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EMPRESAS TRANSNACIONAIS EUROPÉIAS NA AMÉRICA LATINA: ESTUDO DE CASO DE TRANSNACIONAIS FARMACÊUTICAS NO BRASIL

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RELATÓRIO FINAL

EMPRESAS TRANSNACIONAIS EUROPÉIAS NA AMÉRICA

LATINA: ESTUDO DE CASO DE TRANSNACIONAIS

FARMACÊUTICAS NO BRASIL

Estudo elaborado por Marcela Fogaça Vieira

A pedido de Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids – ABIA

Grupo de Trabalho Sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos – GTPI/REBRIP

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ÍNDICE

APRESENTAÇÃO

INTRODUÇÃO

- O mercado farmacêutico, o direito humano à saúde e o sistema de proteção

à propriedade intelectual ESTUDOS DE CASO

- caso Roche

- caso Boehringer Ingelheim

CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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APRESENTAÇÃO

O Grupo de Trabalho Sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos – GTPI/REBRIP1 selecionou dois casos sobre empresas transnacionais farmacêuticas européias no Brasil para apresentar ao Tribunal Permanente dos Povos - 2ª sessão sobre empresas transnacionais européias na América Latina e Caribe, realizada entre os dias 13 e 16 de maio em Lima, Peru.

A sessão do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) foi realizada no marco do 3º Encontro “Enlazando Alternativas” (EA3), um encontro de organizações e movimentos sociais organizado pela Rede Bi-regional União Européia-América Latina. O Encontro foi paralelo à V Reunião de Cúpula dos Chefes de Estado e de Governo da União Européia, América Latina e Caribe.

O Tribunal Permanente dos Povos é um tribunal de caráter não governamental, do gênero dos “tribunais de opinião”, que teve origem no julgamento dos crimes contra a humanidade cometidos pelos Estados Unidos da América na guerra contra o Vietnã. Foi formalmente constituído em 1979 na Itália e já se reuniu em 31 sessões para julgar diversas situações de violação de direitos por Estados e por outros atores, como instituições monetárias internacionais e empresas transnacionais. A primeira sessão sobre empresas transnacionais foi realizada em 2006 em Viena, Áustria.

Os casos elaborados pelo GTPI para apresentação ao TPP versam sobre violação do direito humano à saúde no Brasil, principalmente no que se refere ao acesso a medicamentos, diretamente impacto pelas regras de proteção a propriedade intelectual. Os casos representam uma violação ao direito humano à saúde e também às regras de

1 O GTPI/Rebrip reúne entidades da sociedade civil que atuam para garantir o direito à saúde, entre elas

entidades que trabalham com pessoas vivendo com Hiv/Aids, com direitos humanos e com direitos do consumidor. O Grupo, formado desde 2001, se dedica ao estudo dos impactos das patentes no acesso a produtos essenciais e ao conhecimento, especialmente medicamentos. São membros do GTPI/REBRIP: ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids; CONECTAS Direitos Humanos; FASE – Solidariedade e Educação; FENAFAR – Federação Nacional dos Farmacêuticos; GAPA/SP – Grupo de Apoio à Prevenção à Aids de São Paulo; GAPA/RS - Grupo de Apoio à Prevenção à Aids do Rio Grande do Sul; GESTOS – Soropositividade, Comunicação & Gênero; GIV – Grupo de Incentivo à Vida; Grupo Pela Vidda/SP; IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor; INESC – Instituto de Estudos Socioeconomicos; INTERVOZES – Coletivo Brasil de Comunicação Social; MSF – Médicos Sem Fronteiras; OXFAM; Rede de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS Maranhão. Para mais informações, consultar www.rebrip.org.br.

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proteção à propriedade intelectual, na medida em que as transnacionais farmacêuticas buscam impedir a utilização legítima das flexibilidades de proteção à saúde pública permitidas pelo sistema internacional de proteção à propriedade intelectual. Estes casos são emblemáticos da atuação das empresas transnacionais nos países em desenvolvimento, tendo ocorrido situações semelhantes também em outros países.

A transnacional farmacêutica Roche (Suiça) é acusada de violar o direito à saúde da população brasileira e a soberania nacional, mediante a tentativa de interferência na legislação interna pelo uso de ação judicial visando à exclusão de uma flexibilidade do sistema de propriedade intelectual que visa à proteção da saúde pública.

O caso sobre a transnacional farmacêutica Boehringer Ingelheim (Alemã) envolve, além da violação do direito à saúde, o descumprimento às normas de ética em pesquisa. A empresa não havia solicitado no Brasil o registro sanitário de um medicamento que foi testado clinicamente na população brasileira. A ausência de registro sanitário impede o acesso da população ao medicamento, na medida em que impossibilita a comercialização do produto no país. Este caso foi apresentado ao TPP como um relato e não como uma acusação, uma vez que a empresa informou, às vésperas da apresentação do caso, que havia solicitado o registro do medicamento. Este contato da empresa, que deixou explícita a preocupação com sua imagem diante da apresentação do caso perante o TPP, foi avaliado como uma vitória pelo grupo.

A seguir, faremos um relato mais detalhado dos casos apresentados ao TPP, bem como uma comparação com casos semelhantes ocorridos em outros países em desenvolvimento.

Esperamos, com este relatório, dar maior visibilidade aos casos apresentados e chamar atenção para o tema de violação de direitos humanos por empresas farmacêuticas; muito pouco trabalhado por organizações na América Latina e Caribe, apesar do grande impacto na vida das pessoas que necessitam de medicamentos, sobretudo os essenciais, e na formulação de políticas de saúde pública na região.

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INTRODUÇÃO –

O MERCADO FARMACÊUTICO, O DIREITO HUMANO À SAÚDE E O SISTEMA INTERNACIONAL DE PROPRIEDADE INTELECTUAL

O mercado farmacêutico – algumas características peculiares

Segundo estimativa do International Medical Statistics (IMS Health), o mercado farmacêutico mundial deverá movimentar mais de US$ 785 bilhões em 20082. Em 2005, a América Latina representava cerca de 4% das vendas globais e o Brasil cerca de 1%3.

No entanto, este enorme mercado possui algumas características singulares que o torna um exemplo perfeito de um mercado imperfeito. A formação de verdadeiros oligopólios devido à significativa concentração da oferta de produtos por classes terapêuticas; a limitação da concorrência principalmente pela proteção à propriedade intelectual; o acesso limitado à informação isenta de interesses; a não-elasticidade da demanda em relação aos preços dos medicamentos devido à sua essencialidade e baixa possibilidade de substituição e a capacidade limitada de decisão sobre o que consumir4, são algumas das principais características do mercado farmacêutico que garantem um enorme poder às indústrias farmacêuticas. Tudo isso garantindo a manipulação do mercado em prejuízo do paciente e, principalmente, da saúde pública.

As falhas de mercado estão presentes em vários segmentos da economia, no entanto, devido principalmente à essencialidade do produto fornecido pelo setor farmacêutico e a conseqüente não-elasticidade da demanda em relação ao preço, o produtor conta com todas as possibilidades de aumentar seus preços, drenando renda dos consumidores - quer o paciente, quer os sistemas de saúde públicos ou privados - de forma quase que compulsória.

2 IMS Health‟s 2008 Global Pharmaceutical Market and Therapy Forecast, disponível em

http://www.imshealth.com/ims/portal/front/articleC/0,2777,6266_3665_82713022,00.html, consultado em 06 de julho de 2008.

3 IMS Health, apud OMS – Organização Mundial de Saúde - Relatório final da Comissão sobre direitos

da propriedade intelectual, inovação e saúde pública, CIPIH/2006/1, pp. 12-13. Disponível em http://www.who.int/intellectualproperty/documents/thereport/ENPublicHealthReport.pdf, acessado em 11 de julho de 2008.

4 CHAVES, Gabriela Costa; OLIVEIRA, Maria Auxiliadora. “Direitos de propriedade intelectual e

acesso a medicamentos” in Propriedade Intelectual: agricultura, software, direito de autor,

medicamentos: interface e desafios, Rio de Janeiro: ABIA, 2007. Disponível em http://www.abiaids.org.br/_img/media/Anais_Rebrip_web.pdf, consultado em 06 de julho de 2008.

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Não obstante, a elevação dos preços representa um verdadeiro impedimento ao acesso ao produto, muitas vezes essencial para a vida, para grande parcela da população, principalmente de menor renda. Por outro lado, a parcela da população que tem acesso ao produto convive com aumentos sistemáticos de preços, que consomem parte significativa de sua renda de maneira compulsória, uma vez que não podem deixar de consumir o produto. É essa prática da indústria farmacêutica de aumento de preços continuado – limitando o acesso da população e consumindo renda dos pacientes ou elevadas quantias de dinheiro público – que preocupa as autoridades de todo o mundo.

A indústria farmacêutica justifica os altos preços praticados principalmente em decorrência de três motivos: o alto risco da produção farmacêutica, os elevados custos da pesquisa e desenvolvimento (P&D) e a constante necessidade de inovação dos produtos. Recentemente, diversos estudos têm sido desenvolvidos para demonstrar que estes motivos são, na verdade, mitos produzidos e sustentados a qualquer custo pela indústria farmacêutica5.

O primeiro motivo – a indústria farmacêutica é uma indústria de risco – é desmentido pelos altos lucros auferidos pela indústria farmacêutica ao longo das últimas décadas; ano após ano, já há mais de duas décadas, ela se manteve no topo do ranking das empresas mais rentáveis do mundo, sendo de longe a indústria mais lucrativa nos Estados Unidos6. De fato, o lucro das empresas farmacêuticas é tão alto que, em 2002, as 10 maiores empresas farmacêuticas na lista das 500 maiores empresas da Revista Fortune apresentaram lucros maiores do que os lucros das demais 490 empresas somados (US$ 35,9 bilhões contra US$ 33,7 bilhões)7. As empresas farmacêuticas operam com uma margem de lucro em torno de 18,5% das vendas, enquanto que em outros setores industriais está margem é de aproximadamente 3,3%8. Esta excepcional e constante rentabilidade está longe de caracterizar um setor de risco.

5 Ver, sobretudo, ANGELL, Márcia. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Rio de Janeiro:

Record, 2008 e ST-ONGE, Jean-Claude. O outro lado da pílula ou os bastidores da indústria

farmacêutica.Conferência proferida no 11º Congresso Mundial de Saúde Pública e 8º Congresso

Brasileiro de Saúde Coletiva, disponível em www.ensp.fiocruz.br/eventos_novo/dados/arq3257.doc, consultado em 27 de junho de 2008.

6 ANGELL, Márcia. Op.cit.p. 13. 7

ST-ONGE, Jean-Claude. Op cit. e ANGELL, Márcia. Op.cit. p. 27.

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O segundo motivo – os custos com P&D – também tem sido afastado por diversos estudos que demonstram que a indústria farmacêutica incha artificialmente os custos envolvidos na produção de um medicamento. O mais recente estudo utilizado pela indústria como demonstrativo dos custos de produção de um medicamento, foi realizado em 2002 pela Universidade Tufts e estimou o preço médio do custo de desenvolvimento de um produto novo em US$ 802 milhões. Este estudo foi analisado por um grupo de médicos ligados a uma organização não governamental dos Estados Unidos – Health

Research Group da Public Citizen – que concluiu que, na realidade, o desenvolvimento

de um remédio novo custa entre US$ 71 e 150 milhões. O estudo realizado pela Universidade Tufts inchava artificialmente os custos não levando em consideração os créditos de impostos concedidos à indústria, avaliando os custos dos ensaios clínicos muito acima da média do mercado e acrescentando os “custos de oportunidade” do capital (que sozinhos somam US$ 400 milhões)9. A Comissão sobre direitos da propriedade intelectual, inovação e saúde pública da Organização Mundial de Saúde- OMS, em relatório publicado em 2006, estimou os custos de desenvolvimento de um novo medicamento entre US$ 115 e 240 milhões10.

Além disso, a indústria farmacêutica gasta muito mais com custos de marketing do que com P&D. A Dra. Márcia Angell, que recentemente publicou um livro sobre os bastidores das empresas farmacêuticas, estima que o marketing aumenta em cerca de 30% o preço dos produtos farmacêuticos. Por outro lado, o gasto das empresas farmacêuticas com P&D geralmente fica em torno de 15% do valor das vendas11.

O terceiro motivo – a necessidade de inovação constante – também está sendo recentemente desmistificado. A maior parte dos produtos “novos” colocados no mercado farmacêutico são, na verdade, produtos de imitação (me-toos), ou seja, moléculas equivalentes àquelas que já existem no mercado. A organização internacional

9

ST-ONGE, Jean-Claude. Op cit. e ANGELL, Márcia. Op.cit. pp. 52-63.

10 OMS – Organização Mundial de Saúde - Relatório final da Comissão sobre direitos da propriedade

intelectual, inovação e saúde pública, CIPIH/2006/1, pp. 76. Disponível em http://www.who.int/intellectualproperty/documents/thereport/ENPublicHealthReport.pdf, acessado em 11 de julho de 2008.

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Médicos Sem Fronteiras - MSF fez um levantamento no qual aponta algumas evidências da crise de inovação no setor farmacêutico12:

- Um inquérito publicado em abril de 2005 pela “La Revue Prescrire”, concluiu que 68% dos 3.096 novos produtos aprovados na França entre 1981 e 2004, não trouxeram “nada de novo” em relação aos produtos disponíveis anteriormente.

- A revista científica British Medical Journal publicou um estudo no qual demonstrava que apenas 68 (5.9%) de 1.147 novos medicamentos patenteados analisados entre 1990 e 2003 pelo Órgão Canadense de Revisão dos Preços dos Medicamentos Patenteados, foram classificados como reais inovações (breakthrough) – ou seja, primeiro fármaco a tratar de forma efetiva uma determinada doença ou que promove ganho terapêutico considerável quando comparado aos fármacos já existentes.

- Uma análise detalhada de uma centena de novos medicamentos aprovados pela agência dos Estados Unidos Food and Drug Administration (FDA) entre 1989 e 2000, revelaram que 75% não apresentavam benefício terapêutico em relação aos produtos já existentes. Apenas 153 (15%) dos 1.035 novos medicamentos aprovados pelo FDA durante neste período foram classificados como altamente inovadores – medicamentos que possuíam novos princípios ativos e que também apresentavam uma melhora clínica significativa. Entre 2000-2004 a situação se manteve semelhante, apenas 11% dos novos medicamentos foram altamente inovadores (49 de 427)13.

Evidências semelhantes podem ser encontradas em relatório produzido pela PricewaterhouseCoopers em 2007, que revela que apesar do aumento dos gastos com P&D, apenas 22 novas entidades moleculares foram aprovadas pela FDA em 2006. E faz um alerta: o problema central da indústria farmacêutica é a falta de inovação em novos tratamentos para as necessidades médicas mundiais ainda não atendidas14.

12 Médicos Sem-Fronteiras. As negociações na OMS sobre Saúde Pública, Inovação e Propriedade Intelectual (IGWG): o que vem acontecendo e quais são os desafios?

13

United States Food and Drug Administration - CDER NDAs Approved in Calendar Years 1990-2004

by Therapeutic Potential and Chemical Type. Disponível em: http://www.fda.gov/cder/rdmt/pstable.htm, consultado em 09 de julho de 2008.

14 PRICEWATERHOUSECOOPERS, Pharma 2020: the vision. Which path Will you take? Disponível

em http://www.pwc.com/gx/eng/about/ind/pharma/pharma2020final.pdf, consultado em 09 de julho de 2008.

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Assim, também não é verdadeiro o discurso adotado pela indústria farmacêutica de que ela seria um setor altamente inovador e que os elevados preços por ela praticados seriam para cobrir os custos desta inovação constante. Há uma crise de inovações genuínas, sendo que a grande maioria dos produtos “novos” lançados no mercado é constituída por modificações de medicamentos já existentes, patenteados de forma imerecida em detrimento do interesse público e do acesso a medicamentos em todo o mundo. Certamente não é essa a inovação de que precisamos. Além disso, há que se considerar o papel relevante de recursos públicos no desenvolvimento de parte dos produtos inovadores hoje existentes no mercado15.

Por fim, ainda há a questão das chamadas doenças negligenciadas16, aquelas que afetam

de forma desproporcional os países menos desenvolvidos ou em desenvolvimento. Um relatório da Organização Mundial de Saúde - OMS lançado em abril de 2005 indicou que o aumento da proteção de propriedade intelectual nos países em desenvolvimento não acarretou em aumento de pesquisa e desenvolvimento para as doenças que primordialmente afetam os países em desenvolvimento. Entre 1.556 entidades químicas lançadas no mercado entre 1975 e 2004, apenas 21 estavam relacionadas a doenças negligenciadas; menos de 10% dos fundos de pesquisa foram destinados a estas doenças, que representam 90% das causas de doença e mortalidade17.

Tudo isso faz com que haja uma enorme desigualdade no acesso a medicamentos; a população de países em desenvolvimento ou menos desenvolvidos tem menos acesso a medicamentos do que a população de países desenvolvidos. Só os Estados Unidos

15

ANGELL, Márcia. Op.cit. p. 73-82.

16 A OMS divide as doenças em três grupos. As doenças do tipo I incidem tanto nos países ricos como

nos países pobres, com grande população vulnerável em ambos. Exemplos: Hepatite B, diabetes, câncer e doenças cardiovasculares. Muitas vacinas para doenças do tipo I foram desenvolvidas nos últimos 20 anos, porém não foram amplamente introduzidas nos países pobres em decorrência de seu custo. As doenças do tipo II incidem em países ricos e pobres, mas com a grande maioria de casos em países pobres. Exemplos: HIV/AIDS, malária e tuberculose. As doenças do tipo III são aquelas que atingem exclusivamente ou quase exclusivamente os países pobres. Exemplos: doença do sono africana e cegueira do rio africana. Tais doenças recebem extremamente poucos recursos de P&D e essencialmente nenhum recurso de P&D comercial nos países desenvolvidos. Quando novas tecnologias são desenvolvidas, elas geralmente o são por acaso, por exemplo quando uma vacina desenvolvida pela Merck para uso veterinário se mostrou eficaz para o tratamento da cegueira do rio em seres humanos. As doenças do tipo II são chamadas de doenças negligenciadas e as doenças do tipo III são doenças muito negligenciadas. Relatório final da Comissão sobre direitos da propriedade intelectual, inovação e saúde pública,

CIPIH/2006/1, pp. 12-13. Disponível em

http://www.who.int/intellectualproperty/documents/thereport/ENPublicHealthReport.pdf, acessado em 11 de julho de 2008.

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consomem 43% de todos os medicamentos produzidos no mundo, enquanto que o continente africano inteiro consome apenas 1% deste total18.

O problema fundamental é a falta de demanda de mercado para produtos necessários para prevenir, tratar e curar doenças que afetam as pessoas mais pobres nos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos. As pessoas nesses países simplesmente não estão recebendo os tratamentos de que precisam. Isso demonstra que o sistema de incentivos à inovação atualmente existente encoraja as empresas a investirem apenas na criação de produtos direcionados a aqueles com poder aquisitivo (tais como problemas de calvície e tratamentos de beleza, além de doenças que atingem os países ricos), em detrimento da vida de milhares de pessoas nos países pobres.

Não obstante, é prática comum da indústria farmacêutica adotar medidas que buscam maximizar ainda mais seus lucros. Na área de propriedade intelectual, estas práticas foram denominadas evergreening, caracterizada pelas estratégias variadas utilizadas pelos detentores de patentes para estender seus monopólios para além dos 20 anos de proteção, mesmo na ausência de qualquer benefício terapêutico adicional. Estas medidas têm como principal objetivo atrasar a entrada da concorrência de medicamentos genéricos no mercado19. De acordo com a Dra. Márcia Angell, após a entrada de um medicamento genérico concorrente, o preço do produto de marca geralmente cai a 20% do que era antes. Para um medicamento blockbuster (produto campeão de vendas) – geralmente definido como um medicamento com vendas de mais de US$ 1 bilhão por ano – qualquer prazo adicional de proteção representa milhões de dólares em vendas20. Assim, não é de se espantar a quantidade de medidas adotadas pelas empresas farmacêuticas para tentar estender o período de proteção patentária para além daquele a que tem direito, bem como o uso de todo seu poder econômico contra aqueles que questionam esta prática abusiva.

18

Idem.

19 Medidas deste tipo foram identificadas até mesmo nos Estados Unidos, em um relatório da Federal Trade Commission – FTC de 2002. Generic drug entry prior to patent expiration: an FTC study.

Washington, DC, United States Federal Trade Commission, July 2002 (http://www.ftc.gov/os/2002/07/ genericdrugstudy.pdf), apud OMS, op. cit., p. 132.

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No entanto, a indústria farmacêutica se esquece que medicamentos não são bens de consumo e sim um componente essencial do direito humano à saúde e à vida, devendo estar acessíveis a todos aqueles que deles necessitam.

O direito humano à saúde e o sistema internacional de propriedade intelectual

Os principais tratados internacionais, todos eles ratificados pelo Brasil, estabelecem o direito à saúde como um direito humano fundamental. Entre eles a Declaração Universal dos Direitos do Homem (Artigo XXV. Todo homem tem direito a um padrão

de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem estar), a Declaração

Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948 (Artigo 10. 1. Toda pessoa tem

direito à saúde, entendida como o gozo do mais alto nível de bem-estar físico, mental e social) e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Artigo 12. 1. Os Estados-Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar do mais elevado nível possível de saúde física e mental), que possui força

cogente.

Internamente, o direito à saúde é um direito humano fundamental reconhecido como um direito social pela Constituição Federal de 1988 (artigo 6º). Assim, o direito à saúde é um direito de todos e dever do Estado (artigo 196), sendo garantido o atendimento integral, garantindo acesso dos cidadãos a tratamento médico adequado, inclusive a medicamentos (artigo 198).

Os dispositivos constitucionais referentes ao direito fundamental à saúde foram também regulamentados pela legislação infraconstitucional, principalmente a Lei nº 8.080/90, conhecida por Lei Orgânica da Saúde (LOS). Especificamente em relação ao tratamento de pessoas que vivem com HIV/AIDS, foi ainda editada a Lei 9.313/96, que estabelece claramente que as pessoas portadoras do HIV, bem como aqueles doentes de AIDS, receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento.

Os direitos de propriedade intelectual são regidos, principalmente, por tratados internacionais. O principal tratado de propriedade intelectual na atualidade é o Acordo

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sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS ou Acordo ADPIC) da Organização Mundial do Comércio (OMC). Este acordo foi assinado em 1994 e representou importante mudança no tratamento dado aos direitos de propriedade intelectual, cujo aspecto comercial passou a ser priorizado. São os direitos de propriedade intelectual que, ao transformarem bens que não são naturalmente escassos em bens artificialmente escassos, conferem valor a tais bens, transformando-os em mercadoria comercializável. Assim, a proteção à propriedade intelectual tem uma função econômica muito clara em nossa sociedade: realizar uma “escassez artificial” de bens que não são naturalmente escassos, tal como o conhecimento e o desenvolvimento tecnológico, valorando-os como mercadorias.

O Acordo TRIPS foi instituído com o objetivo declarado de contribuir para a promoção da inovação tecnológica e para a transferência e difusão de tecnologia, em benefício mútuo de produtores e usuários de conhecimento e de forma a buscar um equilíbrio entre direitos e obrigações (artigo 7, Acordo TRIPS21). No entanto, já antecipando que o novo sistema instituído poderia gerar efeitos que impactassem desproporcionalmente países em desenvolvimento ou menos desenvolvidos, o próprio Acordo TRIPS estabeleceu como princípio que os países poderiam adotar medidas necessárias para proteger a saúde e a nutrição públicas e para promover o interesse público em setores de vital importância para seu desenvolvimento socioeconômico e tecnológico (artigo 8, Acordo TRIPS). Estas medidas são conhecidas pelo termo “flexibilidades”.

Assim, as flexibilidades são dispositivos que visam mitigar os efeitos perversos dos direitos conferidos ao detentor da patente, buscando restabelecer o equilíbrio entre os direitos de propriedade intelectual e o direito de acesso ao conhecimento. O Acordo TRIPS permite que os países membros da OMC adotem medidas para proteger a saúde pública, o que ficou conhecido como a adoção das flexibilidades de interesse para a saúde pública. As principais flexibilidades previstas no Acordo TRIPS são: licença compulsória (Artigo 31), importação paralela (Artigo 6), uso experimental (Artigo 30),

21 Acordo TRIPS - Artigo 7 - Objetivos

A proteção e a aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual devem contribuir para a promoção da inovação tecnológica e para a transferência e difusão de tecnologia, em benefício mútuo de produtores e usuários de conhecimento tecnológico e de uma forma conducente ao bem-estar social econômico e a um equilíbrio entre direitos e obrigações.

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exceção bolar (Artigo 30) e atuação do setor saúde nos processos de pedidos de patentes farmacêuticas (implícita no Artigo 8).

É importante ressaltar que, antes da constituição da OMC, os temas relacionados à propriedade intelectual eram tratados pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) criada em 1967 com os principais objetivos: a) fomentar a proteção da propriedade intelectual em todo o mundo mediante a cooperação dos Estados, em colaboração com outras organizações internacionais e b) assegurar a cooperação administrativa entre as Uniões. Em 1974, a OMPI passou a ser um organismo temático do sistema da Organização das Nações Unidas - ONU com a prerrogativa específica de lidar com as questões de propriedade intelectual.

O papel da OMPI no sistema internacional de propriedade intelectual começou a dar sinais de enfraquecimento quando o tema dos direitos de propriedade intelectual passou a ser discutido no âmbito do comércio internacional, durante a chamada Rodada Uruguai do Acordo Geral Sobre Tarifas e Comércio (GATT – sigla do inglês General

Agreement on Tariffs and Trade), que ocorreu entre 1986 e 1994. Esta Rodada

culminou na criação da OMC.

Essa mudança de foro para a OMC foi promovida com o intuito de proteger indústrias de alta tecnologia dos países desenvolvidos da concorrência dos países em desenvolvimento. O fato de o Acordo da OMC ter sido negociado como um pacote único facilitou a tarefa de convencer os países em desenvolvimento a aceitarem as regras mais rígidas para os direitos de propriedade intelectual em troca de promessas de compensações nas áreas agrícola e de produtos têxteis. Importante observar que essa inclusão no âmbito da OMC proporcionou aos países desenvolvidos uma ferramenta para impor a observância dos direitos de propriedade intelectual, qual seja, o Mecanismo de Solução de Controvérsia – MSC da OMC.

A principal mudança trazida pelo Acordo TRIPS foi o estabelecimento da obrigatoriedade de proteção da propriedade intelectual para todos os campos tecnológicos, incluindo o setor farmacêutico. Os países tiveram que modificar suas legislações nacionais para adequar-se ao TRIPS, o que representou para muitos o reconhecimento de proteção via patentes para campos tecnológicos não desenvolvidos

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internamente e um fortalecimento da reserva de mercado das empresas transnacionais com sedes nos países desenvolvidos. No caso dos medicamentos, componente essencial para a garantia do direito à saúde, o TRIPS passou a tratá-los como qualquer outra mercadoria, trazendo prejuízos e barreiras importantes para a implementação de políticas de saúde.

O Brasil, até 1996, não reconhecia patentes para produtos e processos farmacêuticos em sua legislação. Em 1996, foi aprovada a nova a Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/96), que incluía a proteção para o setor farmacêutico, entre outros. Esta modificação causou grande impacto no sistema público de saúde, especialmente no que tange o acesso universal ao tratamento para HIV/AIDS, a concessão de proteção à propriedade intelectual para medicamentos fez com que não fosse mais possível a produção local de genéricos. Os genéricos são comercializados a preços muito mais acessíveis em relação aos produtos patenteados, tendo em vista que a entrada de novas versões no mercado promovem a concorrência.. A entrada de competidores genéricos no mercado quebra a lógica do monopólio, onde fornecedores exclusivos podem praticar altos preços. A concorrência genérica tornou viável o acesso universal a tratamento para as pessoas vivendo com HIV/AIDS no Brasil até então.

No entanto, a necessidade de compra de medicamentos patenteados ou sujeitos à proteção patentária comercializados com preços altíssimos está colocando em risco a sustentabilidade do programa de acesso universal a tratamento no Brasil, na medida em que são necessários cada vez mais recursos financeiros para o fornecimento de medicamentos, seja em função da incorporação constante de novos pacientes em tratamento, seja pela necessidade de incorporação de novas tecnologias para pacientes em tratamento há algum tempo. O risco para a sustentabilidade do programa devido ao alto preço pago pelos medicamentos patenteados já foi reconhecido, inclusive, pelo próprio Governo brasileiro22.

22 Brasil, Ministério da Saúde, Programa Nacional DST/AIDS. A sustentabilidade do acesso universal a

anti-retrovirais no Brasil. Brasília, 2005. Disponível em: http://www.aids.gov.br/main.asp?ViewID=%7BA62BDF6E%2D914A%2D4DF7%2DA10E%2DCE06A B4E26F7%7D&params=itemID=%7BCCBFCB9D%2DAEAC%2D46C2%2D86F9%2DBB5690C9FD8 4%7D;&UIPartUID=%7B585687B3%2DF650%2D459E%2DAC6E%2D23C0B92FB5C4%7D.

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A lei de patentes brasileira incluiu algumas das flexibilidades do Acordo TRIPS que são de interesse para a saúde pública, entre elas a possibilidade de emissão de licença compulsória e a atuação do setor saúde nos processos de análise de pedidos de patentes farmacêuticas – a anuência prévia da ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Muito embora essas flexibilidades estejam incorporadas na legislação brasileira e sejam compatíveis com as regras internacionais, a sua utilização tem sido bastante limitada, não apenas no Brasil, mas também em quase todos os países em desenvolvimento.

A atuação do setor saúde no processo de concessão de patentes farmacêuticas é uma flexibilidade incluída na legislação brasileira que tem sido objeto de diversos questionamentos pela indústria farmacêutica. Os casos ora tratados estão, em alguma medida, relacionados a esta flexibilidade, existente na legislação brasileira e recentemente incorporada à legislação de outros países em desenvolvimento, como o Paraguai, ainda que de forma limitada. Assim, faz-se necessário explicar um pouco no que consiste esta atuação do setor saúde nos processos de análise de patentes.

A participação do setor saúde no processo de concessão de patentes farmacêuticas

De acordo com a legislação brasileira sobre propriedade intelectual, a concessão de patentes nesta área somente poderá ser concedida com a anuência prévia da ANVISA23, órgão responsável pela segurança sanitária e pela garantia da qualidade dos medicamentos no país.

Devido à importância do tema e a essencialidade dos produtos farmacêuticos, o legislador brasileiro entendeu que matéria de tal importância mereceria o exame mais cuidadoso e tecnicamente competente possível que o Estado brasileiro pudesse dispor. O papel da ANVISA na anuência prévia não é, assim, o de simples interferência no processo de concessão de patentes ou de revisão dos atos do Instituto Nacional de Propriedade Industrial - INPI. Trata-se, sim, de uma medida para proteção dos pacientes e da saúde pública, evitando-se que seja concedida uma patente imerecida.

23

Art. 229-C, LPI. A concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos dependerá da prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA. (Incluído pela Lei nº 10.196/01)

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A concessão de uma patente implica em um privilégio temporário de monopólio de exploração de um determinado produto ou processo24. Este monopólio, uma vez que representa uma exceção ao princípio de livre iniciativa e restringe o acesso ao produto por meio de um único fornecedor, somente poderá ser concedido se cumprir todos os requisitos necessários para sua concessão. A proteção patentária de medicamentos tem importantes implicações para a saúde pública, pois o governo fica restrito a comprar apenas de uma empresa, que por sua vez pode praticar preços altos, comprometendo os orçamentos públicos para compra de medicamentos e o acesso da população aos mesmos. A concessão de uma patente imerecida causa grande impacto sobre a saúde pública na medida em que impossibilidade a entrada de medicamentos genéricos no mercado, além de imbutir o pagamento de royalties ao preço final do medicamento, direcionado ao detentor da suposta “nova tecnologia”, como uma forma de recompensá-lo perecompensá-lo investimento no desenvolvimento daquela inovação.

Desta forma, no caso de patentes farmacêuticas este cuidado na análise da concessão ou não do pedido deve ser redobrado, tendo em vista os impactos que estas patentes causam não apenas na política industrial do país, mas principalmente na política de saúde pública. É importante que os governos estejam cientes que a concessão de uma patente indevida pode gerar grandes distorções na competição e reduzir o acesso a produtos essenciais, no caso, medicamentos. Assim, toda medida tomada para minimizar os riscos de concessão de uma patente imerecida é extremamente salutar.

A Organização Mundial de Saúde – OMS identificou a participação do setor saúde nos processos de análise de patentes na área farmacêutica como benéfica para a saúde pública na tentativa de evitar a concessão de patentes indevidas25.

Por se tratar de uma medida que tem como principal objetivo a proteção da saúde pública, ela tem sido amplamente questionada pela indústria farmacêutica, que tenta interferir na legislação nacional, inclusive por meio de ações judiciais que questionam a legalidade da anuência prévia da ANVISA.

24 A patente é um título de propriedade concedido pelo Estado, que assegura ao seu titular exclusividade temporária para a exploração de uma determinada invenção (monopólio). Depois que o tempo de

proteção da patente se encerra (prazo mínimo de 20 anos), a invenção protegida cai em domínio público e todos passam a poder explorá-la.

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Neste sentido, é importante ressaltar que a flexibilização dos direitos de propriedade intelectual para a proteção da saúde pública, além de ser medida absolutamente legal e constitucional no Brasil e estar de acordo com as regras do sistema internacional de proteção à propriedade intelectual, já foi reconhecida como necessária em diversos foros multilaterais.

Desde a entrada em vigor do Acordo TRIPS, várias resoluções vêm sendo aprovadas no âmbito internacional que recomendam aos países a importância de implementar as flexibilidades do TRIPS de interesse para saúde, de modo a minimizar os efeitos negativos decorrentes do sistema de patentes.

Organização Mundial da Saúde - resoluções aprovadas nas Assembléias Mundiais de Saúde:

 1999: Estratégia Revisada em Matéria de Medicamentos (WHA 52.19)

 2001: Estratégia de Medicamentos da OMS (WHA 54.11)

 2003: Direitos de Propriedade Intelectual, Inovação e Saúde Pública (WHA 56.27) e Estratégia Mundial do Setor Saúde para o Hiv/Aids (WHA 56.30)

 2004: Ampliando o tratamento e cuidado dentro de uma resposta coordenada e abrangente ao HIV/AIDS (WHA 57.14)

 2005: Fortalecimento da preparação e resposta frente a uma epidemia de gripe (Resolução WHA58.5);

 2006: Saúde pública, inovação, pesquisa essencial em saúde e direitos de propriedade intelectual: em direção a uma estratégia global e a um plano de ação (WHA59.24)

 2007: Saúde pública, inovação e propriedade intelectual (WHA60.30)

 2008: Estratégia global e plano de ação sobre saúde pública, inovação e propriedade intelectual (WHA61.21)

É importante ressaltar que a maioria dessas resoluções foram propostas e lideradas pelo governo brasileiro nessas instâncias de negociação, sendo necessário que as políticas

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adotadas em âmbito interno mantenham coerência com o que é defendido no nível internacional.

No âmbito da OMC, foi aprovada a Declaração Sobre o Acordo Trips e a Saúde

Pública, durante a 4ª Sessão da Conferência Ministerial de Doha, no Quatar. Com a

assinatura da Declaração de Doha, os países membros da OMC concordaram que a saúde pública deve ter primazia sobre os interesses comerciais, para que os países em desenvolvimento possam assegurar a todos os seus cidadãos medicamentos com preços acessíveis. A Declaração traz os seguintes termos:

1. Nós reconhecemos a gravidade dos problemas de saúde pública que afligem muitos países em desenvolvimento e países menos desenvolvidos, especialmente aqueles que resultam do HIV/AIDS, da tuberculose, da malária e de outras epidemias. 4. Nós concordamos que o Acordo TRIPS não deve e não pode prevenir os países membros de adotar medidas para proteger a saúde pública. Conseqüentemente, enquanto reiteramos nosso compromisso com o Acordo TRIPS, nós afirmamos que o Acordo pode e deve ser interpretado e implementado de maneira a apoiar os membros da OMC a proteger a saúde pública e, em particular, promover o acesso a medicamentos para todos.

Desta forma, os países membros da OMC já decidiram que a saúde pública é uma área peculiar e que demanda uma maior proteção por parte dos governos nacionais. Esta peculiaridade permite a adoção de mecanismos adicionais para a análise dos pedidos de patentes relacionadas à saúde pública, no intuito de assegurar que apenas aqueles pedidos que realmente mereçam proteção patentária sejam de fato concedidos.

Inclusive, a OMC já se pronunciou no sentido de que é permitido aos países instituir mecanismos diferenciados de análise de pedidos de patente em determinadas áreas, a fim de implementar as políticas nacionais de acordo com os princípios e objetivos do

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Acordo TRIPS, estabelecidos em seus artigos 7º e 8º. E isso não configuraria uma violação ao princípio da não-discriminação contido no artigo 27 do TRIPS26.

Assim, a anuência prévia da ANVISA constitui uma medida que está de acordo com o sistema nacional e internacional de proteção à propriedade intelectual e que tem por finalidade uma maior proteção da saúde pública e a tentativa da indústria farmacêutica de deslegitimar o uso desta flexibilidade é um claro atentado à soberania do Brasil, que buscou adotar medidas de proteção à saúde de sua população.

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ESTUDOS DE CASO

O CASO ROCHE

A transnacional farmacêutica Roche é acusada de violar o direito à saúde da população brasileira e a soberania nacional, mediante a tentativa de interferência na legislação interna pelo uso de ação judicial visando à exclusão de uma flexibilidade do sistema propriedade intelectual que visa à proteção da saúde pública.

A F. Hoffmann-La Roche AG., conhecida simplesmente por Roche, é uma empresa internacional fundada em 1896, em Basiléia, na Suíça, por Fritz Hoffmann, juntamente com sua esposa, Adèle La Roche. A Roche é uma das 10 maiores empresas farmacêuticas do mundo e está presente em mais de 150 países. No Brasil, a Roche detém 4,78% do mercado farmacêutico, ocupando o 3º lugar. Em 2007, no mercado mundial, obteve lucro líquido de 11,8 bilhões de dólares27, operando com margem de lucro de 35.5% das vendas.

O presente caso representa um exemplo típico de atuação da indústria farmacêutica para privilegiar seus interesses comerciais em detrimento de políticas públicas adotadas para proteção da saúde da população, caracterizado pelo desrespeito à soberania nacional mediante a tentativa de modificação de uma lei brasileira. No caso, a transnacional Roche visa excluir da legislação brasileira a atuação do setor saúde no processo de concessão de patentes farmacêuticas – a anuência prévia da ANVISA - por ter tido um pedido de patente não-anuído pela Agência.

Ao questionar judicialmente a lei de patentes brasileira, a Roche ameaça o direito de os países terem leis de patentes que coloquem os interesses da sua população em primeiro lugar. As flexibilidades de interesse para saúde estão previstas no Acordo TRIPS e o direito dos países em fazerem uso destas flexibilidades já foi inúmeras vezes reafirmados em foros internacionais, inclusive pelos próprios países membros da OMC na Declaração de Doha de 2001. O litígio da Roche é um desafio direto a essas

27

Roche Annual Report 2007 – Finance Report. Disponível em http://www.roche.com/fb07e.pdf, consultado em 15 de abril de 2008.

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flexibilidades e viola não apenas o direito humano à saúde da população brasileira como as próprias regras do sistema internacional de proteção à propriedade intelectual.

A Roche, por meio de uma ação judicial em trâmite na justiça federal do Rio de Janeiro28, busca deslegitimar o uso da flexibilidade de interesse para a saúde que prevê a participação do setor saúde no processo de concessão de patentes da área farmacêutica, alegando que a participação da ANVISA neste processo violaria a Constituição Federal brasileira e o Acordo TRIPS da OMC.

Importante ressaltar desde já que a exclusão da anuência prévia da ANVISA da legislação brasileira poderá causar um grande impacto na saúde pública, uma vez que o Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI – órgão responsável pela concessão de patentes no Brasil - possui diretrizes de patenteamento muito mais amplas do que as estabelecidas pela legislação brasileira e pelo próprio Acordo TRIPS, fazendo com que inúmeras patentes farmacêuticas sejam concedidas de forma imerecida. A concessão de uma patente imerecida, como visto acima, causa grande impacto sobre a saúde pública na medida em que impossibilita a entrada de medicamentos genéricos no mercado, além de imbutir o pagamento de royalties ao preço final do medicamento29, levando a um aumento excessivo do preço do produto e dificultando o acesso da população. O presente caso constitui um exemplo de patente imerecida que teria sido concedida pelo INPI caso a ANVISA não tivesse participado do processo de análise do pedido de patente.

Em 2004, a Roche ingressou com uma ação judicial contra o INPI por este ter negado a concessão de patente30 para o produto cloridrato de valganciclovir31, princípio ativo do medicamento Valcyte® utilizado em pacientes com AIDS. O INPI deu parecer favorável ao deferimento do pedido, porém, não pôde emitir a carta patente porque a ANVISA não concedeu sua anuência prévia. A ANVISA não anuiu ao pedido devido à

28 Ação ordinária nº 2004.51.01.506840-0 – 37ª Vara Federal do Rio de Janeiro. 29

Segundo análise da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos, o preço máximo (preço de monopólio) de uma caixa com 60 comprimidos do Valcyte® será de R$7.237,66 (sete mil duzentos e trinta e sete reais e sessenta e seis centavos).

30 Pedido de patente de invenção PI 9503468-4. 31

O cloridrato de valganciclovir, comercializado pela Roche com o nome Valcyte®, é indicado para o tratamento de retinite por citomegalovírus (CMV) em pacientes com AIDS.

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falta de atividade inventiva e de novidade32 do produto, uma vez que o mesmo já se encontra no estado da técnica, sendo parte de uma patente anteriormente concedida33 na Europa (Patente Européia – EP 0375329), no início da década de 90 (anexo). O INPI não identificou este documento em sua busca de anterioridades, realizada para identificar se o produto cumpre ou não o requisito da novidade.

A Roche pede na ação a concessão da patente para o cloridrato de valganciclovir. Alega que a participação da ANVISA no processo de análise de patentes é ilegal e contrária ao Acordo TRIPS e que caso a participação da ANVISA seja aceita, ela teria ultrapassado suas atribuições ao analisar os requisitos de patenteabilidade do produto.

Um dos argumentos utilizados pela Roche neste processo judicial, e infelizmente acatado pelo Poder Judiciário brasileiro até o momento, é que a concessão de uma

patente na área farmacêutica não está em nada relacionada com aspectos de saúde pública. Por isso, alega que a anuência prévia da ANVISA, caso seja admitida pelo

Judiciário, deveria estar restrita apenas a avaliar se o medicamento poderia ser nocivo ou não aos pacientes que farão uso dele, avaliação esta realizada quando da análise do pedido de registro do medicamento e que não deveria se repetir na análise de pedido de patente, a qual caberia apenas ao INPI. Essa decisão denota ainda um desconhecimento de integrantes do Poder Judiciário em relação à matéria, posto que essa afirmação é completamente incompatível com o objetivo da anuência prévia. A ANVISA, através do instrumento da anuência, deve observar os requisitos de patenteabilidade e não aspectos terapêuticos do medicamento.

No entanto, como já visto, a concessão de uma patente farmacêutica possui sim grande impacto na saúde pública de um país, na medida em que impede a concorrência de

32 Para que uma invenção seja considerada patenteável, ela deve cumprir três requisitos: novidade,

atividade inventiva e aplicação industrial. Novidade é tudo aquilo que não está compreendido no estado da técnica, sendo este constituído por tudo aquilo tornado acessível ao público antes da data do depósito do pedido de patente no Brasil ou no exterior (princípio da novidade absoluta) (artigo 11, LPI). A invenção é dotada de atividade inventiva sempre que, para um técnico no assunto, não decorra de maneira evidente ou óbvia do estado da técnica (artigo 13, LPI). A invenção é considerada suscetível de aplicação industrial quando possa ser utilizada ou produzida em qualquer tipo de indústria (artigo 15, LPI).

33

Uma patente de seleção é aquela na qual um único elemento ou um pequeno segmento dentro de um grupo mais abrangente já conhecido é selecionado e reivindicado independentemente. Esta seleção geralmente é feita com base em uma característica particular não expressamente mencionada no pedido de proteção do grupo mais abrangente. Por se tratar de uma seleção dentro de um grupo já conhecido e revelado no estado da técnica, as patentes de seleção não cumprem o requisito de novidade e, portanto, não merecem nova proteção patentária.

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medicamentos genéricos. Caso uma patente seja concedida, a empresa titular terá um monopólio sobre aquele produto, permitindo que o mesmo seja comercializado a preços extremamente elevados. É evidente que o preço de um medicamento possui relação direta com o acesso das pessoas a ele e o acesso a um determinado tratamento possui relação direta com a saúde pública de toda a população. No Brasil, esta situação é agravada, na medida em que o Estado possui o dever de fornecer medicamentos para sua população. Assim, apenas medicamentos que cumpram os requisitos de patenteabilidade devem ser protegidos. Caso contrário, estaremos concedendo monopólio de exploração e conseqüentemente pagando muito mais caro por medicamentos que já deveriam estar em domínio público.

No presente caso, o produto para o qual a Roche busca proteção patentária – o cloridrato de valganciclovir - não cumpre os requisitos necessários para obter tal proteção, uma vez que não apresenta novidade por já se encontrar no estado da técnica. Desta forma, a concessão de uma patente para este produto iria beneficiar apenas e tão somente os interesses comerciais da Roche, em detrimento do direito fundamental à saúde da população brasileira. A extensão dos monopólios obtidos pela concessão de patentes constitui uma importante estratégia da indústria farmacêutica para maximizar seus lucros, como já visto, e é justamente isso que a Roche busca no presente caso34.

A tentativa de deslegitimar o uso de uma flexibilidade de interesse para a saúde, que foi adotada pela legislação brasileira em perfeita consonância com as regras internacionais de propriedade intelectual, constitui assim uma flagrante afronta à soberania do país em adotar normas de proteção à saúde de sua população e demonstra que a transnacional farmacêutica Roche coloca seus interesses comerciais e sua busca por elevados lucros acima do direito humano à saúde.

O processo judicial foi julgado em 1ª instância, sendo a decisão extremamente favorável à Roche. A Juíza decretou a nulidade do parecer da ANVISA, determinando que o INPI

34 Ainda não há um preço estabelecido para a comercialização do medicamento no Brasil, uma vez que o

pedido de registro foi depositado apenas em março deste ano, e o mesmo ainda não está público na maioria dos países. Um guia elaborado pela Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, traz o preço da cápsula do tipranavir como sendo US$ 9.31. Cada cápsula tem 250mg e um adulto precisa de 500mg, ou seja, duas cápsulas por dia. Assim, o preço do medicamento seria de US$ 6.796 paciente/ano.

Disponível em:

http://prod.hopkins-abxguide.org/antibiotics/antiviral/antiretroviral/protease_inhibitors/tipranavir.html?contentInstanceId=27 3596, consultado em 08 de maio de 2008.

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concedesse a patente. O principal fundamento da decisão foi o entendimento de que a ANVISA deveria se pronunciar apenas sobre o aspecto técnico de um medicamento no que concerne tão somente à nocividade do produto para a saúde pública. A ANVISA recorreu da decisão e a decisão foi anulada devido à falha no devido processo legal35. Atualmente, o processo ainda está em trâmite e não há uma decisão definitiva no caso36.

Por fim, ressaltamos um outro aspecto que chama atenção no presente caso: a forma como o Poder Judiciário brasileiro vem lidando com processos envolvendo questões relacionadas à proteção da propriedade intelectual. No caso em análise, a decisão judicial de 1ª instância foi além da argumentação desenvolvida pela própria Roche e em sua fundamentação adotou um discurso que coloca os direitos de proteção à propriedade intelectual em patamar muito superior ao direito de saúde da população. Além disso, esta decisão demonstra, mais uma vez37, que o Poder Judiciário brasileiro considera que a utilização de flexibilidades de interesse para a saúde pública violaria as normas internacionais de proteção à propriedade intelectual, levando a aplicação de represálias ao Brasil. Há uma nítida reprodução do discurso internacional adotado pelas indústrias farmacêuticas e até por governos de países desenvolvidos, sem o desenvolvimento de qualquer análise crítica sobre o tema.

Neste sentido, a título de ilustração, consideramos relevante a transcrição de alguns trechos da sentença proferida pela 1ª instância neste processo:

“Primeiramente, deve restar claro que se o Brasil pretende descumprir tratados internacionais que o faça mediante o

35 A sentença foi anulada pelo Tribunal Regional Federal devido à ocorrência de cerceamento do direito

de defesa da ANVISA, ante o indeferimento da realização de prova pericial por ela requerida com o intuito de provar a ausência de novidade do princípio ativo em questão. Além disso, a sentença também foi considerada nula pela ausência de intervenção do Ministério Público Federal no processo, intervenção que seria obrigatória diante da existência de interesse público no caso.

36 O processo retornou ao juízo de 1ª instância para manifestação do Ministério Público Federal e

produção da prova pericial. O último andamento do processo, consultado em 08 de julho de 2008, foi a nomeação do perito que irá se manifestar no caso.

37 Em 2005, o GTPI ajuizou uma ação civil pública para que o governo brasileiro concedesse uma licença

compulsória para o medicamento Kaletra®, da empresa Abbott. O governo havia iniciado o processo de concessão da licença, mas ao final realizou um acordo com o laboratório, que continha inclusive algumas cláusulas TRIPS-plus. O pedido de medida liminar (decisão provisória no início do processo) foi negado pelo juiz sob a fundamentação, entre outras, de que caso o Brasil concedesse a licença compulsória, sofreria represálias dos Estados Unidos, país de origem da empresa Abbott, uma vez a medida seria contrária as regras do sistema internacional de propriedade intelectual. A ação civil pública ainda está em andamento na justiça federal do Distrito Federal – 15ª Vara, acp nº 2005.34.00.035604-3 – e aguarda julgamento de mérito.

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oferecimento de denúncia ao tratado da OMC ou então, proceder, fundamentadamente, ao licenciamento compulsório de uma patente, porque, parodiando o parecer da ANVISA, está a mesma, sem motivo legal e legítimo a instituir uma „(des)apropriação‟ do direito da impetrante de registrar a sua criação como patente no Brasil, segundo os compromissos internacionais formalmente assumidos e, assim, de conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro dele decorrente.

Em outras palavras, (...), não cabe à mesma arvorar-se a fazer caridade nacional com direito internacional alheio. Ao invés de enaltecer o País, apenas o desmoraliza perante a comunidade internacional.”

Como já mencionado, está decisão foi anulada por decisão do Tribunal Federal Regional da 2ª Região. Apesar de ter sido anulado por questões formais, na fundamentação de sua decisão o Tribunal deu alguns indícios que podem ser favoráveis à proteção da saúde pública. Ao contrário da posição adota pela decisão de 1ª instância, a decisão do Tribunal abordou a questão da proteção à propriedade intelectual sob a ótica da saúde pública. Destacamos importante trecho de referido acórdão (anexo):

“Caso realmente seja verificada a ausência de algum dos requisitos da patenteabilidade, notadamente em segmento tão sensível como é o de medicamentos para tratamento de doenças graves, haveria violação dos princípios constitucionais relacionados ao interesse social e ao desenvolvimento tecnológico e econômico do país em matéria de propriedade industrial. Como bem apontou a apelante, a patente imerecida reduz o campo de desenvolvimento da indústria farmacêutica nacional, incluindo a pesquisa científica e a fabricação. A patente irregular estanca o desenvolvimento científico nacional, impedindo uma maior eficácia social da política pública de medicamentos genéricos e restringindo o acesso da população a remédios mais baratos.”

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A adoção da flexibilidade de participação do setor saúde na concessão de patentes farmacêuticas pelos países em desenvolvimento

A flexibilidade de participação do setor saúde no processo de concessão de patentes na área farmacêutica foi, até o momento, adotada por poucos países além do Brasil e o destino desta flexibilidade aqui poderá influenciar diretamente a sua utilização por outros países em desenvolvimento, principalmente devido ao papel de destaque exercido pelo governo brasileiro para a adoção de medidas de proteção à saúde pública no cenário internacional. O Paraguai e a Bolívia adotaram o mecanismo da anuência prévia em suas legislações nacionais, e o Uruguai está estudando a possibilidade, inclusive mediante cooperação técnica da ANVISA. Também temos notícias de que o Egito adota um mecanismo semelhante em sua legislação nacional38.

Muitos países da América Latina têm demonstrado interesse na adoção de medidas semelhantes à anuência prévia, apesar de saberem das pressões que seus governos sofrem por parte de países desenvolvidos (principalmente dos Estados Unidos da América) para que medidas deste tipo não sejam adotadas em seu território39. No entanto, alguns países já não poderão adotar esta flexibilidade de interesse para a saúde pública em suas legislações, tendo em vista que assinaram acordos bilaterais ou regionais com cláusulas TRIPS-plus40, que os impediram de adotar qualquer tipo de medidas semelhantes. Neste sentido, ressaltamos a importância de que organizações da sociedade civil que atuam em defesa do direito à saúde tentem incidir nas negociações comerciais bilaterais ou regionais em andamento em seus países para evitar a adoção de medidas TRIPS-plus que podem causar impactos ainda mais negativos na saúde da população.

38 Conforme entrevista realizada por correio eletrônico com Ana Paula Jucá, Gerente de Regulamentação

Sanitária Internacional da ANVISA, em 08 de maio de 2008.

39 Idem.

40 Medidas TRIPS-plus representam formas de proteção à propriedade intelectual mais restritivas do que

aquelas adotadas pelo TRIPS. Geralmente, estas medidas visam a privilegiar os interesses dos detentores das patentes em detrimento do interesse público. Via de regra, estas medidas são negociadas em acordos de comércio bilaterais, negociados entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento.

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Cenário internacional

Como mencionado, o caso da empresa transnacional Roche no Brasil é um caso típico de um padrão de atuação da indústria farmacêutica que visa deslegitimar o uso das flexibilidades de interesse para a saúde permitidas pelo Acordo TRIPS e adotadas pelas legislações nacionais dos países. São exemplos de casos semelhantes, com questionamento de políticas públicas de proteção a saúde, o caso de grandes empresas farmacêuticas na África do Sul e o caso da Novartis na Índia, o qual teve grande impacto internacional.

O caso da África do Sul41

Em 1998, a Associação dos Produtores Farmacêuticos da África do Sul e 40 multinacionais farmacêuticas ingressaram com uma ação judicial contra o governo da África do Sul alegando que uma emenda à lei de patentes estaria violando o Acordo TRIPS e a Constituição sul-africana. A emenda introduziu medidas para aumentar a disponibilidade de medicamentos com preços acessíveis na África do Sul, tais como: substituição de medicamentos que não estavam sob proteção patentária por genéricos, transparência nos critérios de fixação de preços de todos os medicamentos e importação paralela42 para medicamentos patenteados.

No início do litígio, as empresas farmacêuticas contavam com o apoio do governo de seus países. Os Estados Unidos, por exemplo, pressionaram o governo da África do Sul retirando benefícios comerciais e ameaçando adotar outras sanções comerciais, com o objetivo de que o governo sul-africano revogasse a emenda legislativa. A Comissão Européia logo se uniu aos Estados Unidos também pressionando o governo sul-africano para revogar a emenda.

41 Sobre este caso, ver „T HOEN, Ellen F. M. TRIPS, Pharmaceutical Patents and Access to Essential Medicines: Seattle, Doha and Beyond. pp. 43-44.

42

Importação paralela é uma flexibilidade de interesse para a saúde prevista no artigo 6º do Acordo TRIPS. Permite que um produto fabricado legalmente no exterior seja importado por outro país sem a autorização do titular dos direitos de propriedade intelectual. O princípio legal no caso é a “exaustão” dos direitos, ou seja, a idéia de que quando o detentor da patente vende um lote de seu produto no mercado, seus direitos patentários estão exauridos e ele não possui mais qualquer direito sobre o que acontece com aquele lote.

(28)

Ativistas do movimento Aids estadunidense tornaram pública esta política do governo dos Estados Unidos, envergonhando o então candidato à presidente Al Gore e questionando seu envolvimento neste caso durante a campanha eleitoral. Como resultado da crescente pressão da opinião pública, os Estados Unidos mudaram sua política em 1999. Ativistas de grandes cidades começaram uma campanha para as empresas desistirem do caso; diversos governos e parlamentares de todo o mundo, incluindo o Parlamento Europeu, aderiram à campanha. Quando o caso finalmente chegou ao tribunal em maio de 2000, as empresas farmacêuticas não tinham mais o apoio do governo de seus países. A ação judicial havia se tornado um verdadeiro desastre de relações públicas para as empresas farmacêuticas. Em abril de 2001, mediante a forte pressão pública internacional e a fraqueza dos argumentos jurídicos, as empresas desistiram do caso.

Para a especialista Ellen „t Hoen43

, este caso trouxe dois assuntos fundamentais para a arena internacional. Primeiro, a interpretação das flexibilidades previstas no Acordo TRIPS e a possibilidade de seu uso para medidas de saúde pública precisava de esclarecimento para garantir que países em desenvolvimento pudessem usá-las sem ameaças de ações judiciais ou políticas. Segundo, ficou claro que países desenvolvidos que utilizavam pressões comerciais para defender o interesse de suas empresas multinacionais, não mais poderiam fazê-lo sem enfrentar repercussões em seus países.

O caso Novartis na Índia

A lei de patentes indiana foi modificada em 2005 para se adequar aos critérios estipulados pelo Acordo TRIPS da OMC. A Índia utilizou o período de transição de 10 anos que foi dado pela OMC para reconhecer patentes na área de medicamentos. Este período foi oferecido aos países em desenvolvimento que não reconheciam patentes nesta área quando da assinatura do Acordo TRIPS em 199444. Uma das principais vantagens desse período seria permitir o fortalecimento dos laboratórios nacionais para enfrentar a concorrência com as empresas transnacionais de medicamentos e a

43 „T HOEN, Ellen F. M. op. cit. p. 44.

44 Importante mencionar que o Brasil, mesmo não reconhecendo patentes para produtos farmacêuticos em

1994, optou por não utilizar este período de transição, alterando sua legislação de patentes em 1996. Esta alteração prematura da legislação causou enormes prejuízos a indústria farmacêutica nacional, fazendo com que a grande maioria saísse de funcionamento.

(29)

utilização deste período na Índia possibilitou o desenvolvimento da indústria de genéricos, fazendo com o país passasse a ser a farmácia dos países em desenvolvimento.

O Patent Act de 2005, que adequou a legislação indiana ao Acordo TRIPS, também incorporou algumas flexibilidades de interesse para a saúde. Na conhecida seção 3(d) da lei de patentes indiana, foram adotados critérios de interpretação dos requisitos de patenteabilidade que tornaram mais difícil a concessão de patentes para alterações em produtos já existentes, descobertas de novos usos ou formas de um produto já conhecido (as patentes de segundo uso45 ou para formas polifórmicas46) ou para combinações de medicamentos. Essas medidas visam assegurar que apenas reais invenções sejam protegidas, evitando a concessão de patentes para pequenas modificações em produtos já conhecidos (chamadas de patentes frívolas ou triviais). São justamente essas medidas adotadas pelo governo indiano para proteção da saúde pública que a Novartis buscava excluir da legislação indiana.

A Novartis também é uma empresa transnacional européia da área farmacêutica e foi constituída com esse nome em 1996, fruto da fusão de duas grandes companhias suíças do setor, a Ciba-Geigy e a Sandoz. Importante mencionar que a Novartis foi uma das 40 empresas farmacêuticas que processaram o governo sul-africano em 2001, tentando impedir que o governo pudesse importar medicamentos mais baratos para tratamento de sua população.

45 As patentes de uso médico podem ser distinguidas em dois tipos: primeiro uso médico e segundo uso

médico (o que inclui terceiro, quarto, quinto, etc. usos). O primeiro uso médico corresponde ao primeiro uso farmacêutico de um composto já conhecido, porém não utilizado com finalidade terapêutica. O segundo uso médico corresponde a um novo uso de um composto já conhecido e que já possui uma finalidade terapêutica. Em ambos os casos, trata-se de uma nova finalidade de um produto já conhecido. E justamente por já ser conhecido, não pode ser objeto de proteção patentária, por não apresentar o requisito de novidade. Novos usos de um produto já conhecido são meras descobertas de um novo efeito deste produto, uma vez que nada foi substancialmente alterado no produto que está sendo utilizado, não podendo se falar em uma nova invenção, mas apenas em uma nova finalidade para uma invenção já existente. Além disso, as reivindicações de uso também podem ser recusadas sob outro argumento: falta de aplicação industrial. De fato, o que se pretende proteger neste tipo de reivindicação é o efeito do composto no organismo e não o produto em si ou seu método de fabricação.

46 Polimorfismo é a habilidade intrínseca de uma substância de existir em mais de um tipo de forma

cristalina, com diferentes propriedades. Sendo as formas polimórficas propriedades intrínsecas das moléculas, elas não podem ser consideradas como uma invenção do homem, tratando-se, pois, de meras

descobertas, as quais não são passíveis de proteção patentária. Além disso, a busca pela forma

polimórfica mais adequada para melhorar a estabilidade, a solubilidade, a biodisponibilidade e a processabilidade da forma sólida de uma determinada substância já está descrita no estado da técnica e, portanto, não possui qualquer atividade inventiva.

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