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3. O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E A CISG

3.1. A Boa-fé no Direito Internacional

3.1.1. A Boa-fé na Civil Law

Nesse tópico, serão abordados aspectos do princípio da boa-fé nos diversos ordenamentos jurídicos regidos pela Civil Law, tais como no Brasil, na Alemanha e Itália.

Em países de civil law, como exposto no Capítulo 1 deste estudo, em decorrência da influência do Direito Romano e do Direito Canônico, a preocupação principal do sistema legal não é com a transação econômica em si, mas com o câmbio efetivo de consentimentos e com a avaliação moral da conduta das partes do negócio135.

Portanto, nessas jurisdições, a boa-fé geralmente é trazida por disposições expressas contidas nos Códigos de Lei como, por exemplo, o Código Civil Brasileiro em seu art. 113136, que estabelece que “os negócios jurídicos

devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. Os arts. 187137 e 422138 do Código Civil Brasileiro também traduzem

manifestações da boa-fé objetiva.

135 BARRY, Nicholas. The United Kingdom and the Vienna Sales Convention: another case of splendid isolation? Rome: Centro di Studi e Richerche di Diritto Comparato e Straniero, 1993. Disponível em: <http://www.cnr.it/CRDCS/nicholas.htm.>. Acesso em: 05 jan. 2016.

136 Também são exemplos: Artigo 1134 do Código Civil Francês; Parágrafo 242 do Código Civil Alemão; e Parágrafo 1337 do Código Civil Italiano.

137 Artigo 187, CC. “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” 138 Artigo 422, CC. “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”

No Brasil, a boa-fé objetiva pode ser considerada norma impositiva de uma conduta leal, que gera um dever de correção que domina o tráfego negocial139. Assim, manifesta-se no ordenamento como regra de conduta, estabelecendo um padrão de comportamento por meio de imposição de limites que trazem eticidade às relações jurídicas, sendo considerada como uma forma de concretização do princípio constitucional da solidariedade social140.

Segundo Judith Martins-Costa141: "A boa-fé objetiva atua, funcionalmente, em uma tríplice direção: como cânone para a interpretação contratual; como critério para a integração contratual; suscitando o preenchimento de lacunas por meio da imposição de deveres de conduta ("deveres anexo", com caráter instrumental ao interesse à proteção, e "deveres de proteção"); e como fator de controle e correção do conteúdo do contrato e da conduta das partes impedindo o exercício jurídico disfuncional."

O Código Alemão traz expressamente em seu §242 a obrigação de agir de boa-fé considerando-se usos e costumes142, tendo já sido dito que a boa-

fé no Direito Alemão possui três funções básicas: “it serves as the legal basis of interstitial law-making by the judiciary, it forms the basis of defences in private law suits, and it provides a statutory basis for reallocating risks in private contracts”143.

Interessa notar que a boa-fé é reconhecida há muito tempo pelo Direito Alemão, tendo o país um extenso repositório de jurisprudência. Entretanto, devido à amplitude do conceito, não há uma definição específica da boa-fé. O

139 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. 1. ed. 2.ª tiragem. São Paulo: RT, 2000, p. 46.

140 DANTAS JR., Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Biblioteca de estudos em homenagem ao professor Arruda Alvim. Curitiba: Juruá,2008, p. 131.

141 In: O princípio da boa-fé objetiva: notas comparativas entre as perspectivas da CISG e do direito civil brasileiro. In: VENOSA, Sílvio de Salvo; GAGLIARDI, Rafael Villar; TERASHIMA, Eduardo Ono (Org.). A Convenção de Viena sobre contratos de compra e venda internacional de mercadorias: desafios e perspectivas. São Paulo: Atlas, 2015, p. 120-121.

142 “Treu und Glauben mit Rücksicht auf die Verkehrssitte”.

143 EBKE, Werner F.; STEINHAUER, Bettina M. The doctrine of good faith in German Contract Law. In: BEATSON, Jack; FRIEDMANN, Daniel. Good faith and fault in contract law, 1995. Em tradução livre: "Serve como uma base legal intrínseca para a produção de leis para o Judiciário, forma a base para defesas em processos privados, e fornece base legal para realocação de risos em contratos privados."

operador do direito deve ler nas entrelinhas para extrair o conceito e aplicá-lo ao caso concreto144.

O Direito Italiano também prevê o dever das partes de agir em observância ao princípio da boa-fé, seja na fase pré ou pós-contratual. Essa obrigação abrange, inclusive, o dever de divulgar informações relevantes para a parte contrária durante a fase de negociação contratual. Para o Direito Italiano, a boa-fé é tratada como uma dever ético que é parte integrante da ordem pública nacional145.

Nesse contexto, pode-se afirmar que, a despeito de a boa-fé ter diferentes significados e extensão em países de civil law, existe um núcleo comum entre eles, qual seja, a parte tem o dever pré-contratual de agir em boa-fé e negociar de maneira justa e razoável com a outra parte.

Naturalmente, essas obrigações estendem-se à execução contratual, impondo um dever de retidão e razoabilidade às partes, que devem basear sua conduta na confiança entre as partes. O chamado princípio da boa-fé objetiva é considerada matéria de ordem pública na maioria dos países de tradição civil law146.