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O QUE ROMA FEZ PELO ESTOICISMO: UM NOVO LOCUS PARA O PÓRTICO

2. TODOS OS CAMINHOS LEVAM A ROMA: O PÓRTICO VAI À URBE

2.3. O QUE ROMA FEZ PELO ESTOICISMO: UM NOVO LOCUS PARA O PÓRTICO

O estoicismo tornou-se parte do cenário cultural romano desde o século II a.C., coincidindo com as grandes vitórias expansionistas da República após as Guerras Púnicas. Como já ressaltamos, nesses tempos, o estoicismo já não era uma escola filosófica tímida, e sim, uma das mais incontestes da Grécia. O estoicismo alcança Roma, no entanto, já a partir de sua fase intermediária sob o patrocínio de homens próximos a Panécio e Posidônio, quando já não havia mais uma unidade institucional e mesmo doutrinal como houvera na época de Atenas.

Necessário reavivarmos a advertência feita no começo deste capítulo: precisamos enxergar o estoicismo romano como fruto de seu próprio tempo e contexto históricos, sem a tentaçãoΝ anacrônicaΝ deΝ neleΝ enxergarΝ umΝ “estoicismoΝ menor”Ν queΝ aqueleΝ daΝ AtenasΝ dosΝ

307 MARCO AURÉLIO, Meditações,Ν VIέ11μΝ “WhenΝ forced,Ν asΝ itΝ seems,Ν byΝ thineΝ environment to be utterly

disquieted, return with all speed into thy self, staying in discord no longer than thou must. By constant recurrenceΝtoΝtheΝharmony,ΝthouΝwitlΝgainΝmoreΝcoomandΝoverΝit”έ

308 MARCO AURÉLIO, Meditações, VI.11; VIII.48; IV.3; V.9. 309 MARCO AURÉLIO, Meditações, XI.1; XII.26; II.13. 310 MARCO AURÉLIO, Meditações, V.6; VII.22.

101 séculos passados. É de se salientar sempre que a doutrina do Pórtico, como qualquer ideia, não é atemporal nem estática: quando alcança os portões da Urbe passa a responder diferentes questões e ditames filosóficos, entra em contato com um novo modo intelectual de proceder – o ecletismo – e, com isso, o próprio estoicismo se modifica. A troca de influências entre estoicismo e romanidade é uma via de mão dupla: se o estoicismo traria possibilidades novas de interpretação do mundo romano (como buscamos demonstrar na análise de alguns textos romanos, vide esse capítulo supra), também o novo ambiente em que essa filosofia se encontrou viria a transformá-la.

Durante o período de guerras civis da República, o estoicismo – assim como, em menor medida, o epicurismo e o ceticismo – tornou-se, em parte, uma espécie de bálsamo de estudos para as classes aristocratas mais cultas. O maior florescimento do estoicismo, contudo, aparece a partir do Principado inaugurado por Augusto; durante o Baixo Império, o estoicismoΝrepresentavaΝpeloΝmenosΝumaΝ“reservaΝmoral”ΝparaΝosΝhomensΝcultosΝdeΝRomaΝeΝ um modo de reação social ao estilo extravagante da Capital e a orientalização dos costumes. O estoicismo se adequava ao pensamento político das elites romanas: respeitava as tradições, preocupava-se também com a virtude social e instituía a importância de officiis a serem cumpridos (muito diferente do que o epicurismo, mecanicista, individualista e hostil deveria em geral parecer aos romanos).

Apesar do destaque merecido que os principais nomes recebem – e suas poucas e famosas obras que chegaram até nós – não devemos limitar o estoicismo romano ao famoso trio posterior: Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio sem considerar que inúmeros personagens (osΝassimΝchamadosΝdeΝ“estoicosΝromanosΝmenores”)ΝtrabalharamΝeΝteorizaramΝemΝRomaέΝτΝ sucesso do estoicismo entre grandes nomes só pode ser explicado pelo trabalho cotidiano de outros nomes menos célebres como os de Musônio Rufo, Antípatro de Tiro, Diodoto, Apolônio de Tiro e Hierócles311. Todos foram ativos na construção de uma doutrina estoica em Roma bem como ferrenhos opositores dos epicuristas. Ao longo do Império, muitos estoicos se tornaram célebres por seus escritos e leituras públicas, como Stertinius, Crispinus e Damasippus; durante o reinado de Tibério, fundou-se a famosa escola de Átalo na qual Sêneca estudou os textos gregos originais. Ainda nesta época surge a figura de Lúcio Annaeus

311 Ainda que discordemos do âmbito geral da tese, são extremamente válidas algumas das assertivas do trabalho

de Andityas Soares de Moura Costa, a destacar, no ponto: “AΝhistóriaΝdoΝestoicismoΝromano,ΝdeΝPanécioΝaΝεarcoΝ Aurélio, passando por nomes de peso como os de Cícero e de Sêneca, se mantendo viva graças ao labor de diversos pensadores menores e congregando escravos e imperadores, não nos parece, como querem muitos estudiosos, uma dissolução da doutrina original de Zenão e Crisipo, mas antes a sua sublimação, no sentido físico-químico da palavra. Inflado por séculos e séculos de erudição, polêmicas e dissidências, o Pórtico se reencontrou na sua última expressão escrita, As Meditações deΝεarcoΝAurélio”έΝἑτSTA,Ν2009, p. 60.

102 Cornuto, liberto de origem africana que foi professor de poetas-filósofos como Pérsio e Lucano. Chegamos à época do famoso Epicteto, aluno de Musônio Rufo e grande entusiasta não apenas do estoicismo que professava, mas do cinismo e do socratismo. Entre seus muitos alunos, esteve o historiador e aristocrata Flávio Arriano, o compilador de seus escritos, que foi integrante da administração de Adriano. Seu colega Quinto Júnio Rústico foi responsável pela educação do futuro imperador Marco Aurélio Antonino.

Devemos, portanto, sintetizar aqueles caracteres que, indelevelmente, são frutos do pensamento romano. O estoicismo romano possuiu como característica a tendência eclética, herdada do estoicismo médio, voltada para a resolução de questões específicas e não tão preocupada com a consistência dogmática já estabelecida da doutrina. Ainda assim, Christopher Gill elencou as três principais questões por ele percebidas no estoicismo imperial, todas fortemente ligadas ao estoicismo anterior: o controle e o combate das paixões; a natureza ontológica da alma humana (se apenas racional, ou também irracional); a natureza do desenvolvimento ético (exclusivamente racional ou não, perguntavam-se)312.

A visão romana da filosofia também é específica. Sêneca entendia que a sapientia constitui o bem perfeito do espírito humano, correspondendo à Philosophia. Outros, no entanto, como Cícero e Epicteto, não identificavam a filosofia apenas com o studium sapientiae, mas também com a arte (techné)313, com o exercício cotidiano. Por isso, o ensino filosófico não poderia se dar exclusivamente por meio de tratados e preleções acadêmicas: ele só se efetiva na prática cotidiana, como modus vivendi, superando a simples erudição. O filósofo então se assemelha ao flautista ou ao escultor, pois, se antes deve aprender certos princípios teóricos, só será um mestre em seu ofício a partir da prática. Cícero, em particular, é um dos que mais enfatiza a necessidade de aliar conhecimento teórico e prático em sua obra filosófica.

O pragmatismo do pensamento romano jamais poderia conceber uma filosofia totalmente teorética, desinteressada e voltada apenas ao deleite dos estudiosos – ou, se assim o fosse, não teria angariado o prestígio e vigor que teve. Sua função era eminentemente pedagógica e o Pórtico ocupou, por excelência, esse papel de destaque. Ser um filósofo estoico significava, em Roma, ser um professor estoico314: alguém que não apenas conhecia

312 GILL, Christopher, in INWOOD, 2006, pp. 43-55. 313 CÍCERO, De Re Publica, I.2.

314ἑomoΝ lembraΝ ύill,Ν nãoΝ haviaΝ noΝ períodoΝ romanoΝ umaΝ “escolaΝ estoicaΝ institucional”Ν comoΝ nosΝ temposΝ deΝ

AtenasΝ eΝ RodesέΝ Entretanto,Ν certasΝ característicasΝ definidorasΝ moldavamΝ aΝ figuraΝ doΝ “professorΝ [deΝ filosofia]Ν estoico”Ν AΝ primeiraΝ delasΝ eraΝ oΝ ensinamentoΝ teórico baseado em um cânon comum de tratados escritos, sobretudo os de Crisipo: Epicteto dá prova disto em seus Discursos. Em segundo lugar, ainda que os estoicos

103 os textos originais da escola, mas, também, desenvolvia um trabalho doutrinário de comentar o tradicional curriculum tripartite estoico (o que explica também a sobrevivência de alguns de seus textos e tratados). Os romanos conheceram, além dos tratados, formas bastante próprias de exprimir e registrar seus estudos sobre o estoicismo: as cartas, as consolações, os diálogos pessoais e os solilóquios, formas literárias próprias dos romanos que favoreceram o desenvolvimento da mensagem de meditatio que o estoicismo com eles ganha.

Como se sabe, a Ética foi bastante criativa em Roma. Partiam das ideias originais de Zenão e Crísipo: existem os bens e males (que estão relacionados à virtude, aretê, o único bem verdadeiro, e o seu oposto, o vício), além das coisas que são indiferentes (e entre elas, algumas preferíveis às demais). Os sábios praticavam, a partir daí, apenas ações perfeitas (katorthómata, perfecta officia), enquanto o homem comum, parcialmente, pode praticar ações razoáveis, análogas, mas jamais tão perfeitas quanto as ações perfeitas dos sábios (kathékonta, officia media,Ν osΝ “deveres”)έΝ O homem comum cumpre determinados officiis justamente porque não é sábio, e a eles deve se ajustar na sua eterna busca pela virtude. A doutrina dos indiferentes (adiáforos, indifferentia) ganha um destaque inédito na doutrina e foi largamente difundida em Roma: entre os bens indiferentes do ponto de vista ético, uns põem auxiliar o homem na busca da perfeição moral e são ditos preferíveis (proêgmenos, praeposita), enquanto outros, por obstaculizar o caminho da virtude, são rejeitáveis (apoproêgmenos, rejecta), e outros são totalmente neutros. O papel do estoico romano era o de aconselhar as pessoas a identificar adequadamente os preferíveis, auxiliando os discípulos no progressivo aperfeiçoamento virtuoso.

O período do Império Romano é particularmente criativo e rico, portanto, na área de ética prática, seja no tema das kathékonta, seja no tratamento das páthe. Conforme Costa, “umaΝ inovaçãoΝ (peloΝ menosΝ parcial)Ν resideΝ noΝ pensamentoΝ sobreΝ osΝ principaisΝ gênerosΝ ouΝ tipos de ética prática, e isso também se refleteΝnoΝtipoΝdeΝorientaçãoΝoferecidoΝnasΝobras”315. Nesse sentido, por exemplo, Sêneca ofereceu um padrão de três partes para a orientação da ética: (1) avaliação do valor de cada coisa, (2) adoção de um impulso apropriado em direção romanos pudessem nutrir maior interesse pela ética, seus currículos de educação continuavam fixados no tripé lógica-física-ética. Institucionalmente também variavam as figuras: uns possuíam uma espécie de instituição formada, como Epicteto em Nicópolis, ou lecionavam em sua residência como Musônio Rufo; outros eram simplesmente conselheiros, tais quais Atenodoro e Ário Dídimo, ou apenas aristocratas próximos da sede de poder, como Sêneca. Há ainda que se destacar uma divisão em sua produção. Por um lado, permanecia a (a) exposição formal e interpretação dos cânones estoicos, em particular da doutrina de Crisipo, nos três pontos da filosofia. Por outro, foram marcadas pela história as (b) conferências e discursos públicos não-técnicos, ocasiões em que a doutrina estoica era formulada para um público variado e não necessariamente versado no estoicismo. GILL, Christopher in INWOOD, 2006, pp. 50-55.

104 aos objetivos e (3) consistência entre impulso e ação316. Epicteto também adotou um padrão tripartite similar: (1) avaliação dos objetos desejados e evitados, listando desejos e aversões; (2) impulso e rejeição para execução de kathékonta ou não; (3) infalibilidade em dar assentimento a representações. Marco Aurélio também contribui, nesse sentido, a partir de Epicteto,ΝdandoΝênfaseΝaΝumaΝ“perspectivaΝcósmica”ΝdasΝcrençasΝeΝatitudes317.

Todo o período debateu a relação entre a teoria ética e o aconselhamento prático: mesmo como partes distintas, ambas têm validade própria. Ao mesmo tempo em que as inovações percorrem os gêneros da ética prática, há uma intensa inventividade nos modos de expressar essa doutrina. Os ensinamentos orais de Epicteto e Rufo, as cartas de orientação moral de Sêneca e mesmo as sutis Meditações de Marco Aurélio são todos modos novos de, quer por meio de monólogo escrito, quer através do diálogo, conduzir o interlocutor pelo decurso do programa ético prático esboçado de modo tripartite. Assim, se seguirmos o esboço – mais claro nas palavras de Epicteto – o ouvinte é convidado a reexaminar os objetivos gerais de seus desejos e anseios, ajustar seu impulso e sua ação à luz dos objetivos clareados e visar a uma consistência entre suas crenças, seus assentimentos, suas ações e seus estados mentais.

O tratamento dispensado à Ética foi, entre os romanos, não um mero epígono da escola grega, mas a mostra de sua ativa relação com o poder político-jurídico. É claro que Epicteto e Sêneca preocupavam-se com a vida individual do homem: mas podemos afirmar que, desde a profusão do pensamento de Panécio e Cícero, o estoicismo romano voltava-se para a busca de uma boa sociedade318. Podemos atribuir isso a uma retomada consciente das raízes socráticas do estoicismo; de todo modo, o que importa é ter constituído uma escolha consciente feita por romanos para um mundo romano. No decorrer do próximo capítulo, não à toa, lidaremos com um ponto importantíssimo para compreender não apenas o estoicismo, mas o estoicismo no mundo romano: o modo como este se coaduna com o pensamento e permite uma justificação filosófica-naturalística do direito. Num mundo onde o ius era, mais do que tradição, um modelo mental de organização da sociedade, não poderíamos explicar a sorte do estoicismo sem desnudar essa relação.

316 SÊNECA, Ep., 89, 14.

317 MARCO AURÉLIO, Meditações, VIII, 7; III, 11.

318 Em mesmo sentido: “SeΝemΝAtenasΝoΝestoicismoΝvoltava-se basicamente para a promoção de uma vida boa

individual, em Roma ele se dirigia para a arena do político, buscando os cânones não só da vida boa, mas principalmente da boa sociedade. E para tanto se fazia necessária a inserção do pensador estoico na realidade político-jurídica do Império. Ora favorecidos pelo poder político, como na era dos Antoninos, ora perseguidos, como sob os imperadores Flavianos, os filósofos estoicos foram uma presença indelével na história política imperial, papel que os gregos não representaram de modo ativo no cenário político-jurídico helenístico”. COSTA, 2009, p. 67.

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3. ACREDITARAM OS ROMANOS EM SUA FILOSOFIA? AS TENSÕES ENTRE