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5. ESCUTANDO SUAS VOZES

5.2 Contexto de iniciação sexual e reprodutiva

5.2.4 O bem e o mal: saúde doença e Kutipa

O conceito de bem-estar da mulher guarda relação com a noção do equilíbrio no interior de sua família, da comunidade, do meio-ambiente e do mundo mágico-religioso. Para manter o equilíbrio existem rituais baseados em seus conhecimentos tradições. A finalidade desses rituais é purificar o corpo.

A saúde é entendida como ausência da doença. A origem da doença pode estar nos espíritos do bosque. Para curá-la, é preciso fazer vaporizações e/ou visitas ao curandeiro ou médico banco, usando as plantas medicinais.

A doença é entendida como a presença de doenças. Estas doenças podem ser de diferente índole, afetando mulheres grávidas, crianças, pessoas fracas. Aqui a população em geral, no primeiro momento, vai aos especialistas tradicionais da saúde. Conforme o caso, e dependendo do que esse especialista tradicional encontrou, pode buscar os serviços do estabelecimento de saúde.

Geralmente, esta dinâmica de procurar especialistas tradicionais não é bem vista pelos servidores de saúde. Eles acham que esses serviços agravam as doenças, e que quando o paciente chega ao posto, seu estado já está pior.

Duas palavras na linguagem médica local, usadas no dia-a-dia, nos permitem compreender claramente o significado da saúde e doença em termos mais culturais: Kutipa e Ikara.

A primeira palavra é uma regra de vida: não se pode transgredir as normas, do contrário se fica kutipado. Ou seja, doente.

Felix parteiro de 50 anos disse: “A víbora pode kutipar, e também o lagarto, o

bicho-preguiça. Esse é terrível kutipando. A criança fica triste, sossegada. O bicho- preguiça kutipa antes e depois de nascer. Quando a mãe o vê por ali e diz: que animal feio, com certeza que kutipa. Para curar, o remédio é o pêlo mesmo do animal. Do contrário pode até levar a criança à morte”.

O ikaro é a forma de curar aos doentes - de curar um kutipado, e em geral as doenças ocasionadas por alguém. Para isso usam-se cantos e/ ou oração, com conteúdos falando de árvores, animais, aves, peixes bons e fortes. A saúde leva neste caso a idéia de purificação, expulsão do dano, graças à ação do médico herbalista; seja pela dieta ou pela ingestão de remédios vegetais. O ikaro é um ritual.

Felix parteiro de 50 anos disse: “Cada doença tem seu canto; o manchari (medo) tem seu canto. Tem uma erva que faz soar sha sha sha (ele se refere à shacapa, com cujas sementes se faz um chocalho, usado nesses rituais) em tua cabeça e ele (o curandeiro) começa a cantar, soprando com tabaco. Duas ou três vezes que te soprem já ficas sano. Os cantos imploram segundo o que ensina o árvore, ou seja, sua mãe39. E conforme vai cantando ele vai soprando fumaça no doente com a shacapa. Os cantos vão ikarando (curando a doença). Se canta para curar qualquer doença”.

Especificamente na gravidez, parto e pós-parto as mulheres têm cuidados especiais, relacionados a manter o equilíbrio frio/ calor no corpo. A mulher se cuida com banhos quentes, utilizando folhas de diversas classes de plantas para eliminar o excesso de frio. O termo utilizado na comunidade para se referir a esse cuidado é “ligadura”, e se diz “ligar”, para alguém se refere a este cuidado.

A mulher grávida passa por estes cuidados três ou quatro vezes durante a gravidez, a partir do sexto mês de gestação; pois elas assumem que ficam na água por tempos prolongados, quando vão lavar a roupa, e também pegam chuva, o que faz que apanhem resfriados. Ora, este fator limita as chances de um bom parto, e causa dificuldades na dilatação e nascimento do bebê.

Fela partera de 42 anos, disse: “A ligadura é para que tenhas rápido a

criatura. Às vezes o frio pega na grávidas, às vezes te faz doer a rabadilla (cintura), e pronto, elas dizem já vou ter, já vou ter. Isso é de muito frio que passam, pois ficam lavando todos os dias no rio, na água. Faz doer sua barriga, suas pernas, seu tudo; e dizem, o que eu tenho? E isso é o frio que se introduz e já começa a torcer a barriga; por isso também o llullo (bebê) nasce doente, com problemas nos pulmões, diarréia, essas coisas. A ligadura se prepara com folhas de limão, toranja, café, canha, caimito, laranja, verbena-limão, algodão. Tudo isso se faz ferver e a mulher se senta numa bacia quando está morno, e se lava ou se banha até que esfrie. E tem que fazer dieta de frio, não pode pegar água fria até que se normalize. Porque se estiver assim ligada e entrar no frio todo o corpo se incha (edema), e se isso acontecer tem que ligar com as mesmas folhas, se não o llullo pode morrer. A folha de algodão também é boa quando a mulher está inchada, para a dor de barriga. Se toma com um Melhoral e adeus”.

Algo menos importante, mas que é considerado uma forma de estar bem, é a satisfação de alguns desejos na etapa da gravidez. Cabe ao marido atender esta

39 Na mitologia dos índios da Amazônia Peruana, cada árvore tem uma “mãe”, ou seja, um espírito

necessidade, e caso sua vontade não se cumpra, o risco é que a mulher possa perder o bebê. O aborto está relacionado à não-satisfação do desejo.

Elva puerpera de 42 anos, disse: “O aborto é porque a vezes se tem vontade de

comer alguma coisa e não se come. Então aí algumas mulheres abortam porque querem e não se cumpre o pedido, né. Aí, quando a criatura quer e a mãe não come, então aborta. Porque às vezes temos vontade de comer uma fruta ou comida, a qualquer hora, e tem de comer”.