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Causalidade cósmica, a Providência e o Destino

1. A DOUTRINA DOS ESTOICOS E A TEMPORALIDADE DO PÓRTICO

1.3. A DOUTRINA ESTOICA E SEU SISTEMA

1.3.2. Física

1.3.2.5. Causalidade cósmica, a Providência e o Destino

τsΝestoicosΝdefiniamΝdestinoΝcomoΝumaΝ“concatenaçãoΝdeΝcausasΝdoΝqueΝexisteΝouΝaΝ razãoΝqueΝdirigeΝeΝgovernaΝoΝcosmo”109; Cícero concorda com essa definição, acrescentando ainda que essa série concatenada de causa e efeitos da origem a todas as coisas, e por isso mesmo, é uma verdade eterna110.

105 DIÓGENES LAÉRCIO, VII.137 (= LS 44F = SVF, II.526)μΝ“(έέέ)ΝoΝpróprioΝDeus,ΝcujaΝqualidadeΝéΝidênticaΝ

àquelaΝdeΝtodaΝaΝsubstânciaΝdoΝcosmosνΝeleΝéΝporΝissoΝincorruptívelΝeΝinciriado,ΝautorΝdaΝordemΝuniversalΝ(έέέ)”έΝ

106 AÉCIO Plac. I.7.33 (= LS 46A = SVF II.1027); AÉCIO, Plac. I.6 (= SVF II.1099).

107 Seria possível ao homem atento conhecer o encadeamento e ordem das causas que ligam os acontecimentos

entre si (ou seja, conhecer e aderir à simpatia universal), não apenas para compreender os acontecimentos vividos, mas também adivinhar os futuros (divinatio). Ciência e adivinhação não são incompatíveis, pois a primeira toma os acontecimentos como causas, e a segunda faz a interpretação dos acontecimentos enquanto signos, colocando-os em relação. Sobre este ponto específico, CHAUÍ, 2010, pp. 122-168.

108 Ainda que os estoicos não fossem propícios à prece – que, teisticamente falando, pouco faz sentido perante

um deus que é imanente a tudo –, os fragmentos parecem mostrar uma atitude tolerante e aceitável, como expressa o Hino a Zeus de Cleantes e a breve prece do Manual de Epicteto. Mesmo assim, não são estas preces tradicionais e nos ajudam a entender o conceito de providência estoica: não pedem nada à divindade, e sim, solicitam entender qual o desígnio divino/providencial para com ele ajustar-seέΝSãoΝambosΝumΝtipoΝdeΝ“prece por racionalidade”,Ν noΝ mesmoΝ modeloΝ propostoΝ porΝ εarcoΝ AurélioέΝ τΝ termoΝ deΝ AδύRA,Ν KeimpeΝ in INWOOD, 2006, p. 194.

109 DIÓGENES LAÉRCIO, VII.149.

110 CÍCERO, de div.,ΝIέηηέ1βηΝ(οΝSVόΝIIέλβ1)μΝ“(έέέ)ΝcioèΝ[ilΝ hermarméne] la serie ordinata della cause, perché

quandoΝumaΝcausaΝsiΝconnetteΝadΝum’altraΝcausa,ΝumaΝcosaΝsiΝgeneraΝdaΝséέΝQuestaΝèΝunaΝveritàΝpereneΝcheΝsiΝ perpetuaΝdaΝtuttaΝl’eternitàΝ(έέέ)έΝCf. também ALEXANDRE DE AFRODISÍAS, de fato 22.30 (= SVF II.945).

51 Os adversários do estoicismo desde logo criticaram a Pronóia e a Heimarméne estoicas por não permitirem, a seu ver, a liberdade humana no sistema, desembocando na acusação de um suposto finalismo extremado inescapável. Isso constitui, mesmo na filosofia contemporânea, um dos pontos de mais intensa discussão entre os estudiosos do estoicismo. Declinaremos a seguir apenas os traços gerais dessa discussão.

Ciente desse ponto nodal do sistema, Crísipo foi o primeiro a tentar resolver as aporias. Cícero narra em seu De fato aΝ distinçãoΝ queΝ aqueleΝ faziaΝ entreΝ asΝ “causasΝ antecedentes”Ν (consideradasΝ comoΝ “causasΝ assistentesΝ eΝ próximas”,Ν causae adiuvantes et proximae),Ν identificadasΝ comΝ oΝ destino,Ν eΝ asΝ “causasΝ completasΝ eΝ principais”Ν (causae perfectae et principales)111. Afirma-se que tudo o que acontece assim se dá por causas precedentes (causis fiunt antegressis), pelo destino; se aceitarmos essa afirmação concordamos que uma proposição (axiôma) só pode ser ou verdadeira ou falsa por vez112.

Crísipo explicava, portanto, que quando aparentemente somam-se causas cujo resultado seja conhecido, e o resultado se dá diferente do esperado, o que ocorreu foi o “acaso”μΝeste,ΝentendidoΝcomoΝumaΝ“causaΝnãoΝevidenteΝparaΝoΝpensamentoΝhumano”113. Esse também foi um ponto de crítica aos adversários do estoicismo: afirmavam que os estoicos jamais assinalavam efetivamente as causas de um fenômeno, apontando para a incerta explicação das causas não evidentes. Entretanto, ainda que os estoicos possam ter sido reticentes em expor uma etiologia clara, essa etiologia é pedra de toque para seu determinismo.

O determinismo estoico, para além da coesão e unidade cósmicas, para além da etiologiaΝ eΝ doΝ conceitoΝ deΝ “causasΝ antecedentes”,Ν tambémΝ seΝ fundaΝ naΝ doutrinaΝ dosΝ ciclosΝ cósmicosΝrecorrentesΝeΝdaΝconflagraçãoέΝτsΝ“ciclos”Νcósmicos,ΝcomoΝqueΝintervalosΝentreΝasΝ conflagrações totais, são apresentados como indistintos entre si, num eterno reciclar da

111 CÍCERO, De fato, 20-21: (...) For ChrysippusΝarguesΝthusμΝ‘IfΝuncausedΝmotionΝexists,ΝitΝwillΝnotΝbeΝtheΝcaseΝ

that every proposition (termed by the logicians an axioma) is either true or false, for a thing not possessing efficient causes (causis antegressis) will be neither true nor false; but every proposition is either true or false; therefore uncaused motion does not exist. If this so, all things that take place by fate; it therefore follow that all thingsΝthatΝtakeΝplaceΝtakeΝplaceΝbyΝfate’”έΝἑite-se também CÍCERO, de divinatione , I.125-126 (= LS 55L; SVF II.921); ESTOBEU, I.138, 14 – I.139, 4 (= LS 55A; SVF I.89; SVF II.336).

112 Segundo Michael J. White, o assunto continuou a ser tratado por Alexandre de Afrodísias [Fati 192 3-14; 22-

25]: nada do universo existe de tal modo que não esteja ele atrelado a uma causa, e esta causa dependente de outra, de modo que tudo esteja conectado. Nada no mundo está separado e desconexo (apolelyménon te kaì kekhorisménon) das coisas que o precederam. Também enunciou de forma sintática o determinismo estoico: há destino porque todo o movimento se dá por causas, e inexiste o momento não causado. Existindo os mesmos fatores causais, idêntico deve ser o resultado, pois o movimento depende destas causas. WHITE, Michael in INWOOD, 2006, pp. 154-155.

113 THEODORETO, grace. affect. cur., 87, 41 (= SVF, II.971)μΝ “EΝ quelliΝ delΝ PorticoΝ dannoΝ ξdellaΝ sorteρΝ laΝ

52 história dos corpos celestes a suas posições relativas exatas114. Os fragmentos dão conta de diversas versões dessa doutrina da recorrência: tudo no cosmos seria de modo tal como uma contraparte indistinguível do que fora anteriormente115. De todo modo, a recorrência eterna está ligada ao determinismo e estes, no que tange à física estoica, não são puros arremedos mecanicistas, e sim, desdobramentos do lógos divino e onipresente que governa o cosmos, que é o primeiro nexo causal de tudo.

Com o esquema da coerência e unidade do cosmos – da razão providencial que tudo conecta por laços de causalidade e de uma recorrência do cosmos – não é equivocado pensarmos como os céticos, pelo menos num primeiro momento, e afirmar que a doutrina estoica terminaria em determinismo e no esmorecimento da autonomia humana. No entanto, como lembrou Michael J. White, os estoicos também falavam (e como falavam!) da responsabilidade humana; neles poderíamos identificar uma das primeiras ocorrências filosóficasΝdoΝqueΝseΝchamouΝdeΝumΝ“determinismoΝbrando”έΝAΝresponsabilidadeΝhumanaΝseriaΝ pautada não na total liberdade de ação – algo muito mais próximo dos modernos do que desses pensadores antigos –,ΝmasΝnaΝaçãoΝ“queΝestáΝemΝnossoΝpoder”Ν(tò eph’ hemîn). Cícero, comentando essa doutrina que remontaria a Crísipo, afirmava que a diferenciação entre tipos de causa – asΝ causasΝ “antecedentes”Ν (adiuvantes et proximae) do destino e as causas “completasΝeΝprincipais” (perfectae et principales)116– levava ao determinismo estoico caráter intermediário entre o determinismo rígido e o mecanicismo caótico cego117.

AsΝ causasΝ antecedentesΝ sãoΝ “sustentadoras”Ν (synektiká): produzem seus resultados inexoravelmente, coincidem com o resultado e derivam de uma força ativa exterior que impele a coisa para tal. As causas completas, ao contrário, se também estão conectadas na rede causal do mundo, derivam do interior do ser, na célebre imagem do cone e do cilindro118. ἑrísipoΝdefendeu,ΝporΝexemplo,ΝqueΝosΝatosΝdeΝ“assentimento”ΝàsΝrepresentaçõesΝsãoΝdessas

114 NEMÉSIO, de nat. hom. 38 (= SVF II.625), do que extraímosΝaΝpassagemμΝ“Poi,ΝdiΝbelΝnuovo,ΝilΝcosmoΝsiΝ

riformeràΝcosìΝcom’eraΝall’origineμΝgliΝastriΝseguirannoΝlaΝloroΝconsuetaΝorbita,ΝeΝlaΝcondurrannoΝaΝtermineΝalloΝ stessoΝidentificoΝmodoΝcheΝnelΝprecedenteΝperíodo”έ

115 ORÍGENES, contra Celsum IV.68 (= SVF II.626) e SIMPLÍCIO, in Aristot. Phys., 11 (= SVF II.627). 116 CÍCERO, De fato,Ν 41μΝ “(έέέ)’SomeΝ causes’,Ν heΝ saysΝ [ἑhrysippus],Ν ‘areΝ perfectΝ andΝ principal (perfectae et

princiales), other auxiliary and proximate (adiuvantes et proximae). Hence when we say that everything takes place by fate owing to antecedent causes, what we wish to be understood is not perfect and principal causes but auxiliaryΝandΝproximateΝcauses’Ν(…)”έ

117 CÍCERO, De fato, 39-41. Segundo Cícero, Crísipo não se colocava nem entre os filósofos que teorizavam um

determinismo baseado em rígida necessidade (cita entre eles Demócrito, Heráclito e Aristóteles), nem entre os que afirmavam a inexistência do destino (fato).

118 CÍCERO, De fato 4βμΝ“(έέέ)ΝἑhrysippusΝgoesΝbackΝtoΝhisΝrollerΝandΝspinning-top (ad cylindrum et ad turbinem

suum), which cannot begin to move unless they are pushed or struck, but which when this has happened, he thinks, continue to move of their owe nature, the roller rolling forward and the top spinning round”έ

53 causasΝcompletas,ΝatoΝqueΝ“estaráΝemΝnossoΝpoder”Ν(sed assensio mostra erit in potestate)119, do mesmo modo que um cilindro, ainda que inicialmente impulsionado por fora, rola por uma característica derivada de sua própria natureza.

A responsabilidade humana está, para os estoicos, atada a essa coesão cósmica e a razão providencial do mundo: por isso, dão ênfase ao valor humano e, em virtude desse valor, interpretamΝ aΝ responsabilidadeΝ dosΝ homensέΝ SeΝ pudermosΝ falarΝ emΝ “determinismo”Ν naΝ filosofia estoica, somente de modo extremamente sui generis, de modo algum (tão somente) “fatalista”έΝεaioresΝconsideraçõesΝsobreΝesse tema serão feitas em outra parte deste trabalho.