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Barroco: Bento Teixeira e sua prosopopeia

Os israelitas habitavam a síria, onde seus reinos, desde o primeiro ao último, se estabeleceram e até que o rei romano Tito os expulsou dessa região, destruindo seu poder e desmembrando sua unidade. Foram dispersos como os braços da Saba’, em todas as direções.

Sãid Alandalusi

Como todas as escolas literárias, o Barroco sofreria as marcas do seu tempo e por ele seria caracterizado, além de outras, como a arte do conflito. Justificativas para esse conflito surgem de várias naturezas, entre elas, o poder absoluto nas mãos do rei; o enriquecimento de uma nova classe senhorial, a burguesia; os reflexos das lutas religiosas, especialmente a reação às propostas luteranas e calvinistas; além de outras questões mais locais, como o declínio econômico no comércio lusitano de especiarias do Oriente e o crescente prestigio dos jesuítas em Portugal formam os mais significativos momentos que influenciara no homem barroco, especialmente o homem português.

Além desse tempo, característico ao europeu e, mais restritivamente, ao português, vamos encontrar um Brasil, colônia de Portugal, em luta vitoriosa contra os franceses e seriamente ameaçado pela invasão holandesa, envolvido, também, num mercantilismo obrigatoriamente voltado para a metrópole. Nesse tempo, característico também do apogeu e do declínio da cana-de-açúcar no Nordeste, insere-se a figura controversa do judeu convertido ao cristianismo, por força das ameaças inquisitoriais, Bento Teixeira. Autor do livro de poesias que recebeu o sugestivo título de Prosopopéia (1601), interessa, para nós,

“pelo seu significado histórico, por ter sido, na poesia, o iniciador de uma tradição brasileira de nativismo grandiloquente” (CANDIDO; CASTELLO, 1985, p.27). E por ter sido o primeiro semita literário a dar continuidade, pelas terras brasileiras, a uma recorrente lembrança das gentes árabes em nosso corpo escritural.

Cantando louvores sobre os possíveis atos heroicos do então Governador da Capitania de Pernambuco, Jorge de Albuquerque Coelho, prisioneiro, juntamente com centenas de nobres e fidalgos lusitanos, quando foram derrotados na Batalha dos Três Reis6, Bento Teixeira, ainda que com intenções encomiásticas, tornar-se-ia o primeiro poeta da Literatura Brasileira a transformar, em matéria literária, os combates travados entre os portugueses e os árabes do Marrocos.

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Estima-se que D. Sebastião, na Batalha dos Três Reis, empregara importantes recursos para equipar um forte exercito, composto de aproximadamente dois mil voluntários de Castela, três mil mercenários contratados na Alemanha e nos Flandes, além uns seiscentos italianos, antes recrutados para ajudar em uma invasão da Irlanda, a pedido do papa Gregório XIII, que tentava derrubar a soberania da rainha da Inglaterra, Elizabeth I, acusada de protestantismo. Todos, juntamente com o exercito português, composto de cerca de vinte mil homens, oriundos das diversas camadas sociais lusitanas, como os aventureiros, os nobres portugueses, os veteranos de guerras africanas e asiáticas, formavam um exército indisciplinado e despreparado para lutar contra os árabes do Marrocos. Para atravessar o Mar Mediterrâneo, e levar os combatentes para a batalha, estima-se que se gastou uma fortuna para equipar uma frota de aproximadamente cinquenta navios, além das compras de armas e munições, mantimentos e outros víveres. Contrariando as recomendações para seguir pela via marítima, permitindo, assim, o descanso necessário às tropas e o seu reordenamento, D. Sebastião, desembarcara por terra e aliando-se às tropas do sultão Abu Abdallah Mohammed Saadi II, partiram para Larache, quando foram interceptados pelas tropas de Abd Al-Malik da dinastia Saadi , tio de Abu Abdallah, nas cercanias de Alcácer-Quibir, local onde os portugueses foram derrotados. Essa derrota resultou no desaparecimento de D. Sebastião e no consequente mito do sebastianismo, fruto de diversos movimentos, em Portugal e no Brasil, sejam eles religiosos ou literários. Além da morte de D. Sebastião, dezenas de nobres lusitanos, entre eles, Jorge de Albuquerque Pinheiro, a quem o autor dedicou seu poema, caíram em cativeiro, sendo libertados depois de pagar os prejuízos pelos danos causados aos árabes no período da guerra. As mortes de D. Sebastião, do sultão Abu Aballah, seu aliado e de Abd Al-Malik, esse último por problemas de saúde, agravados pelos combates dessa batalha, ficara conhecida, entre os árabes com o nome “Batalha dos Três Reis”. Sobre esse assunto, ver a obra de SILVA, Libório Manuel da. A Nau Catrineta e a História Trágico-Marítima: Lições de liderança. V.N.Famalicão – Portugal: Centro Atlântico, 2010.

Ao construir seus arranjos estéticos, Teixeira circularia os seus primos semitas com os mesmos predicativos a que os europeus costumavam dispensar às gentes árabes. Assim, será visível o quanto esse tratamento europeu, deformador e desrespeitoso, encontra acolhimento em seus minguados versos, ao verificarmos a maneira pela qual se dirige à figura do Profeta do Islã, com um apelido repleto de menosprezo. Além desse tratamento desfigurativo, dispensado ao Fundador do Islamismo, o autor desses “versos empolados”, alcunha as gentes árabes do Marrocos de “desaforadas”, “atrevidas”, “petulantes”, “inconvenientes”, entre outros significados que o predicativo proterva carrega consigo, conforme podemos observar dos seus versos:

LXXIX

Com lágrimas d’amor e de brandura, De seu Senhor querido ali se espede, E que a vida importante e mal segura Assegurasse bem, muito lhe pede, Torna à batalha sanguinosa e dura, O esquadrão rompe dos de Mafamede, Lastima, fere, corta, fende, mata, Decepa, apouca, assola, desbarata. LXXX

Com força não domada e alto brio, Em sangue Mouro todo já banhado, Do seu vendo correr um caudal Rio, De giolhos se pôs, debilitado. Ali dando a mortais golpes desvio, De feridas medonhas trespassado, Será cativo, e da proterva gente Maniatado em fim mui cruelmente.

(TEIXEIRA, 2004, p.232, 234 – grifos nossos)

Sobre as motivações ou fundamentos acerca dessas desconsiderações para com o Profeta Muhammad e as gentes árabes do Marrocos, seus parentes semitas, é difícil encontrar justificativas que expliquem tal comportamento, a não ser aquela variante

histórica de que se o autor de Prosopopeia foi um homem de seu tempo, estando sujeito às forças exercidas pela intransigência europeia, através do aniquilamento de outras manifestações religiosas, como atestam os motivos pelos quais praticara um uxoricídio (CANDIDO; CASTELLO, 1985, p. 26), conforme se observa de sua lamentável biografia.

Talvez alguém que tenha traído a sua própria fé, abjurado, duas vezes, as suas próprias origens, não teria problema nenhum em ultrajar seus primos, esquecer a história de simpatia para com os adeptos do livro7, desagradecer os benefícios que os seguidores do Islã deram ao seu povo, o respeito com que sempre foram tratados no mundo muçulmano, terras onde os judeus sempre encontraram acolhimento confiante, para escapar das perseguições religiosas movidas pelos reis da cristandade, e para vexame do autor barroco e por ironia do destino, foi com a “proterva gente” árabe do Marrocos que seus pares conseguiram abrigo seguro, quando do desmantelamento das judiarias e aljamas da Peninsula Ibérica, conforme se pode verificar dos relatos do professor emérito da Universidade do Amazonas, Samuel Benchimol, de origem judaica, reproduzidos a seguir:

A perseguição e expulsão hispano-portuguesa forçaram os judeus a buscar, desesperadamente, novas comunidades e países onde pudessem sobreviver como judeus, recomeçando as suas vidas tal como fizeram antes os seus antepassados, vítimas da opressão, perseguição e intolerância. Muitos judeus hispano-portugueses foram para a Holanda, outros fugiram para o Egito, Turquia e Grécia, e uma grande maioria procurou abrigo no norte da África, especialmente no Marrocos. (BENCHIMOL, 1999, p. 230)

7 Para Samir El Hayek, tradutor do Alcorão Sagrado, os árabes se referem aos judeus como o “povo do livro”,

os “adeptos do livro”, entre outras simpáticas denominações. Esse sinal de reconhecimento e respeito para com o livro sagrado dos judeus e dos cristãos, a Bíblia Sagrada, pode ser percebido constantemente na leitura das linhas poéticas do Alcorão Sagrado, conforme se verifica nos versos 2:101; 3:23; 5:44; 28:49, entre dezenas deles, que falam da natureza divina da Bíblia, definida no Alcorão Sagrado como o Livro de Deus (kitab Allah). Sobre esse assunto ver HAYEK, Samir El. ALCORÃO SAGRADO. Versão portuguesa diretamente do árabe por Samir El Hayek. São Paulo: TANGARÁ – Expansão Editorial S/A, 1975.

Desconhecendo o tom da fraternidade e solidariedade árabe, fartamente distribuída aos seus contemporâneos, Bento Teixeira preferiria cantar louvores bajulatórios aos dirigentes europeus, no caso, ao fidalgo Jorge de Albuquerque Coelho. Isso talvez explique a carência de inspiração de sua obra, em especial, quando se propõe a falar sobre os pretensos atos heroicos do Governador da Província de Pernambuco, terceiro e mais importante episódio do poema.

Talvez a pressa em publicar os versos para ganhar o “beneplácito dos poderosos” (BOSI,1994, p.36) e se livrar das masmorras pelo crime praticado contra a esposa, Filipa Raposa, uma cristã-velha, justifique essa tentativa de agradar os portugueses, em detrimento das gentes árabes, beneficentes de seu povo, comprometendo, desta maneira, a feitura de seus versos, o estilo de sua obra, fatores esses que não se vê na “poesia muito mais rica, a do baiano Gregório de Matos Guerra.” (BOSI, 1994, p.37).