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Barão da ralé

No documento Maria Luísa Rangel De Bonis (páginas 53-56)

O malandro de "lenço no pescoço, navalha no bolso" está presente na cultura brasileira desde pelo menos meados do século XIX – basta lembrar do célebre Leonardo de Memórias de um sargento de milícias e de Macunaíma, reinvenção mais moderna desse "herói sem nenhum caráter". No que diz respeito à canção popular, o malandro é diretamente ligado ao samba, associação tida como senso comum na imprensa do Rio de Janeiro e nas letras de sambas do final dos anos 1920 e início dos 1930.

O malandro leva consigo algumas características peculiares. Talvez a mais fundamental seja a esquivança com o mundo do trabalho. Outra, a associação com a viola e a cachaça. Instrumento e bebida populares. Amarrando todas está o samba, espécie de "alma sonora" deste personagem.

Porém, é justamente no samba que o malandro se transforma. Na verdade, ele se profissionaliza junto ao gênero15, como bem mostra o depoimento de Noel Rosa:

A princípio, o samba... era considerado distração de vagabundo. Mas o samba estava bem fadado. Desceu do morro, de tamancos, com o lenço ao pescoço, vagou pelas ruas com um toco de cigarro apagado no canto da boca e as mãos enfiadas nas algibeiras vazias e, de repente, ei-lo de fraque e luva branca nos salões de Copacabana. 16

Do morro aos salões de Copacabana: de malandro a compositor profissional. É isso que dizem as palavras de Noel Rosa. Há que se profissionalizar o samba e o sambista, dando-lhe reais condições de sobrevivência. É claro que a temática da malandragem – e o próprio malandro, o vadio – continua a existir. Mas ela

15 "Assim, a qualificação do malandro como um personagem distinto na cultura carioca vai passar

por uma nova qualificação do próprio samba: a criação do novo estilo, identificado num primeiro momento ao bairro do Estácio de Sá". SANDRONI, Carlos. Op. cit., p. 170.

16 Idem, ibidem, p. 172. Originalmente em MAXIMO, João e DIDIER, Carlos. Noel Rosa: uma

começa a ser cada vez mais uma imagem direcionada aos consumidores de uma estética formulada.

Ao resgatar o malandro, Chico remonta a uma época anterior à profissionalização da malandragem. Sem idealizar personagens, mas buscando um tempo anterior a rótulos logo transformados em mercadorias. Não que essa fosse a intenção de Noel Rosa – certamente há uma preocupação legítima em estimular o registro do samba e tirar o sambista do anonimato, questões prementes naquela época.

Mas, mesmo o registro que Chico escolhe de Noel (além do intrínseco à "Festa imodesta", que cita uma canção de 1933), "Filosofia" (também de 1933), fala justamente desse cantor excluído da sociedade, que preza o samba acima de tudo...

Pois cantando neste mundo Vivo escravo do meu samba Muito embora vagabundo

... e não o sujeito de "Feitiço da Vila" (1934) que, aí sim, busca exaltar as qualidades do samba praticado na Vila Isabel e sua transformação num feitiço "decente", ou seja, longe da esfera do marginal e capaz de circular entre vários extratos sociais, como já revelava o depoimento que lemos anteriormente 17:

A Vila tem

Um feitiço sem farofa Sem vela e sem vintém Que nos faz bem

Tendo nome de princesa Transformou o samba

Num feitiço decente, que prende a gente

Deste modo, ao retomar o samba e o malandro "pré-profissionalização", naquele momento, Chico responde às pressões da crítica ao lhe taxar o rótulo de

17 Retomo aqui uma pequena parte da ótima análise feita em torno da figura do malandro e sua

profissionalização no samba por Carlos Sandroni, presente no já citado Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933).

cantor de protesto – que, mesmo imbuído de questões ideológicas, também acabara por se transformar em mercadoria.

Se Chico dá voz ao malandro de uma outra época (o da "fase heróica", de acordo com Jessé Souza 18), em Sinal fechado também canta a voz do alter-ego de si mesmo. Estamos falando de "Acorda, amor", de Julinho da Adelaide, pastiche do próprio Chico.

A situação que cria Julinho é, no mínimo, cômica. Cansado de ter suas canções vetadas pela censura, que já as barrava só por ver seu nome, Chico resolve criar um personagem e inventa até sua história, publicada numa entrevista no jornal Última Hora. De acordo com Fernando de Barros e Silva,

Era um escárnio completo, coadjuvado pelo pai de Chico, o historiador Sérgio Buarque. Julinho dizia que evitava aparecer em público porque tinha uma cicatriz no rosto, atingido pelo famoso violão que Sérgio Ricardo atirou contra a platéia no 3o Festival da Record, em 67. Mais adiante, estocava Chico, dizendo que ele não sabia cantar, e logo depois completava: "Ele tá faturando em cima do meu nome e eu estou faturando em cima do nome dele. Acho que isso é normal. [...] Eu sou é pragmático".19

Escárnio ou não, o fato é que a presença de Julinho da Adelaide em Sinal fechado revela mais do que simples brincadeira. O samba "Acorda amor" é a única canção que dá voz ao Chico "real", mesmo de forma enviesada. E a voz evidencia o medo. Não o medo presente na canção de protesto, mas a sensação do cidadão comum que se sente acuado em sua casa e faz da repressão uma temática introjetada ao próprio discurso. A réstia de voz de Chico, em Sinal fechado, surge através da fresta do medo. E também não deixa de remeter, numa outra leitura, de plano manifesto, ao malandro que teme ser eliminado pela polícia dos

18 "O tema do malandro apresenta pelo menos três fases subseqüentes. A primeira delas é sua 'fase

heróica' na qual o malandro é tanto o contraponto do indivíduo da elite nas classes baixas quanto uma espécie de síntese da brasilidade. O primeiro aspecto fica evidente nos sambas 'A volta do malandro', de Chico Buarque, 'Lenço no pescoço', de Wilson Batista, 'Conversa de botequim', de Noel Rosa, 'O que será de mim', de Ismael Silva, Nílson Bastos e Francisco Alves, e, acima de tudo, em 'Malandro é malandro, mané é mané', cantado por Bezerra da Silva." Souza, Jessé. "As metamorfoses do malandro". In Decantando a República: inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira. Op. cit., vol. 3, p. 46.

"Esquadrões da Morte". Tal análise é elaborada por Adélia Bezerra de Meneses20 e acaba fechando o ciclo da voz marginal em Sinal fechado:

Marginalidade social (os malandros criminosos que são executados) se identifica com marginalidade política (os contestatários do regime que, "culpados" ou não, são eliminados). É importante registrar-se que o "eu poético" desse poema / canção é a personagem que Chico Buarque propõe como Autor: o malandro Julinho da Adelaide (em parceria com Leonel Paiva). O pseudônimo tem então como papel não apenas velar a identidade real do Autor mas, como no caso de Fernando Pessoa, funciona como uma máscara que o Autor assume (persona = máscara); no caso, e muito a propósito, máscara de marginal. Daí, Chico incorporar a linguagem do malandro na sua própria dicção – o que é um exemplo a mais do exercício da "linguagem da fresta" de que fala Gilberto Vasconcelos, e que é a alternativa ao silêncio.

Além da esfera do samba e do malandro há também um outro mote que amarra Sinal fechado e o faz, como dizíamos, de um silêncio ensurdecedor: a melancolia.

No documento Maria Luísa Rangel De Bonis (páginas 53-56)