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Bens, males e indiferentes: a vida segundo a natureza

1. A DOUTRINA DOS ESTOICOS E A TEMPORALIDADE DO PÓRTICO

1.3. A DOUTRINA ESTOICA E SEU SISTEMA

1.3.3. Ética

1.3.3.1. Bens, males e indiferentes: a vida segundo a natureza

O lugar ético da filosofia estoica está calcado em sua sistematicidade: a Ética embebe- se em particular da Física, tanto é que Crísipo teria afirmado que não há meio mais apropriado para o estudo dos bens e males (e também da virtude) que não comece a partir do estudo da natureza universal e do governo do mundo127. Em mesma linha, Cícero também testemunhou que tanto a dialética quanto a física são ciências que estão assomadas à lista de virtudes e nos permitem entrever a real importância das antigas máximas morais dos sábios128.

Nesse sentido, não parece estranho que a máxima ética, o objetivo final de sua filosofia, a própria felicidade, resida justamente na expressão: viver em conformidade com a natureza (homologouménôs tèi physei), e que essa máxima equivalha à virtude e que baste à felicidade129. Essa definição, presente desde Zenão, é um empréstimo deste pela sabedoria cínica; no entanto, os estoicos souberam dar inflexões éticas inovadoras a esta máxima.

AΝfórmulaΝ“viverΝsegundoΝaΝnatureza” ganha com Crísipo duas acepções130: por um lado,ΝdeΝacordoΝcomΝaΝ“naturezaΝhumana”Νe,ΝporΝoutro,ΝdeΝacordoΝcomΝ“aΝnaturezaΝdoΝtodo”ΝdoΝ aparente desinteresse pelas discussões públicas – comoΝ umaΝ espécieΝ deΝ “compensação”Ν aoΝ novoΝ paradigmaΝ histórico, ou um fatalismo, mas um corolário filosófico por si. Os estoicos encontrarão suas próprias maneiras de discutir sobre a política e o direito, como resta por evidente na teoria da oikeíosis. O mesmo há que se dizer de outraΝ deΝ suasΝ marcas,Ν oΝ “cosmopolitismo”Ν antesΝ propugnadoΝ porΝ Diógenes, o Cínico, e integrado ao sistema estoico por Zenão. RIBEIRO, 2008, pp. 138-139.

125 BÉNATOUÏL, Thomas in BARNES; GOURINAT, 2013, pp. 117-118.

126 SÊNECA, Epist., LXXVI.9-10 (= LS 63D; SVF III.200a); CÍCERO, Tusculanae disputationes, V.40-41 (=

LS 63L); CÍCERO, De finibus, III, 7-23.

127 PLUTARCO, de Stoic. Repugn. 10γηcΝ (οΝ SVό,Ν IIIέθκ)μΝ “σonΝ c’èΝ altroΝ modoΝ néΝ modoΝ piὶΝ adattoΝ perΝ

affrontare la questione dei beni e dei mali, o della virtù, o della felicita, se non prendendo le mosse dalla natura comune e dalla struttura delΝcosmo”έ

128 CÍCERO, de finibus, III.72-ιγΝ(οΝSVόΝIIIέβκ1νΝIIIέβκβ)μΝ“AncheΝlaΝfísicaΝmeritaΝilΝnomeΝξdiΝvirtὶρ perché chi

há in animo di vivere secondo natura deve pur prendere le mosse dal mondo nel suo insieme e dal modo in cui esso è retto. In verità, nessuno potrebbe formulare giudizi fondati sui beni e sui mali se non ha conosciuto fino in fondo la logica della natura e della vita, anche di quella divina, onde decidere se la natura umana è in sintonia o nonΝèΝinΝsintoniaΝconΝquallaΝdell’universo”έΝ

129 DIÓGENES LAÉRCIO, VII.127. 130 DIÓGENES LAÉRCIO, VII.88.

55 qual os homens são partes. A consideração vai além: somente agimos e vivemos de modo consistente – em total harmonia com a natureza – quando, mais do que homens, entendemo- nosΝ comoΝ partesΝ doΝ todo,Ν partesΝ doΝ cosmosΝ eΝ doΝ universoέΝ τΝ “meramenteΝ humano”Ν ficariaΝ restrito a determinadas situações apenas aos indiferentes, ainda que aos indiferentes preferíveis, como aquele que, sabiamente, se entende como uma parcela da natureza universal, avança para além do impulso apenas humano131.

Há perfeita identificação: viver de acordo com os eventos naturais significa viver com virtude, pois a natureza conduz-nos à virtude132; essa é a própria felicidade, e por isso, a virtude é amada e buscada pelo sábio estoico, por si mesma133. A vida com virtude é uma vida em harmonia consigo mesma e com o cosmos. Não devemos entender que essa conciliação é a de duas ordens separadas, uma individual e outra universal; ambas estão intimamente conectadas, pois viver em conformidade com a própria natureza é alinhar-se com a razão, e é essa mesma razão que procede a conexão de toda a ordem do mundo. Há, pois, um termo único: não se pode estar alinhado com o próprio Lógos e, ao mesmo tempo, estar desalinhado com a ordem da natureza ou vice-versa.

Essa tese ética tem uma origem física: os seres humanos são naturalmente inclinados para terem consigo mesmos um sentido de oikeíosis134; comportam-se de modo a que (a) promovam ações convenentes (kathékonta) que visem a coisas que sejam benéficas a uma vida conforme à natureza e à virtude; (b) identifiquem-se com os interesses dos outros homensΝpróximosΝeΝosΝditamesΝdaΝjustiçaΝemΝgeralνΝ(c)ΝdescubramΝoΝqueΝéΝ“apropriado”Ν(emΝ termos de kathékonta) através da phrónesis. Assim, todo ser atua de modo a conformar-se

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Malcolm Schofield nos lembra que muitas outras definições do objetivo final existiram entre os estoicos, cada qual concebida como uma explicação de diferentes dirigentes estoicos no século II a.C. para a fórmula zenonianaΝ“viverΝdeΝmodoΝconsistenteΝcomΝaΝnatureza”έΝÉΝpossívelΝqueΝalgumasΝinterpretaçõesΝfossem destinadas a melhorar versões prévias ou a responder a críticas pontuais. Neste sentido, Plutarco (Comm. Not. 1071a-b) explicou como Antípatro de Tarso relacionou sua interpretação – “fazerΝdeΝmaneiraΝcontínuaΝeΝsemΝdesvios,ΝtudoΝ o que está ao seu alcance paraΝobterΝaΝmaisΝimportanteΝdasΝcoisasΝconformesΝàΝnatureza”Ν– com a de Diógenes da ἐabilôniaΝ (“oΝ bemΝ raciocinarΝ naΝ seleçãoΝ eΝ desseleçãoΝ dasΝ coisasΝ conformesΝ àΝ natureza”)Ν paraΝ responderΝ especificamente a crítica do acadêmico-cético Carnéades. Para este, a definição de Antípatro simultaneamente tornava o ponto de referência também como objetivo, dissociando a noção de objetivo das formulas estoicas tradicionais. Carnéades também se dissociava e confrontava com os estoicos no tópico da justiça e sobre isto ministrou suas conferências por ocasião da embaixada ateniense a Roma em 155 a.C.: para ele, sabedoria e justiça devem ser dissociadas, o que arrola dificuldades para a teoria da oikeíosis dos estoicos, o que suscitou um debate inconcluso entre Antípatro e Diógenes sobre o problema (CÍCERO, De Officiis, III.51-57). O conflito entreΝ“justiça”ΝeΝ“perseguiçãoΝdoΝinteresseΝindividual”Νtorna-se já com Panécio tema fulcral da terceira divisão da ética, a ação apropriada; para Posidônio, este era o tópico mais importante da filosofia (CÍCERO De Officiis, I.9; III.7-8). SCHOFIELD, Malcolm in INWOOD, 2006, pp. 274-281.

132 Quanto ao conceito de virtude (areté) entre os estoicos e sua relação com as chamadas quatro virtudes

cardinais da filosofia grega antiga, remetemos o leitor ao Apêndice G.

133 DIÓGENES LAÉRCIO, VII.87-89. 134 DIÓGENES LAÉRCIO, VII.87; 108.

57 natureza chamava-se, para os estoicos, valor/estimaΝ ( ),Ν eΝ oΝ queΝ eraΝ negativoΝ deΝ desvalor/desestimaΝ ( )137. Tanto Diógenes Laércio138 quanto Sêneca139 referem-se à oikeiôsis como um processo hierárquico ordenado de princípios moventes dos diferentes seres vivos, que ocorre gradualmente à medida que o ser amadurece140.

Em sentido estrito ou sentido absoluto (= ético, moral) ou há virtudes, ou vícios, ou coisas que são indiferentes do ponto de vista moral. Dentre os bens absolutos, não há escala ou gradação: ou se está diante de uma virtude (bem), de um vício (mal) ou de algo totalmente indiferente do ponto de vista moral. Do ponto de vista físico, no entanto, tudo o que é intermédio entre bens (valores) e malesΝ (desvalores)Ν deixaΝ deΝ serΝ meramenteΝ “indiferente”Ν para poder integrar o rol de valores ou de desvalores na medida em que se conformam à natureza ou não. Ou seja, aquilo que é um indiferente moralmente não é, todavia, um indiferente do ponto de vista físico e biológico, pois, ao considerar-se nossa natureza animal e a lei geral da conservação de si no nível físico e biológico, ganham cargas valorativas. Nasce aí a distinção que se opera entre os indiferentes: eles podem ser preferíveis ( )ΝouΝ rejeitáveis/não preferíveisΝ( )έΝÉΝoΝqueΝlhes permite dizer que, em sentido lato ou sentido relativo (a partir da Física), tudo aquilo que seria apenas indiferente do ponto de vista ético passa a integrar uma escala de valores e desvalores, uns sendo preferíveis e outros não, na medida em que servem à lei geral da oikeíosis. Desse modo, Zenão e Crísipo não permitiram que a parte ética do sistema estoico fosse excessivamente dicotômico: o próprio sistema, a partir da física, guardava as justificativas para a dicotomia maior da ética.