• Nenhum resultado encontrado

Não passou de ilusão

No documento Maria Luísa Rangel De Bonis (páginas 56-61)

A melancolia presente nas outras canções de Sinal fechado ("Copo vazio", "O filho que eu quero ter", "Lígia", "Você não sabe amar", "Me deixe mudo" e "Sinal fechado") revela a outra face do silêncio e da não-resposta a que Chico se propõe naquele momento.

Se o samba traz o malandro e a marginalidade do discurso, a melancolia dessas canções funciona como outro lado da moeda: a voz é marginal e alheia a qualquer tipo de rótulo, e também extremamente marcada pelo lirismo e pela busca da experiência que a arte deve anunciar. Muito desse lirismo já é

20 MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São

evidenciado pela presença do malandro, como notamos anteriormente, por resgatar um personagem anterior à mercadoria. Porém, ela fica mais latente na voz melancólica e na subjetividade que carregam as canções que citamos acima.

É interessante notar que a disposição das canções mescla estes dois universos. Os sambas são intercalados pelas canções mais melancólicas, artifício que faz o ouvinte, de primeira, se surpreender pela variação dos registros; e depois, condensá-los numa sensação de sufoco e angústia, saldo final de Sinal fechado.

"Copo vazio", canção de Gilberto Gil (1974), versa sobre a falta de perspectiva concreta frente à dor. Uma alternância entre o nada, o completo, a dor ou o amor sem que haja resposta palpável para a angústia:

É sempre bom lembrar guardar de cor

que o ar vazio de um rosto sombrio está cheio de dor

A tristeza continua presente em "O filho que eu quero ter" (Toquinho e Vinicius de Moraes, 1974) e em "Lígia" (Tom Jobim, 1972), num tom ainda mais lírico que em "Copo vazio". Se lá a angústia dá o tom, é quase amenizada por ser uma angústia sem sujeito, pairando no ar. Nessas duas canções, entretanto, o cantor é protagonista e responsável pelas ações e não-ações que a canção exprime. O "sonho lindo de morrer" e a negação da existência de um amor perdido entre memórias inventadas num Rio de Janeiro que é quase neblina são colocados em primeira pessoa:

E quando eu lhe telefonei Desliguei, foi engano O seu nome eu não sei Esqueci no piano As bobagens de amor Que eu iria dizer Não, Lígia, Lígia

Há ainda o samba-canção de Carlos Guinle e Dorival Caymmi, "Você não sabe amar", que remonta a uma época em que o passional dá a chave, tempo de

extrema (talvez até exagerada) subjetividade, como pontua Maria Izilda Santos de Matos 21:

O samba-canção ficou na memória desse território como representação dos anos dourados de Copacabana, em que se vivenciava um clima de pós-guerra com crescente esperança de se redescobrir o ser humano, com um querer crescer e ultrapassar barreiras, num país assentado numa "tenra democracia" que duraria pouco. As pessoas começavam a libertar-se de tabus ancestrais e dependências existenciais. Com rara sensibilidade, conseguiu flagrar o mistério: sem esclarecê-lo, expressou de forma melódica o que todos sentiam.

Tal subjetividade, descolada da época em que é produzida, não ganha tons pastiches, antes fica ainda mais alocada na esfera do subjetivo. Assim, ao lado de "Sem compromisso", faixa anterior a "Você não sabe amar", revela as duas metades de Sinal fechado: o malandro que faz questão de mostrar que não é nenhum "pai-joão" (mesmo enganado pela parceira que saí dançando com outro "alegre e feliz"), e o sujeito imerso no acerto de contas, na realidade da separação e da dor, ciente da sua capacidade de amar e sofrer:

O nosso amor parou aqui E foi melhor assim Você esperava E eu também

Que fosse esse seu fim

A melancolia é encerrada com o tom mais forte de "Me deixe mudo" (Walter Franco, 1974), em que o narrador alia sua tristeza à agressividade, já um pouco descolada da passiva aceitação de "Você não sabe amar":

Não me pergunte, não me responda Não me procure, e não se esconda Não diga nada, saiba de tudo Fique calada, me deixe mudo

21 SANTOS DE MATOS, Maria Izilda. "Antonio Maria: boêmia, música e crônicas". In Do

Me deixe mudo a quê? Certamente à sensação de angústia enfrentada nas outras canções – e a que virá, derradeira, fechar o discurso: a poética "Sinal fechado", de Paulinho da Viola (1970), que deixa no ar, sem fecho, tudo aquilo que é esmiuçado nas outras canções. A perda da experiência, do sujeito e do seu próprio lirismo é tratada de uma maneira quase flutuante, como se ficasse mesmo entre a poeira das ruas.Inatingível, mesmo sendo urgente, implorável.

O malandro e a melancolia, duas faces que fazem de Sinal fechado uma resposta baseada no contra: a voz marginal, a voz mais interna e subjetiva capaz de cantar tristezas individuais e ao mesmo tempo comum a todos, montam um contradiscurso da exclusão. A não-possibilidade do canto (ora vetado pela censura, ora pela expectativa de público e crítica por um canto preso ao protesto) é represada nas vozes alheias a Chico Buarque e, ao mesmo tempo, extremamente intrínsecas a ele.

Começa com Sinal fechado, de forma muito sutil e ainda não delineada, um descolamento do que Chico é – e daquilo que se espera que ele seja. Assim, pouco a pouco, sua obra ganha contornos próprios e passa a dizer respeito primeiro ao artista, depois (e nem sempre) à cobrança da crítica e público. De canção em canção, Chico deixa de ser visto como o compositor "de protesto" para se dedicar a um lirismo próprio, já presente em Sinal fechado como possibilidade de caminho. Não que não se fale do cotidiano. Mas o palpável se transforma em canções que revelam um tempo real e um tempo simbólico, cada vez mais deixando espaço para a busca de uma experiência inconfundível, seja na voz de "barões da ralé", seja no canto do artista, poeta e carregador de soberbo lirismo –

Mesmo que os cantores sejam falsos como eu Serão bonitas, não importa

São bonitas as canções Mesmo miseráveis os poetas Os seus versos serão bons

– de "Choro bandido", parceria com Edu Lobo de 1985 para a peça O corsário do rei recolocada cuidadosamente em Paratodos (1993), depois deste artista passar por períodos estilhaçados, como veremos a seguir.

No documento Maria Luísa Rangel De Bonis (páginas 56-61)