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Capítulo 3 Exercício prático: A mulher como campo de batalha

3.3. Exercício Prático – EACH

3.3.3. Bordado contemporâneo

O Grupo 3 criou uma obra que dialoga muito com os temas que o bordado tem trabalhado nas artes visuais: as questões de gênero. A obra tem duas partes: um traje e um biombo que o oculta. A ideia do grupo é que o público, ao chegar no espaço do espetáculo, irá se deparar com essa estrutura cheia de fendas através das quais deverá olhar (Figuras 86 e 87). As fendas se assemelhavam a um órgão sexual feminino. Segundo a descrição do projeto do grupo (Anexo I):

Inicialmente, o traje estará sobre um manequim, o qual se encontrará entre dois painéis, fixos em uma estrutura de madeira, que estarão o escondendo do público. Ambos os painéis estarão desgastados, possuirão manchas vermelhas, fendas e marcas de mãos, representando a violação causada à vítima do estupro. Através das fendas

será possível que os espectadores observem o traje por vários ângulos diferentes, com o intuito de colocar o espectador no lugar do agressor, para assim enxergar o mal que ele causa à vítima. (GRUPO 4, 2017)

Figura 86 – Obra 4 (Painel)

Fonte: Acervo da autora

Figura 87 – Detalhe do painel

Fonte: Acervo da autora

A capa, que seria usada pela personagem Dorra, é feita de retalhos de diversas manchetes de jornal e estatísticas acerca da questão da violência sexual no Brasil (Figuras 88 e 89). Os dados foram recortados e rebordados na capa, causando uma ruptura no tecido e. além disso, o grupo bordou em miçangas diversas linhas vermelhas que são ao mesmo tempo como veias por onde corre sangue e rastros de uma violência. Assim como o painel, a capa tem diversas manchas de sangue, inclusive de sapatos, como se tivesse sido pisada. Ao utilizar dados de um local diferente daquele que é retratado na peça o grupo denuncia que o problema da violência de gênero não se restringe a alguma época ou cultura específica.

Figura 88 – Obra 4 (Capa)

Fonte: Acervo da autora

Figura 89 – Detalhe dos dados escritos na capa.

Fonte: Acervo da autora

A violência sexual contra a mulher foi uma arma de guerra durante o conflito nos Balcãs. Segundo descrição da personagem Dorra,

Hoje em dia, nas guerras étnicas, o estupro é uma forma de guerra-relâmpago. Nada pode desestabilizar com mais eficácia o inimigo étnico do que quando se viola sua mulher. Mais da metade das mulheres violadas no contexto das guerras interétnicas foram vítimas de agressores, ou que elas conheciam, ou que encontravam pelas ruas num perímetro de menos de sessenta quilômetros. Aproximadamente metade das mulheres que pudemos entrevistar declarou que os homens que as violaram são habitantes da mesma cidade ou de cidades vizinhas. Quase um quarto das mulheres com quem pudemos conversar pôde dar o nome ou os nomes de seus agressores. (VISNIEC, 2012, p.118)

Segundo o estudo do IPEA (2011) Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados

da Saúde117, indica que, de modo geral, considerando-se todas as fases da vida de uma pessoa

– infância, adolescência e vida adulta – 70% dos agressores são conhecidos da vítima. Os graus de parentesco variam desde pais, tios, avós até namorados e amigos, o que indica que a violência contra as mulheres não parte apenas de desconhecidos. Esta é uma questão semelhante à apontada por Dorra na sua fala. A guerra interétnica ocorre entre diferentes etnias que até então conviviam no mesmo espaço. São vizinhos, colegas de trabalho e antigos amigos que agora estão em lados opostos. No conflito da peça havia ainda um agravante: a xenofobia.

Para resumir, com seu inimigo sendo seu irmão, o guerreiro sabe que as mulheres que rodeiam seu inimigo são ao mesmo tempo sua fonte de vitalidade e seu ponto mais frágil. Os combatentes não violam por puro prazer selvagem ou por causa da tentação sexual. O estupro é uma forma de estratégia militar para desmoralizar o inimigo. O estupro, no caso concreto das guerras interétnicas na Europa, tem o mesmo objetivo que a destruição das casas do inimigo, das igrejas ou dos lugares sagrados do inimigo, dos seus vestígios culturais e dos seus valores. (VISNIEC, 2012, p.119)

Ao trabalhar com a denúncia de situações de violência de gênero e xenofobia o grupo se alinha com uma tendência contemporânea de aplicação do bordado ligada à sua revalorização nas artes visuais: a assumida de um papel questionador. A manipulação de têxteis – como o bordado e o crochê – sempre associada aos trabalhos domésticos é plataforma para diversos artistas que buscam ressignificar técnicas, visando não só uma subversão do olhar engessado sobre a arte, como propriamente dos papéis de gênero na sociedade.

A obra criada pelo grupo dialoga também com as artes plásticas ao propor uma instalação. Neste momento de ressignificação do bordado e de questionamento dos limites entre arte e artesanato, muitos artistas têm trazido para o público aquilo que era doméstico. Independentemente das razões que levaram à classificação do bordado como uma arte aplicada, ou cotidiana, atualmente estes limites já não são mais tão fixos.

Para Prain (2011) política e protesto são partes inerentes da vida e os têxteis não se abstém de responder a estas narrativas que também existem no cotidiano. Para ela:

O tecido tem sido uma ferramenta de comunicação política através da história, e por vezes foi um meio de comunicação em locais onde era ilegal, ou mesmo letal, falar ou escrever. Têxteis podem ser usados de maneira subversiva para contar histórias porque são artes que parecem inofensivas aos menos observadores. (p.79)

117 Disponível em:

<http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf> Acesso em 03 Out.2018.

Em momentos de crise ou tensão, os artistas respondem esteticamente às pressões. No caso do bordado, não é apenas nas mensagens das obras que está o caráter subversivo, mas sim na própria presença da técnica nos museus e galerias. Valorar a arte aplicada da mesma maneira que as artes plásticas e visuais têm sido valorizadas não deixa de ser um manifesto: a arte que pode subverter o sistema vai nascer do cotidiano, das mãos daqueles que pouca voz ou espaço tiveram até então.