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1 INTRODUÇÃO

1.10 Biofilmes: generalidades

A diversidade de mecanismos de adaptação, sejam eles metabólicos ou fenotípicos, permite que os organismos procarióticos habitem tanto os ambientes adequados às formas de vida superiores, quanto ambientes inóspitos à maioria das formas de vida. Essas características adaptativas também possibilitaram às bactérias o desenvolvimento de uma sábia estratégia ecológica de sobrevivência que facilita sua adaptação às alterações ambientais: a vida em comunidade. Para os microbiologistas, a maioria das bactérias encontra-se na natureza vivendo em comunidades, de maior ou menor estruturação, e raramente elas ocorrem como células individuais, crescendo de maneira planctônica (livres, em suspensão). Sendo assim, esses organismos apresentam-se em seus habitats naturais em comunidades de diferentes graus de complexidade, associadas a superfícies diversas, geralmente compondo um biofilme.

Biofilmes são comunidades microbianas complexas estabelecidas em uma ampla variedade de superfícies que são geralmente associadas a uma matriz extracelular composta por vários tipos de biopolímeros (ABEE et al., 2010). Essas comunidades dinâmicas podem se espalhar através de superfícies, incorporar partículas e outros microorganismos do meio circundante e continuamente liberar novas células planctônicas (STEPHENS, 2002). Eles estão presentes no meio aquático (RIVERA, et al., 2010), em equipamentos de diferentes segmentos industriais (DAT et al., 2012), dispositivos médicos, como válvulas cardíacas artificiais, marcapassos e articulações sintéticas (STEPHENS, 2002), lentes de contato (ONURDAĞ et al., 2010). Entre os biofilmes de maior interesse médico destacam-se aqueles que são responsáveis pela colonização da cavidade oral e da superfície dos dentes, levando à ocorrência da cárie dental (OKUDA et al., 2010).

Superfícies dentárias expostas ao ambiente oral são quase instantaneamente cobertas por uma película proteinácea, que é conhecida como a película do esmalte adquirida. Essa película de proteína é formada pela adsorção seletiva de proteínas salivares, peptídeos e outras moléculas orgânicas (OLIVEIRA et al., 2007). O processo inicial de adesão bacteriana à película do esmalte adquirida compreende interação específica entre espécies bacterianas presentes na cavidade oral e a película (Figura 12).

Figura 12- Representação esquemática da natureza temporal proposta para o acréscimo de bactérias orais humanas na superfície do dente.

Fonte: Adaptado de Rickard et al., 2003. As espécies representadas aqui são Streptococcus gordonii, Streptococcus mitis, Streptococcus oralis, Streptococccus sanguinis, Haemophilus parainfluenzae, Propionibacterium acnes, Veillonella atypica, Actinomyces naeslundii, Fusobacterium nucleatum, Actinobacillus actinomycetemcomitans, Helicobacter pylori, Treponema spp. e Porphyromonas gingivalis. Os conjuntos de símbolos complementares adesina-receptor (um exemplo é mostrado no alto) representa interações por coagregação específica diferente ou adesão à película adquirida. Coagregação entre P. gingivalis and S. gordonii é mediada pelas proteínas adesinas expressas na superfície de ambos tipos de células. Símbolos idênticos não se destinam a identificar moléculas idênticas, mas relacionadas funcionalmente. Os símbolos retangulares representam coagregações lactose-sensíveis, outros símbolos representam coagregações lactose- insensíveis.

Cáries dentais são causadas pela colonização e acúmulo de microorganismos orais e a aderência desses microorganismos é o primeiro passo para a colonização (GIBBONS, 1984; NAPIMOGA et al., 2005). Organismos orais se ligam aos componentes salivares da película do esmalte adquirida e, através do crescimento e interação entre espécies, formam uma comunidade de biofilme. Por conseguinte, o reconhecimento bacteriano de receptores salivares na superfície do dente representa um passo inicial importante na patogênese da doença oral (PALMER et al., 2003).

Teixeira e colaboradores (2006) investigaram o potencial de seis diferentes lectinas de leguminosas (Canavalia ensiformis, Canavalia brasiliensis, Dioclea violacea,

Dioclea grandiflora, Cratylia floribunda e Vatairea macrocarpa) em inibir a aderência de cinco espécies de Streptococcus (S. oralis, S. sanguis, S. mitis, S. mutans e S. sobrinus) à película adiquirida in vitro. Todas as lectinas glicose-manose específicas foram capazes de reduzir a aderência das espécies de Streptococcus testadas, enquanto que a lectina de Vatairea macrocarapa (VML), que reconhece galactose e N-acetil-galactosamina, diminuiu a aderência apenas de S. sanguis. Essas lectinas glicose-manose específicas provavelmente diminuíram a adesão pela competição com outras proteínas expressas pelas diferentes espécies bacterianas que se ligam a esses resíduos de açúcar.

A ecologia de um biofilme é uma complexa equação de parâmetros físico- químicos e biológicos (SIMÕES, SIMÕES, VIEIRA, 2007). Como em todos os níveis de evolução, uma complexa teia de interações é fundamental para a estrutura, composição e função dessa ou de qualquer comunidade (HANSEN et al., 2007). Biofilmes podem ser formados por uma única espécie bacteriana, como aquele formado por Pseudomonas aeruginosa, um notório patógeno oportunista que infecta queimaduras e feridas, coloniza alguns tipos de dispositivos permanentes e causa infecções pulmonares crônicas (GOLDBERG, PIER, 2000). Entretanto, a maioria dos biofilmes existe na forma de um consórcio funcional entre várias espécies, onde as diferentes bactérias presentes afetam umas às outras tanto de uma forma positiva, quanto negativa (BURMØLLE et al., 2006).

Algumas interações beneficiam uma ou mais colônias ou espécies em um biofilme, tais como a coagregação de células (BLEHERT, et al., 2003; RAO, WEBB, KJELLEBERG, 2005), conjugação (GHIGO, 2001) e proteção de uma ou várias espécies da erradicação quando o biofilme está exposto a compostos antimicrobianos (COWAN et al., 2000). Tal proteção envolve uma variedade de fatores, incluindo complementação enzimática e distribuição espacial organizada das células do biofilme (COWAN et al., 2000; LERICHE, BRIANDET, CARPENTIER, 2003). Esses e outros mecanismos são semelhantes a efeitos sinergísticos que resultam na formação de um biofilme cooperativo pelas colônias que seriam incapazes de formar um biofilme sozinhas (FILOCHE, ANDERSON, SISSONS, 2004). Interações negativas em biofilmes incluem produção de bacteriotoxinas (RAO et al., 2005) e redução do pH (BURNE; MARQUIS, 2000) por um membro do consórcio biofilme. Um aspecto importante para descrever as interações em biofilmes multiespécies é avaliar entre espécies individuais, ou consórcio multiespécies, o ganho de algumas vantagens quando comparadas a biofilmes de apenas uma espécie (BURMØLLE et al., 2006).

Microorganismos patogênicos que formam biofilmes podem causar infecções persistentes que desafiam o sistema imunológico e resistem à eliminação por antibióticos

(STEPHENS, 2002). Periodondite e infecção pulmonar crônica em pacientes com fibrose cística são exemplos de doenças que geralmente estão associadas à presença de biofilmes (SINGH et al., 2000). Várias infecções nosocomiais como aquelas relacionadas ao uso de cateteres (MORRIS, SSTICKLER, Mc LEAN, 1999) e dispositivos ortopédicos (GRISTINA et al., 1994) estão claramente associadas a biofilmes que aderem à superfície do biomaterial (STEWART; COSTERTON, 2001). Essas infecções partilham características comuns, embora as causas e os sítios hospedeiros variem. A erradicação de biofilmes patogênicos é facilitada pelo melhor entendimento de seu metabolismo e desenvolvimento. Estudos de expressão gênica e a identificação de produtos gênicos necessários para a formação do biofilme ou resistência a antibióticos oferecem ajuda significante (STEPHENS, 2002).

Figura 13- Desenvolvimento de um biofilme.

Fonte: Adaptado de Rickard et al., 2003. (a) Colonização primária de um substrato; (b) crescimento, divisão celular e produção do exopolissacarídeo (EPS), com o desenvolvimento de microcolônias; (c) coadesão de células individuais, de células coagregadas e grupos de células idênticas, originando um biofilme jovem, de múltiplas espécies; (d) maturação e formação de mosaicos clonais no biofilme maduro.

O desenvolvimento do biofilme inicia quando bactérias planctônicas – células individuais livres – aderem a uma superfície (Figura 13). Diversos locais podem ser colonizados, incluindo superfícies minerais, tecidos vegetais ou animais vivos e/ou mortos,

polímeros sintéticos, cerâmicas e ligas metálicas. Os mecanismos de aderência variam dependendo do microorganismo e da superfície. Como células aderidas crescem e se dividem, a proximidade da superfície induz adaptações fisiológicas, incluindo secreção de substância extracelular polimérica ou exopolissacarídeos (EPSs), utilizada como uma matriz protetora em torno das células e também como substrato para outros microorganismos. Exopolissacarídeos hidratados representam a maior parte do volume do biofilme e são os responsáveis pelas propriedades viscosas macroscópicas (STEPHENS, 2002). Muitas vezes, a composição e a quantidade de EPS variarão dependendo do tipo de microrganismos, da idade do biofilme e das diferentes condições ambientais em que os biofilmes são formados (MAYER et al., 1999). Biofilmes desenvolvidos são estruturas surpreendentemente elaboradas, com pilares levantados por células desordenadas, permeadas por micro canais cheios de líquidos (STEPHENS, 2002).

Além da presença de EPS, as estruturas da superfície celular bacteriana, tais como, outras proteínas, lipopolissacarídeos e os flagelos possuem claramente um papel importante no processo de adesão (CARNEIRO, 2011).

A aquisição de novas características genéticas pelas espécies componentes de um biofilme ocorre através do mecanismo de conjugação, pois várias bactérias possuem plasmídeos (segmentos de DNA extracromossomial), conferindo-lhes as mais diversas características, e estes podem ser transferidos horizontalmente por conjugação, para diferentes espécies presentes em um biofilme. O uso dessa estratégia de troca de informação genética assegura a variabilidade genética, formação inicial e adaptação do biofilme a diferentes condições ambientais.

A expressão gênica das diferentes espécies que compõe um biofilme é regulada de acordo com as suas necessidades para a sobrevivência. Sendo assim, muitas bactérias usam o mecanismo de quorum sensing para controlar a expressão de seus genes. Bactérias que usam quorum sensing constantemente produzem e secretam moléculas sinalizadoras, denominadas autoindutores ou feromônios. Essas bactérias também têm um receptor que pode especificamente detectar a molécula sinalizadora ou o indutor. Quando o indutor se liga ao receptor, ele ativa a transcrição de certos genes, incluindo aqueles para a síntese do indutor. Existe uma pequena probabilidade de uma bactéria detectar o indutor que ela própria secretou. Assim, para que a transcrição gênica seja ativada, a célula deve encontrar moléculas sinalizadoras secretadas por outras células em seu meio ambiente. Quando apenas outras poucas bactérias do mesmo tipo estão na vizinhança, a difusão reduz a concentração do indutor no meio circundante a quase zero, de modo que a bactéria passa a produzir pouco

indutor. No entanto, como a população cresce, a concentração do indutor passa de um limiar, causando a síntese de mais indutor. Isso forma um ciclo de feedback positivo e o receptor torna-se completamente ativado. A ativação do receptor induz o aumento da regulação de outros genes específicos, fazendo com que todas as células possam começar a transcrição aproximadamente ao mesmo tempo (KOK GAN et al., 2011).

A expressão dos genes de Pseudomonas aeruginosa em biofilmes foi analisada por Whiteley e colaboradores (2001). Para comparar a expressão gênica entre as células planctônicas e aquelas do biofilme, eles analisaram bactérias cultivadas em um quemostato, de nado livre ou aderidas a seixos de granito. Os níveis de mRNA foram comparados usando microarrays com sequências codificantes a partir de 5.500 genes identificados a partir de sequências de DNA genômico de P. aeruginosa. Surpreendentemente, apenas 73 genes, 1,3% do total, mostraram níveis de expressão significantemente diferentes do biofilme. A cultura planctônica controle foi suficientemente densa para ativar genes quorum-dependentes, uma vez que esses não estavam entre a população diferencialmente expressa. Embora esses resultados certamente subestimem o número de genes que tiveram mudanças de expressão em biofilmes patogênicos, em que estímulos adicionais estão em jogo, eles oferecem apenas uma informação muito básica para análise da expressão gênica de biofilmes dessa espécie.

Devido ao seu papel na adesão e aglutinação, lectinas são consideradas importantes em interações simbióticas e patogênicas entre alguns organismos e hospedeiros (SLIFKIN; DOYLE, 1990). Em bactérias, carboidratos da superfície, tais como peptidioglicanos, ácidos teióicos e lipopolissacarídeos são potenciais sítios reativos para lectinas. A habilidade de lectinas em formar complexos com glicoconjugados microbianos torna possível o uso dessas moléculas como sonda para investigar a estrutura e função da superfície celular. Um dos usos mais importantes de lectinas em microbiologia é na agregação direta de micoorganismos em suspensão. Lectinas são as proteínas vegetais capazes de reconhecer e se ligar a glicoconjugados presentes na superfície de microorganismos tais como bactérias e fungos, e desse modo inibir sua motilidade e multiplicação (BROEKAERT et al., 1984; LILJAMARK; SCHAUER, 1977).