos de baixa intensidade (DEFENSE INTELLIGENCE AGENCY, 2017, p. 12; MAIN, 2003, p. 102; UMBACH, 2003, p. 79). Dessa forma, uma mudança é observada com a Rússia abrindo mão do compromisso de No First Use (NFU), a partir de novembro de 1993. Essa nova ênfase foi confirmada no Conceito de Segurança Nacional da Rússia, em 1997, e na Doutrina Militar, em 2000145 (UMBACH, 2003, p. 77).

Além disso, durante os anos de 1980 e de 1990, as forças terrestres da Rússia estavam preocupadas, principalmente, com o impacto da digitalização da guerra, especialmente em fatores como armas guiadas de precisão e como sistemas de comando automatizados. Dessa

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Para Zyga (2012, p. 11) a Rússia atribui mais importância ao seu arsenal nuclear do que os Estados Unidos no período pós-Guerra Fria. Assim, em termos militares, as tumultuadas mudanças políticas e econômicas que a Rússia experimentou após a dissolução da União Soviética afetaram negativamente a indústria de defesa e as Forças Armadas russas. Essa turbulência resultou em uma deterioração significativa das capacidades militares convencionais do país. Diante disso, as armas nucleares constituiriam o elemento dissuasor básico das Forças Armadas da Rússia.

144 Apesar dos cortes em seus arsenais nucleares, em 2003, ambos os países mantinham um grande número de

forças nucleares (MOSHER et al., 2003, p. 8). Além disso, nota-se que os maiores delineamentos do programa de modernização estratégica da Rússia foram determinados ao longo dos anos de 1990, quando a situação econômica da Rússia não favorecia um investimento significativo à indústria militar (PODVIG, 2011, p. 9).

145 É neste sentido que os especialistas militares russos produziram um conceito de "desascalar" os conflitos

convencionais através do uso de armas nucleares, a fim de demonstrar a prontidão da Rússia em usar a força militar, incluindo armas nucleares (UMBACH, 2003, p. 77). Além disso, os redatores da Doutrina Militar da Rússia de 2000, por exemplo, concordaram que a maneira mais fácil e barata de prevenir agressões era aumentar o nível de dúvida sobre a política da Rússia em relação ao uso de armas nucleares (MAIN, 2003, p. 116).

forma, as estruturas militares tradicionais estavam sendo revisadas porque novas formas, baseadas em corpos e brigadas de Exército, eram consideradas mais manobráveis do que a clássica cadeia de comando de regimento e divisão de Exército (ORR, 2003, p. 123). Isso é, percebia-se uma transformação na maneira como a guerra moderna seria conduzida. Com isso, preparar-se para o envolvimento em conflitos de grande escala envolvendo o uso de exércitos de massa cedia lugar à ênfase em pequenas equipes de especialistas, poder aéreo e armas de alta precisão146 (MCDERMOTT, 2003, p. 257).

Dito isso, nos primeiros anos após o colapso da União Soviética, alguns passos formais para reformar as Forças Armadas da Rússia, colocando-as dentro de um novo quadro legal e modificando sua doutrina militar, foram dados147. Há que se destacar, por exemplo, que, desde Gorbachev, havia um ímpeto por uma reforma militar - ainda que ele tenha conseguido, em termos de mudanças, apenas reduzir o número de pessoal de cinco para quatro milhões. Boris Iéltsin, da mesma forma, ao longo dos anos de 1990, pressionou por uma reforma. Em particular, ele queria o fim da conscrição militar na Rússia. Todavia, a principal meta não era o desenvolvimento de uma Força Armada mais eficiente, mas a redução de custos e agradar o eleitorado (THORNTON, 2011, p. 3-4).

Durante a primeira Guerra da Chechênia, o Ministro da Defesa, Pavel Grachev, junto com Boris Iéltsin, anunciaram a intenção de criar forças menores e maior mobilidade, bem como reduzir o tamanho das Forças Armadas. Depois da guerra, em 1997, o Ministro da Defesa, Igor Sergeyev iniciou algumas reformas básicas, como a restruturação do sistema militar de ensino, a redução do Ministério da Defesa e a redução do número de oito Distritos Militares para seis. Apesar dessas tentativas, contudo, as Forças Armadas permaneceram, basicamente, uma versão reduzida da versão soviética de uma Força Armada de conscrição em massa. (FERNANDEZ-OSORIO, 2015, p. 69, 71; KLEPPER, 2015, p. 41).

Em síntese, a própria experiência russa de conflitos de baixa intensidade teria destacado a dicotomia existente entre a natureza das ameaças que a Rússia enfrentava, no período pós-Guerra Fria, e a capacidade de suas Forças Armadas para lidar adequadamente com estas (MAIN, 2003, p. 107; MCDERMOTT, 2003, p. 258). Isso porque, além da experiência soviética no Afeganistão, a primeira Guerra da Chechênia sugeriu uma força em ruína (GALEOTTI, 2017, p. 12).

146 As principais críticas a esta concepção são retomadas ao longo do Capítulo 5.

147 Desde 1989, especialistas russos discutiam uma verdadeira reforma militar. Até 2003, no entanto, apenas

No final da década de 1990, houve um esforço da Rússia em criar “forças permanentemente prontas”, um subconjunto da estrutura da força russa composta de unidades com melhores equipes e níveis de equipamentos. Essas unidades foram criadas e utilizadas na segunda Guerra da Chechênia (1999-2004) e permitiram a Moscou intervir mais rapidamente e com forças mais capazes do que durante a primeira Guerra da Chechênia (DEFENSE INTELLIGENCE AGENCY, 2017, p. 11). Contudo, esta não representou um grande progresso para as Forças Armadas da Rússia. Isso porque, apesar das modestas melhoras e do sucesso na segunda Guerra da Chechênia, as Forças Armadas da Rússia entraram na primeira década do século XXI com uma estrutura de força de mobilização do período soviético e equipadas, quase que completamente, com equipamentos daquela época. Com isso, insuficiências em equipamentos modernos, controle, comunicações, computadores e equipamentos de inteligência, vigilância e reconhecimento (C4ISR) e capacidades eram particularmente notáveis (DEFENSE INTELLIGENCE AGENCY, 2017, p. 12; GALEOTTI, 2017, p. 20).

Diante disso, as principais explicações alternativas para a ausência de reforma diziam respeito a dois pontos. Primeiro, apesar destes ímpetos por reforma, a desorganização geral do Estado impedia esforços consistentes em qualquer área específica (BETZ; VOLKOV, 2003, p. 41, 50; ORR, 2003, p. 124; UMBACH, 2003, p. 73). Segundo, apesar de sua experiência de conflito de baixa intensidade durante o último quarto do século XX, os militares russos não haviam abandonado a crença de se preparar para conflitos de larga escala enquanto a principal forma de ação militar148 (MCDERMOTT, 2003, p. 257).

Em síntese, ao longo do período pós-soviético, havia, de fato, uma necessidade reconhecida de reformar e modernizar as forças armadas da Rússia. Contudo, a década de 1990 visualizou uma série de reformas militares serem “anunciadas e implementadas apenas de forma abortiva” (DEFENSE INTELLIGENCE AGENCY, 2017, p. 11). Isto é, ao passo em que todas as reformas militares no período pós-Guerra Fria em outros países ocorreram em favor da desmobilização das antigas Forças Armadas e a partir da criação de uma nova, isso não foi realizado no caso da Rússia (BETZ; VOLKOV, 2003, p. 45). As explicações, a partir do modelo aqui proposto, são abordadas na próxima seção.

148 Destaca-se, ainda, a ideia de que o próprio processo de reforma havia se tornado uma “vítima na luta de poder

3.4 CONCLUSÃO DO CAPÍTULO

Diante do exposto, destaca-se primeiro, a relação entre o desmanche do Estado russo e o desmantelamento do centro de decisão econômica ao longo do período, especialmente a partir da privatização de setores estratégicos da economia. Por exemplo, a venda de grande parte da indústria petrolífera foi uma forma de aumentar a receita do Estado a baixo custo administrativo. Todavia, os riscos fiscais desta estreita base de receitas tornou-se evidente quando o preço das commodities declinaram. Soma-se a isso, ainda, a falta de autonomia do Estado frente às elites concorrentes que buscavam acesso direto ao poder político para apropriar recursos públicos para ganhos privados. A consequência disso foi que os projetos construção do Estado russo foram enfraquecidos por disputas internas.

Em segundo lugar, os oligarcas, durante o período Iéltsin, tornaram-se parte do sistema de poder e eram capazes de moldar áreas chaves da política governamental a fim de servirem aos seus interesses específicos. Assim, na medida em que as elites emasculavam as instituições estatais existentes para extrair recursos do Estado, o resultado foi o declínio do aparato institucional do Estado. Além disso, observou-se uma fragmentação encoberta do Estado, isto é, o surgimento, sob a jurisdição formal do Estado, de fontes concorrentes e descontroladas de violência organizada e de redes alternativas de tributação.

Ao fim e ao cabo, ao final do governo Iéltsin, o Estado russo era incapaz de implementar iniciativas as políticas centrais nas suas províncias e regiões. Diante disso, o Estado fraco, com baixa capacidade estatal, era resultado, especialmente, de expedientes auto enfraquecedores adotados pelas elites russas, que levaram à deformação do Estado. Por fim, na medida em que, ao longo dos anos de 1990, a estabilidade estratégica foi mantida, a Rússia não enfrentou incentivos e constrangimentos estruturais para se engajar em um processo de balanceamento interno. Isso porque, no período em questão, a Rússia confiou, cada vez mais, no seu arsenal nuclear para contrapor a superioridade convencional dos Estados Unidos e, com isso, garantir a manutenção da estabilidade estratégica.

Diante do exposto, o argumento, de acordo com o modelo analítico da presente Dissertação, que se sustenta é que a ausência de balanceamento interno na forma de emulação, inovação ou compensação militar ao longo da década de 1990 decorre de dois pontos principais.

NÍVEL DE AMEAÇA EXTERNA - Estabilidade estratégica - Tecnologia NÍVEL DE CAPACIDADE ESTATAL - Extração -Mobilização INEFICÁCIA COMPROVADA - Debilidade - Obsolescência EMULAÇÃO MILITAR DE LARGA-ESCALA - Estrutura organizacional - Tecnologia militar

BAIXA BAIXA SIM NÃO

Estabilidade estratégica preservada

Incapaz (cap. extrativa, coercitiva e administrativa) Guerra da Chechênia (1994-1996) Não - MAD; - T. ABM - Cap. Seg. Ataque

- Regionalização - Oligarcas

- Derrota - Debilidade

Reformas sem sucesso

Fonte: Elaboração do autor.

Primeiro, ainda que as questões estruturais relativas à unipolaridade pudessem constranger e incentivar a Rússia a balancear os Estados Unidos no período pós-Guerra Fria, entende-se, aqui, que a ausência de balanceamento interno decorre, justamente, da ausência de incentivos estruturais ligados ao nível de ameaça externa da Rússia. Isto é, a manutenção da estabilidade estratégica e, portanto, dos níveis relativamente baixos de competição sistêmica decorrentes, não geraram as pressões primárias para a necessidade de mudança da estratégia de balanceamento interno da Rússia (ver Quadro 6).

Segundo, soma-se a isso, ainda, a baixa capacidade estatal por parte da Rússia no período. Isto é, de maneira contra factual, mesmo que os incentivos estruturais fossem mais elevados, a baixa capacidade estatal da Rússia teria sido um complicador no desencadeamento do balanceamento interno. Isso porque o nível de capacidade estatal é a variável interveniente entre o nível de ameaça externa e as estratégias de balanceamento interno disponíveis aos Estados. Terceiro, ainda de maneira contra factual, argumenta-se que, mesmo que a Rússia tivesse um alto nível de capacidade estatal e apresentasse um caso de ineficácia comprovada, ainda faltariam os incentivos estruturais, que têm precedência causal, para a ocorrência de reforma militar de larga-escala.

Por outro lado, finalmente, o exercício inverso também é válido e se relaciona ao argumento de Schweller (2004). Para o autor, casos de sub balanceamento (underbalancing) relacionam-se, especialmente, à coesão das elites para a ocorrência, ou não, de balanceamento. Como destacado anteriormente, os anos de 1990 na Rússia foram caracterizados por uma intensa fragmentação nas elites russas (EASTER, 2012, p. 60, 65; ROBINSON, 2008, p. 16; STEEN, 2003, p. 26). Assim, mesmo que houvesse incentivos estruturais para o balanceamento e houvesse uma coesão entre as elites russas no período em questão, a baixa capacidade estatal no período atuaria enquanto variável interveniente no processo de balanceamento interno, não implicando em reforma militar.