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Gregório de Matos: o s árabes na “Boca do Inferno”

Cão de latidos que não morde (mas lambe)

Michel Sleiman

Nascido baiano (1636), filhos de pais afortunados, Gregório de Matos Guerra passou a infância em sua cidade natal, onde estudara com os padres da Companhia de Jesus, mudando-se, no ano de 1650, para a cidade de Coimbra, a fim de concluir seus estudos em Direito. Terminada sua formação acadêmica, casa-se no ano de 1661, em terras lusitanas, com Micaela de Andrade, de família abastarda, com fortes influências na corte, teria intercedido para nomeá-lo, dois anos depois da aliança conjugal, juiz na região do Alentejo.

Exercendo as funções da magistratura em Portugal, durante quase duas décadas, o poeta baiano enviuvara no ano de 1681, fato esse que deve ter ocasionado sua vinda, já aos cinquenta anos, para a cidade da Bahia. Aqui chegando, “levou uma vida boêmia e indisciplinada de advogado de poucas causas e menores recursos, improvisando versos, cantando à viola, caçoando de toda gente” (CANDIDO; CASTELLO, 1985, p.44). Essa é a síntese, ressalvadas algumas variantes, da biografia de Gregório de Matos, contada por diversos críticos literários brasileiros.

Em relação às diversas biografias do poeta barroco, existe, no meio literário, uma forte tendência em associar a produção poética do baiano Matos Guerra, aos

acontecimentos de sua atribulada e desconcertante vida. Desta forma, deparamo-nos com diversos estudos que estabelecem correspondências entre o conjunto de sua obra, especialmente suas sátiras, às muitas dificuldades acometidas ao poeta, embaraços ocasionados, principalmente, pela falência dos engenhos da família e pela perda de prestígio oficial, de que antes gozara nas cortes lusitanas.

Sem conseguir superar os diversos reveses que o destino lhe impôs, Gregório teria ainda que testemunhar a ascensão da nobreza Caramuru, que suplantara a antiga aristocracia lusitana a que pertencia. Essas situações, desfavoráveis ao poeta barroco, podem ser uma possível explicação sobre a origem de um visível ressentimento que caracteriza o poeta, principalmente se levarmos em consideração o quanto a nobreza nativa seria recorrentemente enxovalhada pelos seus versos satíricos.

Atacando os cidadãos da Bahia, com a distribuição indiscriminada de injúrias de diversas naturezas, Gregório não pouparia nenhum segmento das classes sociais baianas. Assim, observamos mulheres, mulatos, negros, religiosos, funcionários públicos, nobres, ricos, pobres, comerciantes, entre outros, serem vistos, a partir de sua lente estética, com um prisma sempre depreciativo, destituindo-os de todos os atributos positivos que também se faz presente em qualquer indivíduo, em qualquer cidadão.

Esse desprezo a que o poeta acostumou desferir, quando se dirigira aos seus contemporâneos, ultrapassaria as fronteiras de sua terra natal. Dilatando o alvo de seus insultos, o poeta Gregório de Matos Guerra se dirigiria, agora, às gentes árabes, em especial ao Profeta Muhammad, com a mesma exaltação de ânimo a que se acostumou denominar, em seus versos, os habitantes da província baiana.

Num tom virulento, que em muito superaria Pero Vaz de Caminha, Gandavo, Gabriel Soares de Sousa e Bento Teixeira, Gregório de Matos, em semelhança com os

colonos, deprecaria, com sua eloquência, todo o aniquilamento da descendência árabe, porquanto seria da “vontade divina”, que a profecia acerca da destruição da descendência ismaelita, divulgada em “prosa por Vieira”, em “versos Matos”, se confirmasse, conforme aferimos dos trechos abaixo, reproduzidos de um poema dedicado a divulgar a então quimera sebastianista:

Que esta ponta tão pequena, mas tão potenta e tão forte, a três das grandes deu morte cruel, afrontosa, e obscena: quer dizer, que a sarracena potência, ou poder tirano do pequeno maometano tirara a seu desprazer as três partes do poder do grande Império Otomano.

E que pelo prejuízo, que a pequena ponta fez, das dez maiores às três as chamou Deus a juizo, e as condenou de improviso, ao fogo voraz, que as coma, e daqui o Profeta toma (pois Deus assim a condena) o fim da gente agarena e seita do vil Mafoma. ... Estes secretos primores não são de idéia sonhada, são da escritura sagrada, e de santos escritores: se não alego doutores se poupo esses aparatos, é porque basta a insensatos por rudeza ou por cegueira, que em prosa os compôs Vieira traduziu em versos Matos.

Transformando em trabalho estético o mito do sebastianismo, já amplamente propagado pelo padre Antonio Vieira, Gregório de Matos lembraria uma realidade a qual ainda não se ajustara harmoniosamente. A essa dura realidade, a derrota do exército lusitano para os árabes do Marrocos e a lamentada morte do rei luso, encaminhar-se-iam outras de consequências mais cruciais e prejudiciais aos portugueses, tais como a perda da autonomia lusitana e o encolhimento de seu Império nas vastas terras do Oriente.

Para superar esse doloroso tempo, essa amarga lembrança, o poeta desenvolveria, dentro de si, dois sentimentos que se interagem e se complementam na medida em que a esperança do retorno do Encoberto, fantasiosamente anunciado por um cometa, a mais alta

astrologia/dos sábios gimnosofistas (MATOS, 2004, p.129), propiciaria condições para o

restabelecimento do Império Luso, e a reapresentação da antiga batalha que vitimou três reis, no Norte da África. Como essa reencenação se localizava no campo do desejo, do imaginário, só restava ao poeta lançar maldições, maldizer a existência árabe, vilipendiar seu maior vulto, cultivando a confiança de que, um dia, a nação lusitana, com o regresso do Desejado, voltaria a ser o “terror do Oriente”, o terror da nação “maometana”.

Voltando aos condicionamentos históricos que influenciaram o poeta Gregório de Matos, traços esclarecedores de sua obra estética, Alfredo Bosi, ao formular um valoroso estudo sobre as motivações poéticas de Gregório, no livro Dialética da Colonização (1992), optaria por articular a produção artística do poeta baiano à sua formação humanística, aos acontecimentos pessoais experenciados por Gregório, às determinantes históricas que o tempo lhe impôs.

Nessa estreita trilha, o crítico literário acrescentaria algumas informações sobre Matos Guerra, que podem sinalizar possíveis esclarecimentos em torno dos motivos pelos

quais o poeta destilaria tanto ódio ao fundador do islamismo, às gentes árabes, aos descendentes de Ismael.

Deste modo, Alfredo Bosi afirmaria que Gregório de Matos, homem estreitamente ligado à máquina administrativa colonial, dela dependia para obter uma boa aceitação nos meios sociais que a vida, anteriormente, conferira a ele, consoante se observa de suas afirmações ao longo do ensaio e, especificamente, da parte atinente ao complemento da biografia do poeta seiscentista:

Como intelectual e clero, Gregório não se situava estritamente no lugar social da produção ou da circulação de bens materiais. Cabia-lhe um quinhão no aparelho administrativo, no caso a burocracia colonial ou a igreja. Aí, de fato, franquearam-lhe carreira decorosa o estamento de origem, os títulos obtidos em Coimbra de doutor in utroque jure além do brilho do literato consumado. Foi vigário-geral da Sé da Bahia e seu tesoureiro-mor a partir de 1681 quando ainda gozava do valimento de dom Gaspar Barata, primeiro titular daquela arquidiocese. (BOSI, 1992, p. 99)

De rica formação humanística, Gregório de Matos exercera diversos cargos na máquina administrativa, tanto da metrópole, quanto da colônia, tanto nos negócios do Estado, quanto da Igreja Católica. Essa experiência burocrática, aliada à formação jesuítica que recebera na colônia e em Portugal, deve ter contribuído bastante para que o poeta conhecesse, mais intimamente, as consequências dos desfechos desfavoráveis à Coroa portuguesa e aos seus súditos, na Batalha dos Três Reis, em especial a morte de Dom Sebastião, dando seguimento a um sentimento muito lusitano de que, se alguma coisa está errada, a culpa é sempre do “vizinho ao lado”, no caso, do vizinho árabe pela crise de sucessão e pela perda de independência lusitana para a coroa espanhola.

Além desse sentimento, tipicamente lusitano, o doutor in utroque jure seria testemunha dos vários acontecimentos que mudaram o destino e o funcionamento da máquina administrativa lusitana, como a restauração do trono português, por Dom João IV, quatro anos após o nascimento do poeta barroco; as guerras vitoriosas que Dom Afonso VI empreendera a favor da restauração da independência portuguesa, sua abdicação; a subida ao trono do regente Pedro II; os acordos anteriormente feitos com a Inglaterra, prejudiciais ao Império lusitano; e as lutas internas das facções palacianas.

Todos esses fatos, esses distúrbios, essas incertezas, seriam fatores geradores de um ambiente tenso, mergulhado em preocupações políticas, governativas, militares, entre outras, em que Gregório de Matos viveu e, aliados à postura arrogante de acreditar que a monarquia lusitana era a escolhida para realizar “a vontade de Deus”, deu-se a crença de imputar às gentes árabes, a causa primeira de toda essa sorte de agouros.

Essa disposição em colocar os árabes do Marrocos, como os principais responsáveis pelos maus fados portugueses, poderá explicar a existência desse sentimento rancoroso, beirando vingança, que animou os lusitanos durante séculos. Isso também poderá servir para esclarecer as razões que motivaram o poeta a colocar as gentes árabes na “Boca do Inferno”, visto que são retratados, artisticamente, em suas sátiras, como assemelhados à vileza, à torpeza, à heresia, entre outros aviltamentos de diversos matizes.

Nessa busca pelos “culpados”, o poeta barroco reatualizaria as distensões entre os europeus e a comunidade árabe, iniciada com as campanhas das Cruzadas, alimentada com as guerras de reconquista na Península Ibérica, com a tentativa de colonizar o Norte da África, de predominância árabe, resultando, como saldo de toda essa campanha difamatória e agressiva, sentimentos antissemitas, antiarábicos, já anteriormente desenvolvidos.

Sentimentos esses que podem justificar o aparecimento de versos raivosos, virulentos, doentios, em torno do personagem mais importante para as nações árabes, o Profeta Muhammad, conforme se observa das sátiras que Gregório de Matos fizera em detrimento do Governador Antonio Luiz, por este não ter lhe concedido alguns benefícios solicitados. Nessa décima, é possível verificar o quanto o ódio concentrado às nações árabes, conforme observamos, adquire contornos mais claros, mais nítidos em suas sátiras:

Que, porque furto, o que coma, me enforquem, pode passar, mas que me mande enforcar a bengala de um Sodoma! quem sofrerá, que Mafoma me queime por mau cristão, vendo, que Mafoma é cão, velhaco, e de suja alparca, e o mais torpe heresiarca,

que houve entre os filhos de Adão. (MATOS, 2004, p.149 – grifos nossos)

Dispensando, ao Profeta árabe, todos os epítetos depreciativos que conseguira juntar ao longo de sua carreira, seja como humanista, seja como magistrado ou como poeta, Gregório de Matos configuraria, continuadamente, sob as lentes do demoníaco, o legislador primeiro do Islã.

Na sua poética satírica, é possível observar, no entanto, a continuidade, agora, com forte rigor, do olhar intransigente e agressivo que sempre caracterizou o europeu ao diferente de si, aos que lhes impõem alguma contrariedade, não sobrando alternativa de lidar com o problema de resistência e vitória árabe, a não ser desenvolver, dentro de si, ressentimentos diversos, senão desejos vingativos.

Se em Gregório de Matos Guerra essa configuração das gentes árabes ultrapassa as medidas, o grau habitual a que estamos acostumados, superando os conceitos que definem a natureza da sátira, não resta alternativa, a não ser acreditar que, além de nos fornecer uma análise do meio vivenciado, o poeta deixara para a posteridade, por efeito de seus agressivos versos, pesarosos exemplos de antipatia contra um povo que teve um único pecado: o de incluir, em suas relações amistosas, a ideia de que israelitas, cristãos e ismaelitas, entre outros, podem viver harmoniosamente, consoante viviam durante o período Omíada, tempo de paz e tolerância, lembrado pela prosa de padre Antonio Vieira, no entanto, esquecido pela poética dos “versos Matos.”