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Bem-estar espiritual dos doentes em fase final de vida

Aquando da caracterização da amostra, constatámos que a sua maioria professava a religião católica, o que se compreende dado que o nosso pais é marcado por uma tradição judaico-cristã. Porém alguns doentes percecionaram uma diminuição do bem-estar espiritual global, sendo mais acentuada especialmente na dimensão sentido/paz do que a nível da fé. A fé na sua dimensão de transcendência com uma força divina, com uma perspetiva para além da vida terrena é assumida como âncora da própria existência. Contudo poderemos considerar o bem-estar espiritual das pessoas com doença oncológica, da amostra em estudo, na sua globalidade como positivo e a um nível médio.

Estes dados corroboram os resultados do estudo de validação da FACIT-Sp de Peterman e colaboradores (2002) em doentes oncológicos e de McClain (2003) em doentes em fase final de vida. Corroboram ainda a perspetiva de Johnson e colaboradores (2007) de que a religiosidade, as crenças espirituais e uma revisão de vida, poderão ser importantes contributos para o bem-estar espiritual e serem um antídoto para a angústia espiritual, ajudando as pessoas a prepararem-se para o fim das suas vidas.

Assim os nossos resultados confirmam que é especialmente na fé ou nas crenças espirituais que muitos doentes vão procurar conforto e força para encontrar o bem-estar espiritual que cada pessoa vivencia quando sente que tem um

172 propósito que a ajuda a justificar a sua existência e que lhe dá um significado último para a sua vida (McClain et al., 2003; Hafen et al., 1996).

Alguns doentes nesta fase e confrontados com a finitude das suas vidas, percecionaram que não só que a doença lhes fortaleceu a fé ou as suas crenças espirituais, como também independentemente do que acontecesse com as suas doenças, sentiram que tudo iria acabar em paz e harmonia. Tais dados corroboram a perspetiva de Hafen e colaboradores (1996) de que a espiritualidade pode ajudar as pessoas a reconstruírem-se através do seu próprio sofrimento.

Tal como no estudo de Murray e colaboradores (2004) em doentes em fase final de vida, os nossos dados poderão evidenciar a necessidade de cuidados espirituais. Facilitar, promover um suporte espiritual, poderá ajudá-los a reforçar a fé, e encontrar significado, sentido e valor para as suas vidas, independentemente do horizonte temporal futuro, mas alicerçado no tempo passado.

7.1.1 Influência das variáveis sócio-demograficas no bem-estar espiritual dos doentes com doença oncológica na fase final de vida

Relativamente ao género verificou-se não existirem diferenças significativas sob o ponto de vista estatístico no que se refere ao bem-estar espiritual global (FACIT-Sp) e nas suas dimensões em particular. Porém estes resultados de algum modo surpreendem-nos, pois a dimensão religiosa/espiritual assume tradicionalmente uma maior relevância para o género feminino. De facto em estudos desenvolvidos anteriormente nomeadamente por Lauver (2000), Peterman e colaboradores (2002) e Pinto (2007) reportam valores mais significativos de bem- estar espiritual e especialmente de maior religiosidade/fé para as mulheres. Provavelmente os resultados deste estudo, poder-nos-ão levar a inferir que numa situação de vivência de doença oncológica em fase final de vida, as diferenças de género a nível da perceção do bem-estar espiritual tendem a esbate-se.

Em relação à idade, quanto maior era a idade da pessoa, mais esta recorreu à fé, procurando através dela conforto e força, na esperança de uma intervenção divina ou de uma força transcendental corroborando assim a expressão popular “só a fé nos pode salvar”. Tendo em consideração que um dos itens da dimensão fé é a expressão ”A minha doença tem fortalecido a minha fé” pode-se inferir que, com o avançar da idade e face a um futuro incerto, de sofrimento e temporalmente curto, tal com refere Hafen e colaboradores (1996) e Hall (1986), a espiritualidade pode ajudar as pessoas a sublimarem o seu próprio sofrimento.

173 Estes resultados também se verificaram quer no estudo o estudo de Kruse e colaboradores (2007) desenvolvido em doentes em fase final de vida, quer no estudo desenvolvido com doentes oncológicos por Peterman e colaboradores (2002), em que os participantes mais idosos apresentavam níveis mais elevados de bem-estar espiritual.

Quanto ao estado civil, as pessoas solteiras apresentavam valores mais elevados no bem-estar espiritual global (FACIT-Sp) e mais sentido/paz, contrariamente ao verificado no estudo de Peterman e colaboradores (2002) em que os casados eram os que revelavam melhor bem-estar. Esta constatação poderá revelar uma aparente contradição. Assim, se por um lado a situação de solteiro poder estar associada a uma menor presença de suporte social e por conseguinte, na perspetiva de Holland e colaboradores (1999), a um menor recurso às crenças espirituais, a não preocupação com os seus descendentes poderá ter ajudado a compensar um menor suporte social. A ausência de descentes poderá ter favorecido, a procura de sentido/paz direcionado para outros propósitos de vida, o que poderá explicar a perceção de melhor bem-estar espiritual na fase final de vida.

Embora estudos desenvolvidos com doentes oncológicos, nomeadamente Holland e colaboradores (1998), Peterman e colaboradores (2002), Pinto (2007) revelassem que as pessoas com menor escolaridade recorriam mais à sua fé ou crenças espirituais, percecionando que o controlo das suas situações dependeria de uma intervenção divina ou força transcendental, neste estudo tal não se constatou. Assim, não se verificaram correlações estatisticamente significativas entre escolaridade e o bem-estar espiritual global (FACIT-Sp) e suas dimensões, donde se poderá inferir que a escolaridade não teve influência neste domínio nos doentes nesta fase da doença.

Também a situação profissional parece não ter tido influência no bem-estar espiritual dos doentes, uma vez que não se verificaram diferenças significativas entre as médias nas diferentes situações profissionais.

O número de filhos e o agregado familiar, isto é ao número de pessoas que constituíam o agregado família ou que viviam em coabitação, revelaram correlações não significativas com o bem-estar espiritual, donde se infere que não influenciavam o bem-estar a este nível. Sendo que estas variáveis estão relacionadas com a rede familiar mais próxima, poder-se-á também inferir que não será a sua dimensão quantitativa, mas provavelmente a qualidade dessa rede de suporte que influenciou os resultados. Terá sido a sua presença efetiva e afetiva que influenciou o bem-estar espiritual dos doentes, ajudando-os a encontrarem paz

174 interior, harmonia, esperança, propósito de vida, sentirem-se únicos, dignos e valorizados (Murray et al., 2004).

Na religião, verificaram-se diferenças estatisticamente significativas entre os grupos “crentes” os que professavam uma religião ou crença e “não crentes” os que não professavam nenhuma religião ou crença, quer na FACIT-Sp global quer nas suas dimensões sentido/paz e fé. O grupo dos “crentes” apresentava médias mais elevadas, sendo a diferença mais significativa na dimensão fé. Assim sendo, poder- se-á inferir que a dimensão vertical/religiosa da espiritualidade, é promotora do bem-estar espiritual através da fé, dando sentido à própria existência mesmo que esta seja perspetivada com um horizonte temporal curto. Confrontados com a sua finitude, a crença e relação íntima com Deus ou a crença numa força superior ajudará a pessoa a preservar ou a fortalecer a sua fé e a encontrar significado na sua doença, no seu sofrimento e na sua existência. Apesar das circunstâncias, também ajudará a pessoa a sentir-se em paz consigo próprio, reconciliando-se com o seu passado, com a própria vida e com as pessoas. Neste sentido, a religião também parece ajudar as pessoas a terem sempre um sentido de vida, que pode sofrer alterações durante o processo de doença, mas que está sempre presente (Breitbart, 2004).

7.1.2. Influência das variáveis da doença no bem-estar espiritual dos doentes com doença oncológica na fase final de vida

Quanto ao conhecimento que os doentes demonstraram sobre a doença, e tal com referido no capítulo VI (cf. Resultados) esta variável foi recodificada, em doentes com “conhecimento específico” da doença oncológica, quando se referiam à doença pelo diagnóstico clínico, e em doentes com “conhecimento global” da doença oncológica, quando a designavam em termos muito genéricos. Relativamente à correlação entre o conhecimento sobre a doença e o bem-estar espiritual, verificaram-se diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos na FACIT-Sp global e na sua dimensão sentido/paz. Os doentes que demonstravam “conhecimento específico” da doença apresentavam médias mais elevadas, comparativamente com os doentes que demonstravam possuir apenas “conhecimento global”. Para a análise deste resultado importa referir que 95,6% dos doentes demonstravam possuir um conhecimento muito genérico que, como anteriormente referido, se designou por “conhecimento global”. No contacto estabelecido com os doentes durante a recolha de dados e a propósito desta questão, sobre a doença que estavam a tratar no hospital e nos serviços de

175 cuidados paliativos, constatámos que alguns doentes, apesar de níveis elevados de escolaridade, demonstraram um conhecimento muito genérico sobre a sua doença por vontade própria, dizendo expressamente que não queriam saber mais. Contudo este tipo de conhecimento, em alguns casos estava relacionada com a sua baixa escolaridade, com a opção da equipa de saúde ou da família por considerarem que o doente não devia saber mais para minimizar o seu sofrimento. Assim, conhecendo a natureza da sua doença e suas implicações presentes e futuras, os doentes percecionavam melhor bem-estar espiritual global, não por eventualmente encontrarem nomeadamente mais conforto ou mais força na sua fé, mas porque provavelmente esse conhecimento os ajudava a encarar a situação de uma forma realista e desenvolver estratégias melhor adaptativas. Estes dados confirmaram a importância do acolhimento e da informação que era transmitida ao doente, aquando do primeiro contacto com a equipa do serviço de cuidados paliativos.

No que concerne ao conhecimento do tipo de tratamento a que os doentes foram submetidos durante o decurso das suas doenças, tal como referido, recodificada em “nenhum”, “tratamento cirúrgico”,” tratamento não cirúrgico” e “tratamento cirúrgico e não cirúrgico” verificou-se que a única diferença estatisticamente significativa se situava na dimensão fé e que essa diferença se verificava entre o grupo que não teria tido qualquer tipo de tratamento (“nenhum”) e o grupo que efetuou tratamento “não cirúrgico”, sendo que estes apresentavam média mais elevada. Estes dados permitem inferir que relativamente à influência do tipo de tratamento no bem-estar espiritual dos doentes com doença oncológica na fase final de vida, o tratamento “não cirúrgico” que incluí quimioterapia, radioterapia e hormonoterapia, favoreceu a fé. Eventualmente estes resultados, poderão estar relacionados com a representação social sobre estes tratamentos específicos para a doença oncológica. Assim terem sido sujeitos a terapêutica considerada especifica para o cancro, pode ter induzido a esperança num possível de controlo da doença.

Quando comparámos o grupo dos doentes assistidos no “internamento” e o grupo assistido na “consulta externa” encontrámos diferenças significativas quer ao nível do bem-estar espiritual global (FACIT-Sp) quer ao nível da dimensão fé, e pouco significativa na dimensão sentido/paz. Os doentes assistidos na consulta externa apresentavam médias significativamente mais elevadas na FACIT-Sp global e nas suas dimensões, sendo a dimensão fé a que comparativamente apresentava média mais elevada. Estes resultados poderão estar relacionados com o facto dos doentes assistidos na consulta externa apresentarem uma melhor situação clinica, eventualmente com maior autonomia o que lhes potenciaria a

176 perceção de melhor bem-estar espiritual. Do mesmo modo a continuidade da assistência em consulta externa, traduzida num aumento do número de consultas, pareceu favorecer o bem-estar espiritual talvez porque os doentes ao sentirem-se mais acompanhados pela equipa de cuidados paliativos, desenvolveram expectativas mais favoráveis, acreditando que deste modo que poderiam acrescentar mais dias à vida. Contrariamente, os doentes internados no decurso da assistência na sua fase final de vida, tenderam a revelar uma diminuição do seu bem-estar espiritual e da sua fé, que se foi acentuando com a necessidade crescente de novos internamentos. Esta necessidade esteve relacionada com o agravamento da situação clínica dos doentes e consequente da necessidade de controlo dos sintomas, que requer uma assistência multidisciplinar contínua assim com a necessidade de recuperação das famílias cuidadoras em situação de

bournout. Pensamos que esta alteração do bem-estar espiritual se deverá à

significação que atribuíam a essa necessidade, isto é de que provavelmente estariam a viver os últimos dias das suas vidas. Assim e pelo que nos foi dado observar, muitos doentes internados quando confrontados com esta realidade, terão desenvolvido um coping religioso/espiritual negativo que se traduziu numa revolta contra Deus, num questionamento sobre a existência e o amor de Deus e numa rotura com os valores em que acreditavam. Este dado contraria de certo modo os resultados dos estudos desenvolvidos por Koening e colaboradores (1995), Siegel e colaboradores (2001) e Tix e Fazier (1998), que apontam para um maior recurso estratégias de coping religioso/espiritual positivo, promotor de melhor bem-estar espiritual, do que a estratégias de coping religioso/espiritual negativo, quando as pessoas se confrontam com problemas de saúde /doença e com a possibilidade de morte. Assim, este resultado do nosso estudo, aponta para que o bem-estar espiritual dos doentes internados em cuidados paliativos, deverá ser um foco de atenção dos enfermeiros, procurando facilitar o apoio espiritual adequado às necessidades espirituais identificadas em cada caso em particular.