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A transnacional farmacêutica Boehringer Ingelheim é acusada de violar o direito à saúde da população brasileira e as normas éticas de pesquisa em seres humanos, por ter se recusado a solicitar o registro no Brasil de medicamento testado na população brasileira, impedindo o seu acesso ao mesmo.

A empresa alemã Boehringer Ingelheim é uma das 20 maiores empresas farmacêuticas do mundo e está presente em 47 países. Em 2007, o Grupo Boehringer Ingelheim obteve lucro líquido de 2,8 bilhões de dólares47.

No caso ora em análise, além da violação do direito humano à saúde e impactos na saúde pública, é importante destacar também o descumprimento às normas de ética em pesquisa.

A transnacional farmacêutica alemã Boehringer Ingelheim produz o tipranavir, medicamento utilizado no tratamento da AIDS. No entanto, este medicamento não pode ser comercializado no Brasil, uma vez que a empresa se recusou, até março de 2008, a realizar o pedido de registro no órgão nacional competente (no caso a ANVISA). A empresa alega que o registro do produto é feito de acordo com um cronograma pautado por estratégias globais da companhia48 (anexo).

No entanto, o medicamento foi clinicamente testado em seres humanos em 14

centros no Brasil, em cerca de 500 pessoas envolvidas49.

A pesquisa em seres humanos deve ser realizada de acordo com normas éticas em pesquisa. Portanto, a empresa está sujeita às Normas de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Conselho Nacional de Saúde brasileiro (principalmente as Resoluções

47 Boehringer-Ingelheim Summary Report 2007. Disponível em http://www.boehringer-

ingelheim.com/corporate/annual/index.asp?&nivel1=147&nivel2=150, consultado em 09 de julho de 2008.

48 O Estado de São Paulo, 19 de janeiro de 2008, Empresa deixa de lançar antiAids por discordar de lei de

patentes do País.

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http://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT00144105?show_locs=Y#locn, consultado em 22 de janeiro de 2008.

196/96, 251 e 292) e às Diretrizes Internacionais de Ética em Pesquisa – no caso: Código de Nuremberg (1947), Declaração de Helsinki da Associação Médica Mundial (2000), Declaração de Bioética Gijón do Comitê Científico da Sociedade Internacional de Bioética (2000); Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos do Conselho para Organizações Internacionais de Ciências Médicas - CIOMS (2002) e Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO (2005). Além disso, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, sociais e culturais da ONU também estabelece o direito de todos de usufruir os benefícios do progresso científico e suas aplicações (artigo 15).

Uma das principais normas éticas que deve ser observada é a garantia de retorno dos benefícios obtidos através das pesquisas clínicas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas. E foi justamente esta norma que foi

flagrante violada pela empresa Boehringer Ingelheim no presente caso.

Ressaltamos que a falta de registro sanitário no país resulta na impossibilidade de comercialização do medicamento e, portanto, na negativa de acesso aos brasileiros. Assim, além de constituir uma violação ao direito humano à saúde, esta atitude de não solicitar o registro constitui uma flagrante e abusiva violação das Normas e Diretrizes de Ética em Pesquisa.

O tipranavir está sendo comercializado nos Estados Unidos e na Europa desde 200550. Não obstante, a Boehringer só efetuou o pedido de registro do medicamento no Brasil no dia 03 de março de 200851. Até o momento, o pedido ainda se encontra em análise na ANVISA52. Assim, o medicamento ainda não está registrado no Brasil53, impedindo a sua comercialização no país e, conseqüentemente, o acesso da população ao mesmo.

50 EMEA European Medicines Agency,

http://www.emea.europa.eu/humandocs/Humans/EPAR/aptivus/aptivus.htm, consultado em 07 de maio de 2008.

FDA US Food and Drug Administration,

http://www.fda.gov/cder/consumerinfo/druginfo/aptivus.HTM, consultado em 07 de maio de 2008.

51 Processo nº 25351.148976/2008-79, em trâmite perante a ANVISA. O número do processo na

ANVISA foi fornecido pela própria Boehringer Ingelheim. Na consulta disponível no site da ANVISA, não é possível consultar informações sobre o mérito do pedido, apenas seu andamento dentro da Agência. A ANVISA não presta informações a terceiros sobre os processos em análise; apenas a decisão de deferimento ou indeferimento do pedido de registro será publicada no diário oficial.

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http://www7.anvisa.gov.br/datavisa/Consulta_Processos/Resultado_Processos_Detalhe.asp, consultado em 10 de julho de 2008.

A demora no pedido de registro do medicamento pela Boehringer Ingelheim demonstra que, para a transnacional, as pessoas vivendo com HIV/AIDS no Brasil foram consideradas adequadas para sofrer os riscos resultantes de um ensaio clínico, mas não para ter acesso aos benefícios resultantes da pesquisa. Isso constitui um evidente caso de exploração, no qual uma população foi exposta aos riscos da pesquisa sem que possa usufruir seus benefícios.

Atenta-se para o fato de que não pretendemos que a Agência brasileira conceda registros a todo e qualquer medicamento testado no Brasil. O que se quer é que, caso haja a realização de ensaios clínicos no país, a empresa seja obrigada a solicitar o registro, que será deferido ou não pela ANVISA dependendo do cumprimento dos requisitos necessários. Atualmente, a decisão de solicitar ou não o registro do medicamento testado no país cabe tão somente a empresa, que pode priorizar seus planos de marketing em detrimento das normas de ética em pesquisa. O fato de a legislação brasileira não estipular a obrigatoriedade de solicitação do pedido de registro em casos de medicamentos testados clinicamente na população brasileira, assim como a resposta do órgão nacional responsável pelo acompanhamento das normas de ética em pesquisa (CONEP – Conselho Nacional de Ética em Pesquisa), revela a conivência do governo brasileiro com esta grave violação de direitos humanos. De fato, em resposta à denúncia do caso enviada ao CONEP, o órgão respondeu que não se tratava de um caso de violação de ética, mas sim de registro sanitário.

Ainda, ressaltamos que a argumentação adotada pela empresa de que os pacientes que efetivamente participaram das pesquisas clínicas estão recebendo o medicamento, não afasta a violação das normas éticas em pesquisa. Outros pacientes que também necessitam do medicamento não podem ter acesso a ele devido à ausência de registro sanitário no país. Já há, inclusive, decisões judiciais que negaram o fornecimento do medicamento pelo Estado sob o argumento exclusivo de falta de registro na ANVISA54. Este fato foi identificado por um ativista como um ponto de potencial conflito entre diferentes grupos de pacientes.

53 http://www7.anvisa.gov.br/datavisa/Consulta_Produto/consulta_medicamento.asp, consultado em 09 de

julho de 2008.

Por fim, ressaltamos que existem indícios de que a decisão da empresa de não solicitar o registro do medicamento no Brasil tenha sido em retaliação tanto em relação a não anuência da ANVISA no processo de pedido de patente do tipranavir55, quanto em relação ao procedimento para fixação do preço pelo qual o medicamento será comerciado no Brasil56 (anexo). Assim, esta atitude seria uma outra forma de atuação da indústria farmacêutica de tentar deslegitimar a utilização de flexibilidades de interesse para a saúde pública.

A Boehringer Ingelheim também realizou ensaios clínicos com o tipranavir em outros países em desenvolvimento, entre eles: Argentina, Colômbia, Bahamas, México e Tailândia57. Não temos notícias sobre o pedido de registro sanitário nestes países, porém é possível que a empresa não tenha feito a solicitação, também privando a população destes países do acesso ao medicamento.

Cenário internacional

O caso Abbott na Tailândia

Em novembro de 2006, o governo da Tailândia emitiu sua primeira licença compulsória, para que fosse importada e, posteriormente fabricada, a versão genérica do medicamento anti-retroviral Efavirenz, da empresa multinacional Merck. A Merck cobrava pelo medicamento na Tailândia o dobro do preço estipulado por fabricantes de genéricos na Índia. Além disso, em várias ocasiões a Merck não conseguiu fornecer o medicamento naquele país58.

55 Pedido de patente nº 9507615-8.

56 Cadernos Pela Vidda nº 44. Disponível em http://www.aids.org.br/media/File/cadernos/CPV_n44.pdf e

O Estado de São Paulo, 19 de janeiro de 2008, Empresa deixa de lançar antiAids por discordar de lei de patentes do País.

57 http://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT00144105?show_locs=Y#locn, consultado em 22 de janeiro de

2008.

58 TAILÂNDIA, Facts and Evidences on the 10 Burning Issues Related to the Government Use of Patents on Three Patented Essential Drug in Thailand. Disponível em: http://www.moph.go.th/hot/White%20Paper%20CL-EN.pdf, consultado em 05 de julho de 2008.

Em janeiro de 2007 o governo da Tailândia emitiu mais duas licenças compulsórias59. Uma foi para o clopidogrel (nome comercial Plavix®), um anticoagulante vendido pela Sanofi-Aventis e Bristol-Myers Squibb utilizado para tratamento de doença cardíaca; a outra foi para o Kaletra®, da empresa Abbott, utilizado no tratamento da Aids. O governo tailandês justificou a medida pelos altos preços praticados pelas empresas e pela necessidade de fornecimento dos medicamentos para grande número de pessoas.

A empresa farmacêutica estadunidense Abbott reagiu à emissão da licença compulsória do Kaletra® na Tailândia com um agressivo lobby contra o uso de licença compulsória. A empresa iniciou uma campanha divulgando informações falsas sobre o processo de emissão da licença pelo governo tailandês e requereu ao governo dos Estados Unidos que pressionasse a Tailândia por ter “roubado” sua propriedade intelectual. Em resposta, o EUA colocou a Tailândia em sua lista de observação prioritária quanto ao respeito à propriedade intelectual60.

Além disso, em represália a emissão da licença compulsória, a Abbott retirou o pedido de registro sanitário de 7 novos medicamentos na Tailândia, impedindo que os mesmos pudessem ser comercializados no país. Isso mesmo depois que a Organização Mundial de Saúde – OMS e diversos governos confirmaram que a decisão do governo tailandês é totalmente compatível com as regras internacionais61.

O caso da Abbott na Tailândia é um exemplo de como as empresas transnacionais farmacêuticas abusam de seu poder econômico para tentar impedir a utilização legítima das flexibilidades de interesse para saúde previstas no Acordo TRIPS e se assemelha ao caso da Boehringer Ingelheim no Brasil pelo fato de ambas as empresas terem utilizado

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A licença compulsória é uma flexibilidade de interesse para a saúde prevista no artigo 31 do Acordo TRIPS. Permite que autoridades licenciem companhias ou indivíduos que não são os titulares da patente a fabricar, usar, vender ou importar um produto sob proteção patentária sem a autorização do detentor da patente. O Acordo TRIPS permite a concessão de licença compulsória como parte da tentativa geral do Acordo de atingir um balanço entre a promoção de acesso a drogas existentes e a promoção de pesquisa e desenvolvimento para novas drogas. No entanto, o termo “licença compulsória” não aparece no Acordo TRIPS. No lugar, é utilizada a expressão “outros usos sem a autorização do titular da patente”.

60 FORD, N; WILSON, D.; CHAVES, GC; LOTROWSKA, M; KIJTIWATCHAKUL, K., Sustaining access to antiretroviral therapy in the less-developed world: lessons from Brazil and Thailand. AIDS 21

Suppl 4:S21-S29, 2007. Disponível em

http://fieldresearch.msf.org/msf/bitstream/10144/19975/1/Sustaining%20access%20to%20antiretroviral% 20therapy%20-%20AIDS%2021-s4%202007-07%20PMID%2017620749.pdf, consultado em 05 de julho de 2008.

a prerrogativa de solicitar ou não o registro sanitário do medicamento no país como forma de confronto à adoção de políticas públicas de proteção à saúde pelos governos nacionais.

Por fim, ressaltamos que ao mesmo tempo em que a empresa Abbott contestava a emissão de licença compulsória para aumentar o acesso ao tratamento da Aids na Tailândia, ela requereu a concessão de uma licença compulsória em relação à tecnologia utilizada em um kit de genotipagem para o vírus da hepatite C patenteada pelo laboratório Innogenetics62. A solicitação de uma licença compulsória pela Abbott se contrapõe aos argumentos por ela utilizados para contestar a legalidade do uso da referida medida. Não pode a empresa sustentar que a utilização da licença compulsória é ilegal e prejudicial ao sistema de proteção de propriedade intelectual e à inovação, quando ela mesma solicita a concessão de uma licença compulsória de uma patente de outro laboratório. Ainda mais no caso da Tailândia, no qual a licença compulsória visa à proteção da saúde e da vida de milhares de cidadãos e não a obtenção de lucros ainda maiores.

Apresentação do caso no TPP

Como mencionado, o caso da empresa Boehringer Ingelheim foi apresentado ao TPP como um relato de caso e não como uma acusação. Isso porque na véspera da apresentação da acusação no Tribunal em Lima, um representante da empresa no Brasil encontrou em contato com a secretaria do GTPI informando que a solicitação do pedido de registro sanitário do tipranavir havia sido realizada em março de 2008. No entanto, como a informação sobre a existência ou não de um pedido de registro não é fornecida pela ANVISA, não nos foi possível ter conhecimento sobre esta solicitação anteriormente.

Não obstante, acreditamos que a demora na solicitação do pedido de registro do tipranavir no Brasil em razão de o país não fazer parte das estratégias globais da empresa no momento em que o medicamento foi lançado no mercado mundial, já

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http://www.innogenetics.com/site/pressview.asp?id=189&lang=E&print=true, consultado em 13 de agosto de 2007.

representou uma violação das normas éticas de pesquisa em seres humanos e do direito à saúde de muitas pessoas que tiveram negado acesso ao medicamento durante todo este período (que se estende até a presente data, na medida em que o pedido do registro ainda se encontra em análise na ANVISA).

Acreditamos que a apresentação do caso ao TPP, ainda que sob a forma de relato de caso, foi importante para denunciar outra forma de atuação da indústria farmacêutica que viola direitos humanos sempre que seus interesses comerciais não são priorizados. Assim como a empresa Abbott na Tailândia, o caso da Boehringer Ingelheim no Brasil é um exemplo de como as empresas transnacionais farmacêuticas utilizam a prerrogativa que possuem de optar ou não pela comercialização de um produto em determinado país (mediante a solicitação do registro sanitário), mesmo quando a sua não disponibilização poderá causar grandes prejuízos à saúde e à vida de centenas ou milhares de pessoas.

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