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3 AMEAÇA EXTERNA E CAPACIDADE ESTATAL (1991-2001)

3.2 CAPACIDADE ESTATAL E EXPEDIENTES AUTO ENFRAQUECEDORES

3.2.1 Capacidade extrativa

Em um primeiro momento, cumpre-se destacar que, ao longo da economia planificada, as finanças estatais soviéticas eram conduzidas através de um sistema burocrático ostensivamente centralizado. Todavia, ao final do período comunista, redes de patronagem intrapartidárias rivais ganharam controle informal sobre partes das finanças estatais. Assim, depois do colapso soviético, uma competição aberta se desenrolou entre elites rivais que reivindicavam o controle formal das finanças do Estado (EASTER, 2012, p. 97). Com isso, a fraca aplicação de impostos levou à competição de governos locais com o governo federal por receitas da mesma base tributária. O resultado foi um colapso das receitas fiscais durante a década de 1990, ao nível federal129 (FUKUYAMA, 2004, p. 25). Em síntese, o Estado russo era “incapaz de arrecadar impostos suficientes para funcionar de forma efetiva” (HOLMES, 2005, p. 83).

Em 1993, Viktor Chernomyrdin substituiu Yegor Gaidar enquanto primeiro-ministro. Sob o comando de Chernomyrdin, a resistência fiscal às novas reivindicações de receitas do Estado foi favorecida pela estratégia da “barganha de elite” (elite bargain) que, ao fim e ao cabo, “enfraqueceram a capacidade fiscal do Estado” (EASTER, 2012, p. 69). A barganha de elite era um sistema híbrido de extração de receita que combinava as novas condições da economia de transição com práticas familiares à economia planificada. Dessa forma, ela repousava em uma complexa teia de laços pessoais que se estendia por esferas políticas e econômicas, do centro para as regiões, e envolvia a utilização de negociações informais, em vez de mecanismos formais, para obter receitas (EASTER, 2012, p. 66).

Neste sentido, as grandes corporações do setor de exportação de commodities deveriam suprir a maior parte das receitas tributárias130. As políticas iniciais de reforma diminuíram ainda mais a capacidade do Estado em administrar a economia e criaram uma maior pressão sobre os orçamentos. Com isso, a venda da indústria petrolífera, ou pelo menos partes desta, do lado da produção, foi uma forma de aumentar a receita a baixo custo

129 Treisman (1999, p. 167) segue esta mesma linha ao argumentar que, embora as reduções nas taxas de

impostos e os deslocamentos macroeconômicos da transição expliquem parte dos problemas da coleta de impostos do país, “a causa fundamental para a contínua fraqueza fiscal é o sistema de incentivos perversos inerentes à atual repartição das maiores bases tributárias entre os níveis federal e subnacional de governo”.

130 Deve-se salientar que a estratégia de cumprimento de impostos (tax compliance) na Rússia sofreu mudanças

significativas entre as décadas de 1990 e 2000. Sob Iéltsin, o Estado negligenciou o desenvolvimento do cumprimento societal (societal compliance). Isso porque o Estado russo tinha acesso a ricas commodities geradoras de renda para a receita e, com isso, havia pouca preocupação com a compliance das famílias e pequenas empresas (EASTER, 2012, p. 111).

administrativo (ROBINSON, 2008, p. 16). Diante disso, o governo propositalmente direcionou as indústrias altamente lucrativas e concentradas no setor de energia para a extração de receita e seu orçamento foi altamente dependente desse setor como resultado131 (LUONG; WINTHAL, 2004, p. 140). No governo Gaidar, o Estado concentrou seus esforços de cobrança em um conjunto seleto de alvos com grandes receitas, particularmente no setor de exportação de energia. Desta forma, as reformas tributárias introduzidas no início da transição colocaram o maior ônus sobre essas corporações (EASTER, 2012, p. 130).

Sob Chernomyrdin, entretanto, empresas do setor de energia tiveram ampla oportunidade de buscar alívio para essa obrigação132. Isto é, o grande setor corporativo aprendeu rapidamente como usar: i) o sistema político fraturado para alívio fiscal e; ii) o sistema legal mal definido e o fraco sistema de fiscalização para evasão fiscal (EASTER, 2012, p. 59). Desta forma, a prolongada luta pelo poder entre o Executivo e o Legislativo levou Iéltsin a adotar uma estratégia de sobrevivência política na qual os recursos econômicos administrados pelo Estado eram trocados pelo apoio político de empresários e atores de elite regionais133 (EASTER, 2012, p. 69). Em segundo lugar, as elites regionais e corporativas favorecidas politicamente evitaram o pagamento de impostos por meio de acordos negociados com as autoridades estatais. Às vezes, esses acordos eram feitos formalmente em negociação com atores estatais, mas, em outros casos, eram feitos informalmente (EASTER, 2012, p. 115).

Assim, ao longo da década de 1990, o Estado russo permaneceu dependente de uma base de receita concentrada e lucrativa - o setor de exportação de energia, grande manufatura e processamento e as ricas regiões contribuintes. Todavia, o perigo fiscal de uma base de receita estreita tornou-se evidente quando as fontes de receita de energia despencaram (EASTER, 2012, p. 132, 134). Neste sentido, portanto, a crise econômica de 1998 foi, em

131 Em 1998, por exemplo, o setor de petróleo representava aproximadamente um quarto de todas as receitas

fiscais do Estado (EASTER, 2012, p. 132).

132 Em troca, essas firmas se ofereceram para fornecer bens e serviços de valor ao setor público com pouco ou

nenhum custo. As empresas favorecidas receberam isenções especiais, reduções de tarifas, diferimentos de pagamento e compensações de permuta. Em alguns casos, oligarcas foram trazidos para o governo, onde puderam conceder-se privilégios fiscais especiais diretamente (EASTER, 2012, p. 67-68; LUONG; WINTHAL, 2004, p. 141). Ressalta, ainda, que “os impostos sobre recursos naturais foram, principalmente, regionais, sob Iéltsin e tornaram-se federais, sob Putin” (LIBMAN; FELD, 2013, p. 474).

133 Primeiro, foram emitidos decretos presidenciais que formalmente descentralizavam a política tributária. Em

segundo lugar, no início de 1994, o centro começou a negociar tratados bilaterais especiais com as regiões, cedendo maior autonomia política e privilégios fiscais especiais (EASTER, 2012, p. 67). Por tais meios, o Estado central efetivamente reconheceu as reivindicações dos governadores regionais a uma parcela maior das fontes de receita do Estado. As grandes empresas, enquanto isso, reduziram suas obrigações tributárias ao pressionar, via lobismo, o governo de Chernomyrdin (EASTER, 2012, p. 67). Em relação à disputa entre Executivo e Legislativo, no início do mandato de Iéltsin, ver Arbatov (1993, p. 14-18).

parte, resultado do declínio dos preços mundiais do petróleo, mas, sobretudo, foi resultado de um sistema tributário extremamente ineficiente e uma resistência arraigada em pagar impostos por parte de regiões e corporações poderosas (WHITE, 2018, p. 134; WHITE; HERZOG, 2016, p. 9). Com isso, a crise de 1998 expôs a frágil capacidade fiscal da Rússia134 (EASTER, 2012, p. 140, 193; SCHUTTE, 2011, p. 92; TAYLOR, 2011, p. 100).

Por fim, deve-se chamar atenção para o fato de que, na segunda metade da década de 1990, os poucos e fracos esforços para recentralizar as finanças do Estado foram obstruídas por atores da elite regional e financeira, cuja influência política garantiu barganhas de receita que continuaram a dar acesso direto aos recursos econômicos do Estado (EASTER, 2012, p. 98-99). Este ponto é de particular importância na medida em que, para Midgal (1988, p. 39- 44, 247-256), o poder social das elites locais (local strongmen) significa, quase que por definição, uma diminuição do poder do Estado. Isso porque o autor percebe o projeto básico dos detentores de poder locais inerentemente enquanto oposição ao projeto básico do Estado. Com isso, essas elites regionais “preveniram os líderes estatais de desenvolver a capacidade de mobilização própria do Estado” (MIDGAL, 1988, p. 127). Desta forma, como será visto a seguir, as reformas federais de Putin135 em seu primeiro mandato foram projetadas para alterar os termos da barganha federal, que existia sob Iéltsin, em favor do centro (EASTER, 2012, p. 77; RUTLAND, 2000, p. 316; TAYLOR, 2011, p. 144).