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O BLUES NO DELTA DO JACUÍ BLUES COMO ESTADO DE ESPÍRITO

F: Hum [calculando] Eu nasci em 1972 Olha, ali por 90, 91 Ou

4. ARTICULANDO AS DEFINIÇÕES SOBRE O BLUES EM PORTO ALEGRE

4.1 O BLUES NO DELTA DO JACUÍ BLUES COMO ESTADO DE ESPÍRITO

O pesquisador sobre blues Paul Oliver, ao introduzir o verbete blues no The New Grove Dictionary of Music and

Musicians apresenta logo de início uma característica “extra-

musical” do blues. Ele afirma que o principal “significado extra-musical” do blues refere-se a um estado de espírito, mais especificamente aos estados de melancolia ou depressão. Oliver chama de “extra-musical” pois afirma não encontrar indícios convincentes de uma expressão musical referida com o nome de blues antes da Guerra Civil nos Estados Unidos no século XIX, porém indícios da associação do blues referente a estados de espírito como a melancolia já existiam em meados do século XVII no mesmo país (Oliver: 2007-2015). Mesmo assim devemos considerar tais significados fortemente atrelados ao blues como musicalidade, principalmente porque estes estão intimamente relacionados ao contexto no qual estavam inseridos os africanos escravizados ou descendentes destes agentes dessa musicalidade, no final do século XIX e início do século XX nos EUA. Na história do blues é geralmente aceito que quem canta ou toca o blues assim o faz para livrar-se do blues, neste caso um sinônimo de tristeza ou problema.

O blues foi considerado uma presença permanente na vida dos negros americanos e era frequentemente personificada em sua música como “Senhor Blues”... Conclui-se que blues também pode significar uma forma de interpretar. Muitos músicos de blues de todas as escolas têm sustentado que a capacidade de um músico para tocar blues expressivamente é uma medida da sua qualidade. Dentro do blues como música folclórica essa capacidade é a essência da arte; um cantor ou artista que não expressa o sentimento 'blues' não é um 'bluesman'. Certas qualidades de timbre às vezes utilizam técnicas de distorção [saturação do sinal] e estão associadas a esta forma de expressão; o timbre, bem como as notas alteradas (produzido por desvios microtonais) no blues pode até ser simulado, mas blues como sentimento não pode, como afirmam os autores expoentes do blues (Ibidem).

No entanto, se repararmos na performance de Let The

Good Time Roll34 do bluesman B.B King notaremos que a

proposição do tema, originalmente do cantor e saxofonista Louis Jordan, direcionada ao espectador refere-se a algo contrastante ao estado de espírito referido por Paul Oliver. No caso da interpretação de B.B King, o tema está em G e é um

rhythm‟n blues. B.B King faz um solo em resposta ao tema

introdutório da seção de sopros, o mesmo tema da versão de 1946 de Louis Jordan. Seu andamento está em up tempo e B.B King canta a letra que é uma mensagem clara e direta à audiência.

Hey, everybody, let's have some fun You only live but once

And when you're dead you're done, so

Let the good times roll, let the good times roll I don't care if you're young or old

Get together, let the good times roll35

Nesse caso devemos considerar que Louis Jordan36 compôs o tema já em 1946, vinte e seis anos depois das primeiras gravações de blues, rearticulando a associação do blues à tristeza, como comentado por Paul Oliver, para outro contexto e conseqüentemente outro uso. De fato, em 1930, o blues – como gênero musical e como estado de espírito - já não estava sendo associado somente como um veículo para expurgar males, mas como “goodtime music”. Sua categoria musical no âmbito da indústria fonográfica estava altamente atrelada a outros gêneros como a música da Tin Pan Alley, o ragtime, o jazz e músicas religiosas também (Middelton 1990: 142).

O que se nota aqui é que, independentemente dos atributos deste estado de espírito, o blues feeling está como um dos pontos centrais característicos desse gênero musical e, diferentemente da visão tradicional do cantor folclórico nos EUA, cujas temáticas abordadas tratam de uma perspectiva mais ampla e coletiva, a performance do bluesman, geralmente sugerindo grande envolvimento emocional, comunica e expurga sua temática de caráter inicialmente individual, porém compartilhada pelos iguais no público.

Nos blueseiros de POA a associação do blues como estado de espírito e a concepção do blues como um veículo de

35Ei, todo mundo, vamos ter um pouco de diversão / Você só vive uma vez /

E quando você está morto, aí já era, então / Deixe os bons tempos rolarem / Deixe os bons tempos rolarem / Eu não me importo se você é jovem ou velho / Vamos ficar juntos, deixe os bons tempos rolarem. (tradução do

autor)

expressão do sujeito também está presente. Outra questão semelhante aos usos notados por Oliver e Middleton no blues estadunidense, e reconhecido como tal entre os blueseiros pesquisados em POA, está na representação da personalidade do blueseiro com o uso de recursos idiomáticos musicais peculiares as suas personalidades bem como sua abordagem utilizada na performance.

Coié Lacerda, ao comentar sobre quando foi apresentado ao blues como música, disse que Toquinho lhe havia explicado que o blues era uma música acerca “de quem não tem mais

nada, quem perdeu tudo.”. Dessa maneira, Coié relacionou sua

sensação de angústia com a descrição feita por Toquinho. A ideia do blues como instrumento de comunicação/expurgação também aproximou Coié do blues.

Fernando Noronha apontou em sua entrevista as diferentes linhas estilísticas do blues, seus ritmos e qualidades de andamento – slow blues, boogie oogie, shuffle, swing blues - como referenciais de estados de espírito: “tu pode tocar todos

os teus estados de espírito, ali, com os diferentes estilos. O slow blues, o shuffle, um shuffle de andamento médio, pegando no pé da tua mina [mulher]”. Fernando também apontou para

questões relacionadas ao caráter das letras e das suas performances como recursos de representatividade da mensagem pretendida pelo blueseiro na comunicação: “[sobre o texto das letras] Tu pode ser bem humorado, pode ser

melancólico, agarrado ao drama. Agora, depois do divórcio, fiz 32 músicas. E muitas, que eu conseguia cantar finalmente:

[cantando] “She is gone, and she won‟t be back no more”. O etnomusicólogo John Covach vê o timbre como um “componente-chave” na análise da música popular (Covach, 2010: 461). Middleton também comenta sobre a necessidade de atenção às características tímbricas na análise das performances (Middleton 1990: 104). O efeito tremolo na guitarra de Fernando Noronha no tema da música Meet

descritivo utilizado na representação do estado de espírito proposto pelo agente. A sensação de instabilidade do tremolo provocada pela movimentação oscilante e contínua no sinal da guitarra entre os lados do stereo contribuem com a narração por parte do protagonista da canção sobre uma viagem espiritual. O timbre do hammond, instrumento altamente associado à música gospel e conseqüentemente a ritos religiosos, também reforça a temática espiritual proposta por Fernando.

Dessa forma, notamos que em POA o blues também tem esta relação com o estado de espírito. O que rearticula o blues e seus significados ao contexto de POA, tornando-o peculiar a este contexto, está na maneira em que esses blueseiros gaúchos expressam seus estados de espírito e sua individualidade, como articulam o blues em função das características culturais e locais, na maneira que abordam os recursos idiomáticos musicais em função da representação do seu contexto e em como estão inseridos no âmbito global do blues como expressão cultural.

4.2 BLUES COMO UM VEÍCULO DE EXPRESSÃO DO