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3. O MOVIMENTO DE JUSTIÇA GLOBAL COMO ATOR NÃO

3.2 O PROTAGONISMO DO MOVIMENTO DE JUSTIÇA

3.2.1 Bases conceituais

Registrou-se que o Movimento de Justiça Global surgiu no contexto de ocorrência do levante zapatista, realizado em 1994. As ações do Ejercito Zapatista, embora localizadas entre as fronteiras territoriais mexicanas e restritas a algumas cidades do Estado de Chiapas, na região sul do país, reverberaram pelo mundo como um grande exemplo de resistência. Os povos camponeses indígenas integrantes do Ejército transformaram suas lutas por garantias de direitos, acesso à terra e condições dignas de vida numa discussão muito mais ampla sobre o problema da probreza e exclusão. Desse modo, embora a princípio sua atuação representasse o questionamento aos efeitos internos da adoção de políticas econômicas em conformidade com preceitos neoliberais, para os quais devem prevalecer as leis do mercado e a liberdade do capital, externamente encontrou respaldo em parcelas da população mundial que, guardadas as devidas proporções e variações, submetiam-se às mesmas circunstâncias excludentes.

Todavia, mais do que servir como modelo da possibilidade e necessidade de resistir, o zapatismo apresentou à sociedade civil o poder das redes. Castells denomina-o “o primeiro movimento de guerrilha informacional”405, por ter criado um evento de mídia para difundir sua imagem e mensagens. Isso porque, apesar de ter montado uma estrutura armada e realizado os preparativos para a guerra de guerrilha, ocupando cidades, protegendo-se em meio à floresta e efetuando ataques contra policiais e soldados do governo, a principal estratégia residiu no uso das redes e da Internet. Conforme o autor, “a capacidade de os zapatistas comunicarem-se com o mundo e com a sociedade mexicana e de captarem a imaginação do povo e dos intelectuais acabou lançando um grupo local de rebeldes de pouca expressão para a vanguarda da política mundial.”406

Da forma como se deu, a apropriação da tecnologia informacional ultrapassou o fim instrumental. É inquestionável o ineditismo presente na utilização dos meios tecnológicos como ferramenta de organização das ações do grupo, de comunicação e troca de informação entre os

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CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Tradução Klauss Brandini Gerhardt. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. v. 2. p. 103.

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membros. Contudo, o papel assumido pela rede tem um significado ainda mais notável e relevante quando se pensa na conexão estabelecida entre os indivíduos de determinado país e o resto do mundo. Nesse sentido, além dos propósitos organizacional, comunicacional e informativo da rede, o evento gerado em torno do levante zapatista marca o momento em que novos fluxos transpõem as fronteiras, costurando um cenário de cooperação das sociedades civis e introduzindo seus atores sociais num espaço de interdependência.407 E com isso, a emergência do Movimento de Justiça Global representa, também, o começo de um processo transnacional responsável por introduzir temas e demandas sociais na agenda internacional.

Para este trabalho, a formação de um movimento social global de resistência, que tem por finalidade questionar a ordem vigente e os valores predominantes que a norteiam, não deve ser compreendida como fenômeno isolado e desvinculado de outros fatos manifestos no âmbito da sociedade internacional contemporânea. Na atual conjuntura, moldada pelos efeitos da revolução informacional, pela interligação dos assuntos domésticos e de política exterior e por relações complexas e interdependentes, a atuação desse movimento produz influências diretas e indiretas sobre os atores, sejam estatais, sejam não estatais. Portanto, há que se instituir uma ligação entre a sua existência e uma visão ampliada do objeto da disciplina de Relações Internacionais e, para tanto, é necessário retomar noções apresentadas a respeito da teoria da interdependência, haja vista que seus pressupostos constitutivos são aplicados neste tópico.408

A concepção interdependentista observa o cenário político externo segundo um diversificado conjunto relacional e reconhece que processos transnacionais vêm modificando o sistema internacional, antes centrado na figura do Estado e caracterizado por suas inter- relações. Considera que a sociedade internacional é composta por relações de cooperação e interdependência, não devendo ser definida

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“A utilização amplamente difundida da Internet permitiu aos zapatistas disseminarem informações e sua causa a todo o mundo de forma praticamente instantânea, e estabelecerem uma rede de grupos de apoio que ajudaram a criar um movimento internacional de opinião pública que praticamente impossibilitou o governo mexicano de fazer uso da repressão em larga escala. As imagens e as informações provenientes dos zapatistas, e a respeito deles, atuaram de maneira decisiva sobre a economia e a política mexicanas.” Ver: Idem, p. 105.

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Ver os itens 1.2.2 Desenhos da Interdependência e 1.2.3 A rede e a interdependência como bases de análise.

apenas como espaço belicoso e conflitivo regido pelo poder das armas e da força, conforme pressupõe a perspectiva realista. E entende, ainda, que elos formam-se entre as sociedades nacionais a partir de um constante fluxo de contatos, que envolve os governos, instituições internas, indivíduos e grupos sociais. Assim, o critério definidor para o estudo da disciplina deixa de basear-se na conduta estatal – estatocentrismo – , passando a fundar-se na constatação de que canais múltiplos conectam as sociedades e, direta ou indiretamente, exercem influência na designação dos caminhos da política externa a ser concretizada pelos respectivos países – multicentrismo.

Referida teoria amplia o conceito de relações internacionais, permitindo verificar que uma vasta gama de atores é responsável pela sua realização. Em consequência, o poder fragmenta-se, deixando de ser calculado como um conjunto ou totalidade que se esgota no predomínio do poderio bélico-militar. É necessário levar em conta as desigualdades existentes em cada área específica de interação e negociação, já que cada ator detém maior ou menor habilidade e capacidade, a depender do contexto e do tema em questão.409

No âmbito da qualificação das relações internacionais, segundo uma concepção de fluxos que transpõem as fronteiras e interferem na sociedade internacional, é possível pensar no Movimento de Justiça Global como um ator desse cenário. Acredita-se que, por ser capaz de captar a conciliação dos processos de fragmentação estatal e emergência de novos atores – que se constituem com o potencial transformador da revolução tecnológica informacional e organização de estruturas em rede –, incorporando, assim, outras formas de manifestação e exercício do poder, a teoria interdependentista dispõe de elementos para inserir o Movimento de Justiça Global no campo de estudo das Relações Internacionais. Diante disso, retoma-se o conceito e os critérios necessários para examiná-lo em sua condição de ator não estatal.

Em momento anterior, destinado a abordar conceitualmente a temática dos atores, procurou-se observar aquelas contribuições que

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A teoria da interdependência reconhece que, no âmbito das relações internacionais, fluxos diversos ultrapassam as fronteiras, e são exatamente as limitações ou os ganhos gerados aos atores envolvidos nessas interações o que distingue uma situação de interdependência. Custos ou benefícios maiores ou menores existirão para cada ator a depender da sua posição na relação. Assimetrias e desequilíbrios compõem os resultados das relações entre as partes e aquela com maior recurso de poder para controlar resultados é que assumirá maior vantagem.

trazem consigo uma perspectiva ampliada das relações internacionais e uma percepção aberta da sociedade internacional, conforme propõem os desenhos da interdependência e tecnologia informacional. O Estado não assume posição de referência, e os atributos comumente utilizados para caracterizá-lo como ator não funcionam como parâmetro de análise da manifestação do Movimento de Justiça Global. A qualidade de ator não estatal desse movimento será examinada não por atuar no cenário internacional de modo semelhante à figura estatal ou a outros atores não estatais reconhecidos e consolidados, mas por conformar-se ou não, à sua maneira, com os critérios elencados no conceito adotado por esta tese.410

A elaboração conceitual de Esther Barbé, citada no segundo capítulo, compreende os atores como agentes que, atuando como unidade, possuem habilidade para mobilizar os recursos que lhes permitam alcançar seus objetivos, são dotados de capacidade para exercer influência sobre os demais atores da sociedade internacional e gozam de certa autonomia para agir.

A autora pauta-se por critérios funcionais e considera que estão ligados a fatores concretos e temporais. Como consequência, ficam estabelecidas a variabilidade de objetivos e a possibilidade de alteração das habilidades e dos mecanismos pelos quais se efetiva o exercício de influência, a depender do cenário em questão e atores que nele interagem. Admitindo a variação dos elementos que integram o seu conceito, no lugar de tomá-los como estáticos, a autora manifesta-se em consonância com uma perspectiva plural e multicêntrica da sociedade internacional contemporânea, e é em razão disso que seu aporte conceitual é adotado nesta tese para efetuar o estudo sobre o protagonismo do Movimento de Justiça Global.