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A imposição de padrões mínimos de proteção à propriedade intelectual para todos os países membros da OMC, sem considerar as assimetrias existentes entre eles, gerou, ao contrário do que prometido quando da negociação do Acordo TRIPS, um distanciamento ainda maior em relação aos países detentores e os países usuários de tecnologia. Na área farmacêutica, essa assimetria entre os países representa um obstáculo adicional ao acesso da população a medicamentos essenciais para a proteção e promoção do direito humano à saúde e, em última instância, à vida.

Prevendo que a adoção dos novos parâmetros de proteção à propriedade intelectual pudesse causar efeitos negativos no acesso a medicamentos, o próprio Acordo TRIPS previu algumas flexibilidades que poderão ser adotadas pelos países para proteger a saúde de sua população. O direito de os países fazerem uso destas flexibilidades foi reafirmado pela OMC pela Declaração de Doha, assim como por outras instâncias multinacionais como a ONU e a OMS.

No entanto, na realidade, os países em desenvolvimento enfrentam um triplo desafio quando efetivamente tentam fazer uso das flexibilidades de interesse para a saúde. Primeiro, para a incorporação das flexibilidades previstas no Acordo TRIPS nas legislações nacionais dos países são necessárias grandes negociações entre os diversos atores envolvidos, e aqueles que defendem a sua incorporação enfrentam a pressão do forte lobby da indústria farmacêutica. Essa dificuldade de incorporação das flexibilidades nas legislações nacionais pode ser ilustrada por um estudo realizado com 19 países da América Latina e Caribe que demonstra que nenhum dos países incorporou plenamente em suas legislações todas as flexibilidades previstas no Acordo TRIPS63. Em segundo lugar, mesmo após serem incorporadas nas legislações nacionais, os países em desenvolvimento raramente utilizam as flexibilidades. O caso do Brasil é sintomático nesse sentido. Há anos o Brasil ameaça utilizar a licença compulsória como forma de assegurar a sustentabilidade do programa universal de tratamento de HIV/AIDS, ameaçada pelos altos preços praticados pela indústria farmacêutica. No

63 CHAVES, Gabriela Costa e OLIVEIRA, Maria Auxiliadora. A proposal for measuring the degree of public health–sensitivity of patent legislation in the context of the WTO TRIPS Agreement. Bulletin of the

entanto, apenas em 2007 o governo brasileiro emitiu a primeira – e única – licença compulsória da história do país – para o efavirenz, da transnacional farmacêutica alemã Merck. Por fim, quando os países efetivamente utilizam as flexibilidades previstas no Acordo TRIPS e incorporadas em suas legislações nacionais, eles são criticados e eventualmente punidos pelos governos dos países desenvolvidos ou pelas próprias empresas transnacionais.

O caso da empresa Roche no Brasil é exemplar de um padrão de atuação das empresas farmacêuticas transnacionais na tentativa de deslegitimar o uso das flexibilidades de interesse à saúde pelos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos, a despeito de serem permitidas pelo Acordo TRIPS e de o direito de sua utilização já ter sido reiteradas vezes reafirmado pela ONU, OMS e pela própria OMC. O mesmo padrão de questionamento da legislação nacional pela via judicial foi também observados nos casos das grandes empresas farmacêuticas na África do Sul e no caso da empresa Novartis na Índia.

Além da via judicial, as empresas farmacêuticas também atuam em outras frentes tentando deslegitimar as flexibilidades de interesse para saúde. Há fortes indícios de que o caso da empresa Boehringer Ingelheim no Brasil de não solicitação de registro sanitário de um medicamento esteja relacionado ao fato de que o pedido de patente para o produto foi negado devido a não anuência da ANVISA. A empresa Abbott, após o governo tailandês ter emitido uma licença compulsória para um produto seu, decidiu retirar o pedido de registro sanitário de todos os novos medicamentos naquele país, impedindo assim a sua comercialização e, conseqüentemente, o acesso da população aos medicamentos, em uma clara demonstração de abuso de poder econômico.

Além disso, as transnacionais farmacêuticas ainda pressionam seus países sede para que imponham retaliações econômicas aos países que utilizem as flexibilidades de interesse para saúde e também para que se valham de seu poder econômico para negociar medidas ainda mais protetoras de seus interesses comerciais mediante o comprometimento da não utilização das flexibilidades – geralmente por meio de acordos bilaterais de comércio, acatados pelos governos dos países em desenvolvimento, apesar dos impactos que podem causar na formulação de políticas públicas de saúde e no acesso a medicamentos por seus cidadãos.

Dentro desse contexto, o Tribunal Permanente dos Povos condenou a empresa transnacional suíça Roche por sua conduta atentatória ao acesso a medicamentos no Brasil. Como o caso da empresa Boehringer Ingelheim foi apresentado como um relato e não como uma acusação, o TPP não se pronunciou sobre este caso.

Acreditamos que a apresentação dos casos perante o TPP foi importante para dar maior visibilidade ao tema do impacto do sistema de propriedade intelectual no acesso a medicamentos essenciais, bem como para chamar atenção para a forma de atuação das empresas transnacionais farmacêuticas que tentam deslegitimar o uso de medidas que visam minimizar os impactos negativos das regras internacionais mediante a utilização das flexibilidades de interesse para a saúde permitidas pelo Acordo TRIPS.

Por fim, acreditamos que o fato de a empresa Boehringer Ingelheim ter entrado em contato com o GTPI para dar explicações em relação ao caso que estava sendo levado ao TPP, fortaleceu as organizações da sociedade civil perante a empresa, assim como foi um demonstrativo da legitimidade do Tribunal Permanente dos Povos e de sua importância para as causas de violações de direitos por empresas transnacionais.

Concluímos ressaltando que são muitos os desafios a serem enfrentados por aqueles que militam em defesa do acesso a medicamentos e do direito à saúde, frente a este padrão de atuação da indústria farmacêutica em diferentes países do mundo. São muitos os desdobramentos do tema e muitas as esferas que devem ser monitoradas para que possa haver um bom acompanhamento do que ocorre não apenas em âmbito nacional, mas também em âmbito internacional, uma vez que as decisões tomadas nesta esfera impactam diretamente o sistema nacional. Além disso, também é importante acompanhar o que ocorre nos sistemas nacionais de outros países em desenvolvimento, uma vez que é muito provável que o mesmo ocorra também dentro de seu país.

Tais grupos, que vem tendo um papel fundamental nos seus países na implementação das flexibilidades do TRIPS de interesse para a saúde – seja impedindo a concessão de patentes imerecidas, seja estimulando a emissão de licenças compulsórias – tem agora o desafio adicional de estar monitorando as práticas abusivas das empresas em seus países. Trata-se de mais uma evidência sobre a fragilidade do sistema internacional de

patentes, que privilegia direitos privados e, ainda que preveja a proteção do interesse público, esta vem mostrando ser de complexa implementação em nível local.

Neste sentido, é fundamental que haja uma boa troca de informações e experiências entre grupos que atuam nesta área, reforçando-se mais uma vez a importância do fortalecimento da aliança entre a sociedade civil dos países do Sul, a fim de que possam ser construídas estratégias conjuntas de enfrentamento a problemas semelhantes e que experiências de sucesso possam ser adaptadas aos diferentes contextos.

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